A ESCRITA NO SÉCULO XXI (ou talvez além disso) 

Luiz Carlos Cagliari
Prof. Dr. do Dep. 
de Lingüística do
IEL- UNICAMP

1-SAMPSON, G.  (1985)
Writing Systems. London: Hutchinson.
Até meados do século XVIII, mais da metade dos livros existentes no mundo eram escritos em chinês. A China produz material escrito há cerca de 4.500 anos! O sistema de escrita chinês passou de ideográfico para uma mistura de caracteres de natureza ideográfica e fonográfica (Sampson, 1983)1. Como o chinês é uma língua tipicamente monossilábica, o caráter ideográfico se manteve sempre de forma muito saliente. O aspecto fonográfico veio para facilitar a leitura, tirar ambigüidades, necessariamente para transcrever nomes próprios de palavras estrangeiras e, mais raramente, para dar conta de neologismos.
  A partir das missões cristãs do século XVI, um contacto mais aberto entre o Oriente e o Ocidente levou muita gente a querer substituir o sistema de escrita chinês pelo alfabeto latino. Além de ser uma estupidez ignorar uma produção cultural invejável, produzida no sistema chinês de escrita, de um preconceito com relação à cultura geral dos outros, era, ainda, uma idéia sem fundamento científico achar que o alfabeto latino é um sistema de escrita melhor do que o sistema chinês. Antes de mais nada, é preciso esclarecer que qualquer sistema de escrita serve para escrever qualquer língua. A escrita chinesa foi usada para escrever o coreano e o japonês, que são línguas muito diferentes do chinês. Sem dúvida, o alfabeto é um sistema muito interessante, útil e prático na cultura Ocidental, justamente porque tal cultura foi montada com a ajuda desse sistema. Apesar de tanto esforço em querer acabar com sistema de escrita chinês, o máximo que se conseguiu foram sistemas de transliteração que permitem um uso mais adequado de comércio entre o Oriente e o Ocidente, sobretudo no endereçamento postal e na ortografia dos nomes próprios chineses usados pelos ocidentais em sua escrita alfabética. 

Uma crítica severa e precipitada do caráter estranho e rebuscado da escrita chinesa, na opinião de alguns, apareceu bem recentemente, quando os computadores pessoais tornaram-se de fácil aquisição para grande parte das pessoas. No início, os Apples precisavam ser programados a cada uso através de programas que empregavam o teclado alfanumérico. Naquele momento, muitos começaram a achar que a escrita ideográfica iria dar lugar definitivamente à escrita alfabética. Mas, isto era apenas uma falsa aparência para quem não conhecia, de fato, como programar. Programas como Basic e Pascal (para não falar do Fortran, Cobol, etc.) traziam, na verdade, uma ameaça à escrita alfabética. Além dos números (em abundância nesses programas) que são exatamente iguais aos caracteres da escrita chinesa, misturados às letras das palavras, os programas logo desenvolveram um enorme sistema de abreviatura e de siglas. As letras já não tinham mais o valor fonográfico para transcrever palavras, mas um valor ideográfico de identificação semântica. Com o advento do PC Macintosh e do Windows, a programação através do teclado ficou quase toda substituída pela programação via mouse. Neste caso, pequenos programas foram transformados em ícones. Ou seja, agora, apertar um botão do mouse sobre um ícone pode equivaler a ativar um pequeno texto. Por trás dos ícones existe um programa feito em linguagem C, mas a isso, o usuário comum não tem acesso, nem precisa saber ou se preocupar. Para suas finalidades, basta saber como controlar o uso do mouse sobre os ícones. Por sua vez, a natureza dos ícones é diversa. Num aplicativo como o Word, há letras como N para negrito, flechas para indicar que há outras opções, pictogramas como o desenho de uma impressora para indicar o comando de imprimir, linhas que representam tipos de formatação, etc. Além disto, há palavras escritas alfabeticamente como rótulos de conjuntos de comandos agrupados. 

Aquilo que parecia indesejável, que era o excesso de caracteres das escritas ideográficas, como o chinês, ficou superado pela expansão enorme da capacidade de armazenamento da memória dos computadores. Nesse momento, o alfabeto ficou muito lento, difícil e indesejável, porque os caracteres ideográficos necessitam apenas um aperto do mouse, ao passo que escrever uma palavra necessita uma série de movimentos tendo, ainda, o risco de se cometer algum erro de grafia e estragar o comando. Clicar sobre um mouse, além de rápido é muito mais seguro. Os fatos acima nos levam a algumas ponderações importantes sobre a situação da escrita no futuro. Há três aspectos a serem considerados: 1) os sistemas de escrita, 2) os materiais de escrita e 3) a atividade de ler e de escrever no contexto cultural em que tais atividades se inscrevem. 

2-CAGLIARI, L. C 
(1996)
Sistemasde Escrita:
história, natureza e funções  da escrita. Livro submetido à publicação.
Com relação aos sistemas de escrita (Cagliari, 1996) 2, está em jogo a sempre presente luta entre escrita ideográfica e fonográfica e entre escrita pictográfica e escrita não-figurativa. Do ponto de vista teórico, não há nada a acrescentar: os usos da escrita até hoje já exploraram bastante as possibilidades de todos os sistemas. Porém, há um problema novo aqui. A escrita tradicional nada mais é do que uma representação da linguagem oral e, portanto, recupera a linguagem oral com todas as suas características, inclusive o caráter linear e sintagmático dos elementos que se concatenam numa certa ordem. Ou seja, ao ler, a escrita volta a ser fala. Por outro lado, se imaginarmos que, no futuro, vamos escrever através de computadores, o ato de escrever terá muitas características próprias, diferentes das que usamos hoje, a começar pelo não uso de caneta e papel. O mundo da imagem estará em plena forma e as palavras escritas, na maioria das vezes, não passarão de simples rótulos para tarefas específicas que o computador realizará. Ler uma obra literária, produzida com letras do alfabeto, será uma coisa do passado, uma coisa de arqueologia, assim como vemos, hoje, as escritas antigas, como a egípcia, a cuneiforme, os livros iluminados da Idade Média, etc. As histórias serão contadas através de imagens, pelo menos na sua maior parte, ou através da fala gravada. Certamente, haverá um processo de interação direta a qualquer momento entre o texto e o leitor, com a possibilidade de o leitor introduzir suas reflexões e sonhos no texto que lê, de forma direta, interferindo no resultado final, ou, simplesmente, em acréscimo paralelo, como um comentário, uma exegese. A interação com a máquina será, neste caso, uma interação com o texto.
  E os livros? Ah, os livros!... Fora os pergaminhos - de vida mais longa, e os recém-produzidos livros com um preparo químico especial, a imensa maioria dos livros tem nos papéis uma bomba-relógio. Em muitas bibliotecas, certos livros já viraram pó. Sua reprodução facsimilada em outros materias, como filmes, também terão vida curta por causa da química usada no material de suporte. Somente gravações digitais podem sobreviver mais ao tempo. Ou seja, o computador é o único que pode salvar o livro de sua extinção física e, conseqüente extinção cultural. Se o livro sobreviver, será um produto do computador. Alguns livros podem durar ainda algumas centenas de anos, mas não muito. Ler um livro sobre a mesa ou segurando-o com a mão será uma imagem do passado. As bibliotecas serão museus especialmente climatizados para preservar objetos valiosíssimos que conseguiram sobreviver. Por outro lado, através dos computadores haverá um acesso direto a todos os livros disponíveis na rede, o que pode significar um acesso a todos os livros de todas as bibliotecas de todos os tempos. Parte dessa realidade está começando agora. Os CDs já trazem grande obras, como enciclopédias. Através da infoway, de ligações entre computadores via Bitnet, Internet e coisas semelhantes, os usuários já podem bibliotecas de todo o mundo. 

Por comodidade e por razões culturais atuais, as impressoras ainda têm tido uma importância muito grande, porque traduzem os dados do monitor em escrita impressa em papel. Certamente, no futuro, as impressoras serão acessórios usados muito raramente, uma vez que a maneira de usar a escrita estará toda dirigida para o uso dos computadores, cujo monitor visual mostrará ao usuário o que deseja. A circulação de informações e de textos será feita através de dispositivos de memória, como os discos que usamos hoje, por exemplo. consultar muitas obras de Isto mostra que o predomínio da escrita alfabética e do livro, como nós o conhecemos hoje, vai durar muito pouco na história da Humanidade. Como se disse acima, somente a partir do século XVIII e, principalmente, no século XX, os livros inundaram o mundo e a escrita alfabética passou a gozar de grande prestígio. A escrita alfabética está muito ligada à cultura Ocidental e, de certa forma, tem acompanhado o desenvolvimento cultural do Ocidente. Curiosamente, quanto mais se produziu em termos de uso da escrita alfabética, mais apareceram formas ideográficas no Ocidente. Basta abrir um jornal para se constatar isso. Há uma quantidade enorme de pictogramas, abreviaturas, siglas, números, fórmulas, gráficos, mapas, símbolos, grifes, logotipos, etc. Os jornais de oitenta anos atrás não só se utilizavam pouco desse tipo de material, mas usavam até poucas fotografias e desenhos. Nos últimos anos, a escrita ideográfica invadiu o mundo moderno, não só na comunicação externa de avisos e de informações, como até mesmo nos jornais. Hoje, ao lado de uma sinopse de um filme, aparecem figuras de rostos alegres, tristes ou apenas sérios para mostrar uma avaliação sobre o valor do filme. Poder-se-ia escrever apenas bom, regular, ruim. Por que a preferência pela escrita ideográfica? Certamente, isto tem a ver com facilidade e a rapidez de leitura. Os jornais trazem um amontoado enorme de matérias e, quanto mais facilitar a leitura, terá mais chance de agradar aos leitores e fazer sucesso comercial. Eu não sei se foram os jornais que influenciaram a elaboração de programas de computador baseados no uso de ícones ou vice-versa. Mas, uma coisa é certa: este uso atual revela uma tendência futura que, certamente, irá atingir uma dimensão que nós não somos capazes de imaginar hoje.

3- CAGLIARI, L. C.  (1993)  "Avaliando a  Avaliação  Escolar". Idéias- Alfabetização:  passado, presente e futuro
São Paulo: FDE - SE, 19, pp. 111-123.
A telinha da tevê será o local da escrita no futuro, além de ter outras finalidades. Os computadores re-inventarão o livro, agora, no formato eletrônico. Segurar uma caneta para escrever vai ser um gesto desconhecido. Papel vai ser um material associado mais a outras coisas do que a veicular escrita. Os textos voltarão a ser basicamente orais ou convertidos em orais para uso comum. A forma gravada nada mais será do que uma memória eletrônica. A forma gráfica da escrita estará reduzida a comandos que escreverão discursos orais e decodificarão textos escritos e gravados. Assim como comandamos a fala, prestando atenção à semântica do que se diz e não à forma como se diz, do mesmo modo a escrita do futuro será conduzida de forma semelhante. Os textos falados serão gravados de acordo com a fala das pessoas ou adaptados a uma determinada variedade, à escolha. Isto irá eliminar, na verdade, a escrita tal qual a conhecemos hoje. A gravação sonora dispensa o uso de sistemas de escrita, necessitando apenas de controle eletrônico. A ortografia ficará restrita às formas de superfície, de comando. Dicionários ortográficos serão substituídos por dicionários de variação lingüística e, eventualmente, de línguas diferentes, para traduções. Se a escrita é, de fato, uma forma de representação gráfica da linguagem oral, continuará sendo uma forma de representação, mas deixará de ser gráfica. Representações fonográficas ou ideográficas de textos não mais existirão e nem precisarão existir. No máximo, tornar-se-ão um hobby de pessoas excêntricas. Algumas das funções e máximas da linguagem terão nova versão. A teoria da informação terá que rever alguns de seus conceitos. A pragmática terá novos campos de atuação. A sociolingüística terá uma importância nunca imaginada. O poder da linguagem está mais forte do que nunca. E... como será a aquisição da linguagem? Finalmente, na nova era, a escola não passará de uma lembrança do passado, um pouco triste, bastante misteriosa e totalmente incompreensível. Os do futuro acharão que, em nossas escolas de hoje, as pessoas são escravizadas mentalmente, obrigadas a reproduzir modelos para uma espécie de capataz do saber sempre disposto a usar de violência intelectual contra os que não correspondem às expectativas de um jogo bastante cruel, chamado ensino e aprendizagem (Cagliari, 1993) 3.