Relatos nº 05

Apresentação

História da gramática no Brasil e ensino
Eduardo Guimarães

Formação do léxico e saber lingüístico
José Horta Nunes

O imigrante e o português brasileiro
Emerson Tin



APRESENTAÇÃO

LÍNGUA NACIONAL E SABER METALINGÜÍSTICO: UM PROJETO SINGULAR

    Quando propus que o nosso programa de pesquisa aliasse a história da constituição do saber metalingüístico com a história da construção da língua nacional, sabia que esta decisão traria contribuições específicas ao modo de se pensar e trabalhar a questão da língua em países de colonização. Restava conhecer os ganhos teóricos e compreender os aportes no que toca a história da ciência. E algumas das observações que faço na apresentação deste número de nosso boletim Relatos dizem respeito justamente a essa compreensão.
    Na medida em que, de um lado, alia Gramática, História da Sociedade e Ideologia, e, de outro, Saber Lingüístico e Língua Nacional – regulando as relações entre diversidades e unidade para o Estado – uma forma de conhecimento como esta dá uma configuração particular à história das ciências. Em nossa proposta, isso só foi possível de ser atingido porque, do interior do conhecimento lingüístico, organizamos uma leitura que se inscreve nas chamadas novas práticas de leitura, propostas pela análise de discurso de linha francesa. O propósito dessas práticas é relacionar o dizer com o não dizer, com o dito em outro lugar e com o que poderia ser dito. Essa escuta tem de particular o ser sensível às relações de sentido – seja pela memória (o interdiscurso) seja pela menção (a intertextualidade). O que temos, então, são novos gestos de leitura.
    No que consiste a especificidade desses gestos, ou em outras palavras, da mediação estabelecida por esse dispositivo teórico de interpretação?
No fato de que a língua ela mesma se inscreve na história para significar. É, pois, a historicidade e a consideração do funcionamento ideológico do dizer que trazem algo de novo.
    Ver a gramática como parte da nossa relação com a sociedade e com a história (cf. E. Orlandi, 1996) transforma esse objeto – um instrumento lingüístico (S. Auroux, 1992) – em um objeto (vivo), parte de um processo em que os sujeitos se constituem em suas relações e como parte da construção histórica das formações sociais com suas instituições, e sua ordem cotidiana.
    Não se trata do uso de um artefato mas da construção de um objeto histórico. Quando se constrói uma gramática já se põe a questão do ensino. Não se fala então, dessa perspectiva, sobre a função da Gramática, mas do funcionamento da produção sobre a língua na relação desta com o sujeito e com a sociedade na história. Aí, sim, se atinge o modo de constituição (do saber e da língua) e não apenas a aplicação de uma coisa sobre a outra.
    A nossa sociedade, do ponto de vista da linguagem, funciona com o saber e com a escrita enquanto materialidade que constitui a própria forma de nossas instituições. A Escrita é uma forma de relação social, historicamente determinada. A Gramática é um objeto de conhecimento social historicamente determinado.
    O Ensino não prescinde desses objetos e dessas relações.
    O século XIX é um momento crítico na reivindicação por uma língua e sua escrita, por uma literatura e sua escritura, por instituições capazes de assegurar a legitimidade e a unidade desses objetos simbólicos sócio-históricos que constituem a materialidade de uma prática que significa a cidadania. A forma política dessa cidadania e a forma do sujeito que lhe correspondem não são de outro, a sua textualidade: gramáticas, dicionários, obras literárias, manuais e programas de ensino.
    Nossa tarefa é, através da análise dessa textualidade, dessa materialidade, compreender o processo de constituição e os sentidos dessas instituições e dos sujeitos sócio-históricos que as praticam.
    Nessa história vale ressaltar ainda o fato, o acontecimento discursivo da imigração. Que produz uma história que se poderia pretender linear mas que traz mais um atravessamento de memória, o que produz indistinção tanto no sujeito como na língua, passageiros de espaços ambíguos e de múltiplas temporalidades.
    Os textos que seguem expõem um pouco essa forma de compreensão. Por aí vemos que, enquanto objetos históricos, tanto a gramática, como o dicionário, ou o ensino e seus programas, assim como as paródias da língua, são uma necessidade que pode e deve ser trabalhada de modo a promover a relação do sujeito com os sentidos, relação que faz história e configura as formas da sociedade.

Eni Puccinelli Orlandi
Campinas, outubro de 1997.

Referências Bibliográficas:

AUROUX, S. (1992) A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas, Editora da Unicamp.
ORLANDI, E. P. (1996) “o Saber, a Língua, a História”. XI Encontro Nacional da ANPOLL, João Pessoa.



 
HISTÓRIA DA GRAMÁTICA NO BRASIL E ENSINO.

EDUARDO GUIMARÃES
DL – IEL/LABEURB
UNICAMP

    Falar sobre as funções da lingüística, ou da ciência em geral, é colocá-la fora do funcionamento social, é tomar a lingüística, ou a ciência em geral, só como instrumento.
    Quero aqui deslocar esse tipo de posição. Para isso vou tratar de como funcionam as ciências da linguagem como parte do corpo social em que se formula. A questão não é, pois, a de dizer qual a função social das ciências da linguagem, mas a de compreender como ela funciona na sociedade. Para tratar desse funcionamento, vou tomar um momento na história do Brasil importante na história da gramática e do ensino da língua, especialmente do ensino da língua portuguesa em nosso país.
  O processo de gramatização (Auroux, 1992) brasileira do português (Guimarães, 1994) se dá a partir dos anos 80 do século XIX(1). Este processo é fortemente determinado, de um lado, pela relação que o Brasil estabelece com idéias filosóficas e científicas de outros países, já não diretamente filtradas por Portugal, e, por outro lado, pela instituição escolar brasileira que se instalara a partir da fundação do Colégio Pedro II(2).
    Um fato decisivo neste processo de gramatização brasileira do Português é o programa de português para os exames preparatórios organizados por Fausto Barreto a pedido do diretor geral da Instrução Pública, Emídio Vitório, em 1887. A partir deste programa aparece um conjunto de gramáticas que procuravam atender às suas indicações. Estas gramáticas, ao lado de adotarem as indicações do programa diziam que tinham o objetivo de romper com a tradição portuguesa da gramática filosófica.

1. O Programa de Fausto Barreto
    O programa estabelece duas provas para os exames preparatórios: uma escrita e outra oral. A escrita era “composição” sobre assunto a ser sorteado no momento da prova a partir de uma lista de pontos organizada diariamente pela comissão julgadora. A prova oral consistia de uma análise “fonética, etimológica e sintáxica” a ser feita sobre um trecho escolhido pela comissão a partir de um livro de uma lista que constava do programa em questão; e de uma exposição de um dos pontos apresentados pelo programa, sendo a escolha do ponto também feita por sorteio.
    Um aspecto a se destacar é que a prova de português precedia a todas as outras.
    Os pontos orais constavam de 46 itens. O primeiro deles era “Observações gerais sobre o que se entende por gramática geral, gramática histórica ou comparativa e por gramática descritiva ou expositiva. Objeto da gramática portuguesa e divisão do seu estudo. Fonologia: os sons e as letras;  classificação dos sons e das letras; vogais; grupos vocálicos; consoantes; grupos consonantais; sílaba; grupos silábicos; vocábulos; notações léxicas”.
    O item 6 é “Morfologia: estrutura da palavra; raiz; tema; terminação; afixos;   Do sentido das palavras deduzido dos elementos mórficos que as constituem; desenvolvimento de sentido novos nas palavras”.
    Os itens de 7 a 11 tratam das classes de palavras.
   O item 12 é “Agrupamento de palavras por famílias e por associação de idéias. Dos sinônimos, homônimos e parônimos”.
    Os itens de 17 a 20 são sobre formação de palavras.
    Os itens de 21 a 28 são sobre etimologia portuguesa.
   Os itens de 30 a 41 são sobre sintaxe. O item 40 é “da colocação de pronomes pessoais”.
  Os itens de 42 a 46 são sobre o que podemos chamar de retórica e estilística.
2.1. Na época do aparecimento do programa, Júlio Ribeiro, que já publicara sua Grammatica Portugueza em 1881, apresenta-o em “Procellarias” e faz sobre ele alguns comentários. Um deles é que o programa apresentado se formulava em bases científicas. Segundo as suas próprias palavras: “Não há o que negar; é este programa organizado cientificamente, sobre as bases largas, sólidas, da ciência da linguagem” (Ribeiro, 1887, 92). E para sustentar esta sua afirmação ele diz que o programa distingue como parte da gramática a lexicografia e a sintaxe (idem). Deste modo, a ortografia não é mais considerada uma parte autônoma da gramática, como constava na gramática geral. Ao lado disso ressalta que o programa pede conhecimento em morfologia, de modo a que esta não está submetida à etimologia. Por isso se pode pedir o estudo do grupamento das palavras por famílias e por associações de idéias (idem, 93).
2.2. Tomemos agora observações feitas por Maximino Maciel, que em 1887 publicou sua Grammatica Analytica, no seu texto “Breve Retrospecto sobre o Ensino da Língua Portugueza”. Neste texto, incluído como apêndice à sua Grammatica Descriptiva(3), Maximino diz logo de início que por volta do ano de 1887 “a ciência da linguagem atravessava uma época de transição” (Maciel, 1910, 499). Para ele, como para muitos desta época, inclusive Júlio Ribeiro, o método histórico comparativo passava a ocupar o lugar dos “antigos gramáticos portugueses Soares Barbosa, Bento de Oliveira, Lage e outros” (idem).
    E assim, segundo Maximino, “muitos professores que se norteavam pelos filólogos estrangeiros, iam evangelizando, quer na docência particular, quer em publicações esparsas, as novas doutrinas, desbravando-lhes o terreno onde se tinham de arquitetar os novos estudos” (idem 501). Segundo Maximino este grupo, no qual cita Fausto Barreto, Hemetério dos Santos, Alfredo Gomes, João Ribeiro, Pacheco Silva, Lameira de Andrade, Said Ali e outros, tinha em Fausto Barreto um “centro de onde se irradiam os delineamentos gerais” (idem). Fausto Barreto era catedrático do Colégio Pedro II e isto, segundo Maximino, lhe permitia difundir e firmar novas doutrinas.
    Ainda segundo Maximino, este programa “Assinalou nova época na docência das línguas e, quanto à vernácula, a emancipava das retrogradas doutrinas dos autores portugueses que esposávamos” (idem, 502). Ao mesmo tempo ele diz que a partir do programa várias gramáticas se fizeram como as de João Ribeiro, Alfredo Gomes e a de Pacheco Silva e Lameira Andrade. Para ele as duas primeiras foram mais usadas para o ensino, para os alunos e a terceira, mais para consulta. Assim, “Houve pois com a publicação do programa em 1887, uma como Renascença dos estudos da língua vernácula: na imprensa, na docência particular se aclarava, se discutiam os fatos da língua à luz das novas doutrinas” (idem, 504).
    Tantos as posições de Júlio Ribeiro quanto de Maximino nos dão conta de que o programa de Fausto Barreto muda o ensino de língua naquele momento, criando,inclusive, pressão sobre o conjunto de estabelecimentos de ensino da época, tendo aberto o lugar para o aparecimento de novas gramáticas, dando andamento ao que chamei gramatização brasileira do português (Guimarães, 1994). Assim depois deste momento continuam a aparecer gramáticas novas. Lembremos aqui a Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira, de 1907, que reivindica para si a filiação ao caminho aberto, segundo ele por Julio Ribeiro com sua Gramática de 1881.
3. As Condições do Surgimento do Programa
   Começo retomando o que dissemos em “Identidade Lingüística” (Guimarães e Orlandi, 1996, 13): “A Língua, a Ciência e a Política estabelecem entre si relações profundas e definidoras na constituição dos sujeitos e da forma da sociedade. Ao mesmo tempo em que a lingüística vai-se constituindo como ciência, a questão da língua é afetada pela relação do sujeito com o Estado e as políticas gerais de um país manifestam essa inter-relação, de que a forma mais visível é a formulação específica das políticas lingüísticas.”
    O momento histórico aqui analisado é vital na vida brasileira pois nele está se dando todo um trabalho um trabalho de reflexão sobre as condições da nacionalidade brasileira. E neste embate a questão da língua é uma questão crucial(4). Há toda uma discussão que se instala sobre se o português do Brasil é o mesmo que o de Portugal ou não. Todos conhecemos as disputas como a de José de Alencar e Pinheiro Chagas. Bem como sabemos que esta discussão se projeta pelo início do século XX(5).
    No campo de conhecimento sobre a língua isto repercute através de estudos sobre, por exemplo, a especificidade do léxico do português no Brasil, questão que já se pusera através do Marquês da Pedra Branca no início do século XIX, logo após a independência do Brasil.
    Nota-se que há toda uma mudança que se faz no ensino do português no Brasil que se baseia numa mudança de paradigma de conhecimento. Mas o que levou à mudança foi que este novo conhecimento é formulado como voz oficial do estado através do programa de Fausto Barreto. Ou seja, uma certa posição científica é formulada como posição institucional e isto a partir de uma pessoa destacada, vista, inclusive, como liderança intelectual.
    Mas aí se põe a questão: Como se constituiu no Brasil o conhecimento sobre língua formulado a partir do comparativismo? Ele se fez depois do programa? Evidentemente que não.
    Sabe-se que este conhecimento já se estabelecera no Brasil antes de 1887. Em 1879 fora publicada a Grammatica História da Lingua Portugueza de Pacheco Silva, de 1884 é a obra Estudos Filológicos de Júlio Ribeiro. Em 1881 Júlio Ribeiro publicara sua Grammatica. E ele também diz estar baseando-se nos novos métodos naturalistas.
    Importante a se ressaltar aqui que a gramática histórica de Pacheco Silva traz na sua parte final todo um estudo sobre os Brasileirismos e Provincialismos , como uma forma de caracterizar as mudanças da língua no Brasil.
    Por outro lado, lembremos que Maximino nos relata que havia um grupo de estudiosos desenvolvendo trabalhos na língua dentro do comparativismo quando em 1887, o Inspetor Geral da Instrução Pública solicita o Programa a Fausto Barreto. Ou seja, a solicitação do programa se dá em virtude de se ter um tipo de conhecimento lingüístico claramente estabelecido no Brasil naquele momento.

CONCLUSÃO
    Assim a sociedade brasileira do século XIX se desenvolve enquanto desenvolve entre outras coisas o conhecimento científico. E este conhecimento se dá como tecnologia para o ensino porque é parte das condições históricas do momento e porque ocupa um lugar institucionalizado.
Se olharmos para momentos mais recentes da história brasileira, veremos situações semelhantes. Lembro aqui o que significou o estabelecimento da nomenclatura gramatical brasileira, no final dos anos 50, a inclusão da disciplina de língua portuguesa na área de comunicação e expressão, nos anos 60/70, e a sempre presente hoje, questão do vestibular para o ingresso na universidade.
    Falar da relação da ciência com a sociedade é falar necessariamente do percurso social do conhecimento. Qual o papel específico do cientista na construção desse percurso? Quais suas relações (a do percurso social) com o Estado? Há como construir um percurso social do conhecimento sem passar pela força legitimadora e coercitiva do Estado? Ou seja, é possível  constituir outros lugares sociais igualmente fortes , a ponto de serem capazes de estabelecer o percurso social do desenvolvimento? E no caso específico que estou analisando a pergunta torna-se mais dura: É possível constituir outros lugares sociais, independente do Estado, capazes de afetar o ensino de cima abaixo tal como o programa de Fausto Barreto afetou, ou tal como a NGB e as regulamentações sobre vestibular afetam hoje?
     A questão do ensino e da língua estão indissoluvelmente ligadas, e a Escola é diretamente ligada ao Estado que, minimamente, regula o modo de funcionamento escolar.
    Além disso, o conhecimento e o ensino se fazem necessariamente em uma língua. Não qualquer língua, mas a língua, ou línguas próprias de um país, no nosso caso o Português.

NOTAS
(1) “Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares do nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”. (Auroux, 1992, 65). Este é o momento em que as gramáticas e dicionários se fazem tendo em vista a questão da língua no Brasil. 
(2) O Colégio Pedro II foi criado em 2 de dezembro de 1837, pela transformação do Seminário São Joaquim.
(3) A Grammatica Descriptiva publicada em 1894 é uma modificação da Grammatica Analytica de 1887.
(4) Sobre a questão da Língua e a nacionalidade ver Língua e Cidadania (Guimarães e Orlandi, 1996).
(5)
Sobre esta questão, ver por exemplo, Os Sentidos do Idioma Nacional (Dias, 1996).

BIBLIOGRAFIA
AUROUX, S. (1992). A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas, Editora da Unicamp.
DIAS, L. F. (1996). Os Sentidos do Idioma Nacional. Campinas, Pontes.
GUIMARÃES, E. (1994). “Sinopse dos Estudos do Português no Brasil: a Gramatização Brasileira”. Língua e Cidadania. Campinas, Pontes. 1996
GUIMARÃES, E. e ORLNDI, E. P.(1996) “Identidade Lingüística” Língua e Cidadania. Campinas, Pontes.
MACIEL, M. (1910). “Breve Retrospecto sobre Ensino da Lingua Portugueza”. Grammatica Descriptiva. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1926.
RIBEIRO, Júlio (1887). Procellarias. São Paulo, Cultura Brasileira. 





FORMAÇÃO DO LÉXICO E SABER LINGÜÍSTICO.

JOSÉ HORTA NUNES
LABEURB/UNICAMP

    A partir dos resultados de uma tese de doutorado(1), vamos apresentar uma reflexão acerca da formação de um léxico brasileiro, vista da perspectiva da produção de saber lingüístico no Brasil desde o século XVI até o XIX. Consideramos a produção de saber lingüístico como processo de gramatização(2) das línguas. A elaboração de dicionários está ligada a transformações significativas na conjuntura histórica e lingüística. Examinamos alguns momentos dessa produção levando em conta o papel de teorias, conceitos e instituições envolvidos. Para isso fizemos uma leitura do dicionário como um discurso (Mazière 1989), analisando enunciados lexicográficos em um corpus constituído inicialmente de relatos de viajantes, e em seguida, de dicionários bilíngües (português-tupi/tupi-português) e monolíngües (português).
    A questão da formação de um léxico brasileiro aparece mais fortemente a partir da segunda metade do século XIX, acompanhando os movimentos nacionalistas. Ela se assenta no final desse século, sobretudo com a noção de “brasileirismo”. Conforme João Ribeiro, em 1989, brasileirismo “é a expressão que damos a toda a casta de divergências notadas entre a linguagem portuguesa e a falada geralmente no Brasil” (3). Várias listas de brasileirismo surgiram desde então, apresentadas como argumentos para legitimação do português.
    O que nos interessa ressaltar quanto à noção de brasileirismo é que ela está ancorada na unidade da palavra e em uma visão do léxico como estoque de termos, conjunto de itens a que são atribuídas significações. No momento em que se propõe uma história da formação do léxico, a questão que emerge para os defensores da língua nacional é: que palavras ou expressões constituem brasileirismos? Quando e  onde apareceram? O que significam? Deste modo, Arthur Neiva (1940) aponta em Pigafetta, cronista da expedição de Fernão de Magalhães, as primeiras manifestações de brasileirismos. A primeira lista deles contaria com doze palavras recolhidas por esse viajante em 1519, entre as quais temos, por exemplo, “pindá” (anzol, gancho) e “ui” (farinha). Esta concepção conduz a uma idéia do léxico como algo que vai se “enriquecendo” desde os tempos da colonização, com o surgimento e a incorporação dos brasileirismos.
    Numa perspectiva que considera a história do saber lingüístico e os processos discursivos de significação, um deslocamento se impõe. A formação do léxico é vista não através da dimensão empírica da palavra, mas: a) através dos processos de significação que conformam uma memória lexicográfica. Deste modo, o que importa não é somente o aparecimento de palavras ou expressões, mas o de processos discursivos: de nomeação, de enunciação, de identificação, de definição, etc. b) através da produção de instrumentos lexicográficos: listas de palavras, relatos com comentários enciclopédicos, dicionários, considerados não somente como provedores de palavras e significações, mas como discursos produzidos em condições históricas específicas.
    Considerado esse deslocamento, a história da formação do léxico não corresponde a um processo linear, continuado, tal como se supõe com a introdução progressiva dos brasileirismos ao nível abstrato da língua. Ela decorre de vários estados da produção de saber lingüístico e das transformações que eles sofreram ao longo dos processos históricos. Ela sofre bloqueios, desvios, apagamentos, deslocamentos; constrói redes de memória e filiações sócio-históricas.
    Em nossa análise, chegamos a alguns recortes que correspondem a momentos distintos da lexicografia brasileira, em cada um dos quais depreendemos diferentes condições de produção do saber lingüístico.
 1. Relatos de Viajantes
 Os inícios da formação de um léxico brasileiro podem ser apontados nos primeiros relatos de viajantes. Com efeito, nesses relatos aparecem comentários sobre os habitantes e as coisas do país, formando-se verbetes organizados tematicamente. A primeira filiação que apontamos diz respeito portanto a um saber de tipo enciclopédico, que ainda não está amarrado a uma unidade de língua nacional. O que temos é o desencadeamento de processos de referência, dos quais resulta uma espécie de sintonização da relação entre palavras e coisas, incluindo-se aí mecanismos de nomeação, de tradução, de identificação, que se inserem nas formas narrativas, descritivas e dialogais dos relatos. Estes nódulos de formação lexical constituem unidades significativas, encabeçadas por elementos seja em língua indígena, seja em português, como em Cardim (Tratados da Terra e Gente do Brasil, 1583), que elabora uma lista comentada de termos referentes a animais europeus.
    Tal produção de saber está relacionada com as práticas colonizadoras em várias instâncias. A partir da análise, explicitamos algumas posições de sujeito lexicográfico, ou seja, lugares enunciativos, historicamente constituídos, a partir dos quais se diz a significação lexical. Deste modo, temos, em Caminha, uma voz que enuncia a partir do lugar da autoridade oficial, um lugar que é falado pelas instituições (o reino, a marinha, a igreja). Na Carta (1500), Caminha atribui ao “capitão”, autoridade da descoberta e da posse, a colocação dos nomes na cena do achamento (“o capitão pôs nome o monte pascoal”), e aos “marinheiros”, autoridades do mar, a dos nomes dos sinais de terra (“eram muitas quantidades de ervas compridas a que os mareantes chamam Botelho e assim outras aves a que chamam fura buchos”). O sujeito lexicográfico aparece ainda através de varias figuras: a) a do viajante aventureiro, como em Hans Staden, que se representa nas situações  de contato em um conflito identitário envolvendo sujeito e coisas do país; b) a do colono fazendeiro, como em Gabriel Soares de Sousa, que diz a significação a partir da posição do proprietário de terra; c) a do naturalista, como em Jorge Marcgrave, que introduz um discurso de processo natural em relação aos elementos da fauna e flora.
    Essas diversas posições determinam a constituição do léxico, cristalizando relações de paráfrase, sinonímia, identificação, as quais configurarão historicamente uma memória lexicográfica.
 2. Dicionários Bilíngües na Época Colonial.
    Os dicionários bilíngües (português-tupi/tupi-português) elaborados por missionários jesuítas, com finalidades catequéticas, desde a segunda metade do século XVI, constituem os primeiros dicionários de língua, ordenados alfabeticamente, feitos no Brasil. Eles são bastante peculiares quanto à formulação dos verbetes. O Vocabulário na Língua Brasílica (VLB), manuscrito anônimo português-tupi do século XVI-XVII, traz entradas com frases inteiras (como esta: "Pancada, pelo sinal dela que fica na carne ou lugar aonde se deu”), bem como verbetes que incluem reflexões gramaticais, comentários sobre a adequação dos nomes às coisas e situações de conversação. Questiona-se a significação a partir do ponto de vista de um tradutor-intérprete, que coloca em cena locutores índios e europeus em situações de uso. A nomenclatura é delimitada e orientada no sentido do discurso religioso, de maneira que a cena catequética torna-se uma imagem enunciativa organizadora de um modo de dizer a sociedade – a ser transformada – através de dicionários.
    Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, essa produção de bilíngües foi interrompida. Mudam as condições de produção do saber lingüístico, privilegiando-se o estabelecimento do português como língua obrigatória e proibindo-se o uso do tupi nas escolas.
 3. Dicionários Bilíngües na Época Imperial
    No século XIX, a produção de bilíngües teve uma retomada com outros objetivos práticos. O que estava então em jogo era a construção de uma história do Brasil, distinta da de Portugal. Gonçalves Dias, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), foi encarregado de elaborar uma história das línguas indígenas e elegeu o tupi como “língua dos antepassados brasileiros”. Seguiu-se então um trabalho de arquivo voltado para os manuscritos deixados pelos jesuítas. Desse trabalho resultaram alguns dicionários tupi-português/português-tupi, dentre os quais salientamos o Dicionário da língua tupi chamada língua geral dos indígenas no Brasil (1858), do próprio Gonçalves Dias. Essas obras se caracterizam por introduzirem no interior dos verbetes uma narrativa histórica e interpretações etimológicas. O tupi é posicionado como língua de origem, conformando-se a imagem do “tupi antigo”. Percebe-se que enquanto os primeiros missionários apagaram a dimensão histórica das línguas indígenas, os intelectuais do Império a inseriram em uma visão evolucionista que tinha o tupi como origem primitiva e o português como ponto de chegada. No verbete “peteca”, por exemplo, Dias indica primeiramente a significação no tupi antigo (bater) e depois no português (“Daqui vem chamar-se peteca a espécie de volante ou supapo feito de folha de milho, que as crianças lançam ao ar com a palma da mão”).
 Ao lado dos trabalhos comparatistas, dentre os quais podemos ressaltar a obra de Martius, que reuniu em Glossaria Linguarum Brasiliensium (1863) uma serie de vocabulários de língua indígenas, coletados tendo em vista a unidade da palavra com fins de comparação, houve, como vimos, uma produção direcionada à formação de uma identidade nacional, fazendo a ligação do tupi com o português. Percebe-se que esses dicionários tiveram uma função antes edificante de uma simbologia da nação, do que didática, visto que somente o português era admitido nas escolas.
 4. Dicionários Monolíngües.
    A afirmação de que o português do Brasil resultaria de um “enriquecimento” do português de Portugal leva muitas vezes a supor um bloco lexical já pronto ao qual foram se ajuntando novos elementos para a formação do léxico brasileiro. No entanto, parece-nos importante considerar a historia da constituição dos dicionários monolíngües para compreendermos melhor essa formação, evitando-se reproduzir a orientação ideológica que faz com que a lexicografia brasileira seja interpretada no efeito de complementaridade. Além disso, convém dar atenção a todos os domínios temáticos, e não apenas, como muitas vezes se tem privilegiado, aos da fauna, flora e etnografia.
     O aparecimento do primeiro dicionário monolíngüe do português constitui um acontecimento importante, que provocou mudanças significativas no modo de conceber o léxico. Podemos ter uma idéia dessas transformações analisando-se a passagem discursiva que ocorre nessas circunstâncias. O Dicionário da Língua Portuguesa, de A de Moraes e Silva (1789), primeiro monolíngüe, constitui uma retomada do Vocabulário Português e Latino, de R. Bluteau (1712), com supressões, transformações e acréscimos. Enquanto alguns dicionários de língua nacional, a começar pelo Dicionário da Academia Francesa (1694), se voltaram para a descrição sincrônica dos usos, a tradição portuguesa manteve uma filiação direta com o dicionário de tipo enciclopédico, como era o de Bluteau, que apresentava longos verbetes com essa característica. Foi através da retomada que Moraes efetua de Bluteau que se consolidou o enunciado definidor na lexicografia de língua portuguesa. A partir da análise de verbetes da letra P desses dicionários, chegamos aos seguintes deslocamentos: passagem da propriedade natural do objeto para a matéria-prima trabalhada, passagem do modo de fazer artesão à descrição técnica do processo de fabricação, passagem do discurso religiosos ao discurso jurídico, passagem do ponto de vista do produtor ao consumidor.
    O primeiro monolíngüe representa uma consolidação da língua nacional em Portugal e um passo importante para a gramatização do português brasileiro. Com suas sucessivas reedições ao longo do século XIX, desencadeou-se um jogo espetacular que fez com que as diferenças se manifestassem mais decisivamente. Uma resposta à falta que autores brasileiros indicavam nos dicionários portugueses veio através de uma produção local, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX: dicionários de complementos, dicionários de regionalismos, dicionários de termos técnicos, dicionários de brasileirismos. Estes últimos, surgidos ao final do século, reuniram de certa forma toda a produção anterior que definia os termos usados no Brasil, antes disseminada em listas e pequenos dicionários. Evidencia-se com isso a diferenciação do léxico brasileiro com relação ao léxico português, sendo que reafirma-se o efeito de complementaridade mencionado mais acima – o qual persiste até hoje com a marcação dos brasileirismos nos dicionários de língua portuguesa. Mas uma análise de um conjunto de verbetes nos permitiu observar, através do estudo das formas de definições, alguns processos discursivos em jogo. Por exemplo, no Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa de Macedo Soares (1888), um dicionário de brasileirismos, percebemos uma regularidade no uso de uma adjetivação contrastiva no enunciado definidor. Essa adjetivação conduz a uma oposição entre as elites e as camadas populares, oposição que aparece ao modo de propriedades naturais dos objetos. Vejamos, por exemplo, a definição de “brogúncios” (“pequena bagagem, pobre e reles, do viajante a pé, do trabalhador de estrada, do garimpeiro, constando do surrão de roupa do serviço, rede, marmita, etc.”). Nos verbetes vão se constituindo oposições entre o rico e o pobre, o limpo e o sujo, o bom e o ruim, o dia e a noite, as águas e a seca. E essas oposições se desdobram, sobre as representações sociais: gente boa, aceada/povo ruim, rústico; roupa fina, branca/roupa suja; poderoso, influente/vadio; índio manso, domesticado, aldeiado/selvagem, grosseiro, estúpido. Nota-se que esse discurso responde a um movimento republicano em que se busca significar, na língua, o “povo brasileiro”, que passa então a figurar desse modo nos dicionários(4).

    Essas diferentes faces da lexicografia brasileira, pelas quais passamos rapidamente, mostram que a formação do léxico, quando se considera sua historicidade e seus modos de constituição, não se resume a transformações ao nível das palavras e expressões, nem à delimitação de determinados domínios lexicais. Ela está ligada, de um lado, às políticas lingüísticas que definem a produção de um saber lexicográfico (na relação com as instâncias de um saber em uma formação social), e de outro, às próprias formas discursivas através das quais esse saber se apresenta nos instrumentos lingüísticos. 

NOTAS:
(1)J. Horta Nunes.
Discurso e Instrumentos Lingüísticos  no Brasil: dos Relatos de Viajantes aos Primeiros Dicionários, tese de doutorado, IEL – Unicamp, Campinas.1996.
(2) “Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares do nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”. (S. Auroux, A Revolução Tecnológica da Gramatização Campinas, Editora da Unicamp. 1992, p.65).
(3) Cf. E. P. Pinto, O português do Brasil, Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro, Edusp, São Paulo, 1978.
(4) Esse momento é também o do aquecimento das primeiras gramáticas do português do Brasil. E. Orlandi mostra como a reprodução dessas gramáticas tem a ver com o estabelecimento da República, quando se fortalecem as instituições, entre as quais a Escola, e língua e Estado se conjugam em sua fundação (cf. E. Orlandi, “O Estado, a Gramática, a Autoria” Relatos nº 4, junho – 1997, Campinas.

 

REFERÊNCIA:
AUROUX, Sylvain. (1992), A Revolução Tecnológica da Gramatização,Campinas Editora da Unicamp.
MAZIÈRE, Francine, (1989). “O Enunciado Definidor: Discurso e Sintaxe”, In História e Sentido na Linguagem, Campinas, Pontes.
NEIVA, Arthur. (1940), Estudos da Língua Nacional, Companhia Editora Nacional, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre.

NUNES, José Horta. (1996), Discurso e Instrumentos Lingüísticos  no Brasil: dos Relatos de Viajantes aos Primeiros Dicionários, tese de doutorado, IEL – Unicamp, Campinas.
ORLNDI, Eni Puccinelli. (1997) “O Estado, a Gramática, a Autoria” Relatos nº 4, junho – 1997, DL – IEL – Unicamp.Campinas.
PINTO, Edith Pimentel. (978), O Português do Brasil, Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro, Edusp, São Paulo, 1978.
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O IMIGRANTE E O PORTUGUÊS BRASILEIRO.

EMERSON TIN

    A questão da identidade e da alteridade nos fenômenos de imigração reflete uma situação “de duas línguas no mesmo (?) sujeito” (E. Orlandi, 1966: 114). Ou seja, o imigrante carrega consigo duas línguas: a materna, a nativa, aquela que aprenderam desde o nascimento, e a adotada, a nova língua, a língua do país que escolhera – ou fora obrigado a escolher – para viver e morrer.
    Como sabemos, os imigrantes – principalmente os italianos – vinham para o Brasil para ficar, não pensando em voltar para a Itália. Passavam assim, a ocupar um espaço indefinido sem se reconhecerem, em certo sentido, como cidadãos. O imigrante já não era mais italiano, pois a viagem praticamente não tem mais volta; mas ainda não é brasileiro, ainda não conquistara essa cidadania – ainda não dominara a língua. Sabemos que “a linguagem não é usada somente para veicular informações (...) ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive” (Gnerre, 1991:5). O imigrante, assim, ao falar, se inscreve na história do italiano, em um primeiro momento e, em seguida, passa a figurar num lugar de indistinção, numa “terra de ninguém”, quando não fala nem o italiano, nem o português, ma uma mistura de ambos: o “português macarrônico” (E. Orlandi, 1996). Dessa forma, o imigrante acaba não mais tendo pontos de referências definidos: a Itália é uma terra distante, separada do Brasil por um Oceano; o Brasil é uma terra estranha, desconhecida, misteriosa.
    Além disso, o “português macarrônico” não merece uma legitimação pela escrita. Os imigrantes italianos, pobres em sua maioria, vinham ao Brasil principalmente para o trabalho nas lavouras de café, em substituição ao negro escravo. Por isso, e pelo fato de o “português macarrônico” não conferir o status de cidadão brasileiro ao seu falante, “pode-se falar o português macarrônico mas não se pode escrevê-lo. A não ser como paródia. Côo uma língua que passa ao lado de outra. Esta sim, com foros de legitimidade e parte da constituição da cidadania, com sua escrita” (E. Orlandi, idem: 127).
  Podemos ver, nesse “português macarrônico”, uma série de indícios que caracterizam uma mistura de línguas, ou seja, uma mistura do italiano com o português, que é trabalhada por Juó Bananére, entre outros autores, através da paródia. Na verdade, pode-se dizer que o poema de Bananére acaba por revelar o esforço do imigrante italiano em se expressar na língua que passou a falar. Mas essa inscrição não ocorre pela imposição da língua: “O colonizador, por definição, é o que, em termos de memória, exerce sua memória tradicional, impondo-a (e impondo-se) ao colonizado. O imigrante não se define assim. Ele não tem o poder (nem o direito) de impor a sua memória. Embora toda prática de linguagem seja transformadora, ele fica mais afetado pela memória local” (Eni Orlandi, 1996: 127). Aliás, é o que vemos ainda hoje. Por exemplo, aqui em Campinas – cidade que recebeu, assim como toda a região, um grande número de imigrantes italianos, principalmente para o trabalho nas lavouras de café – serão ministradas aulas de língua italiana nas escolas municipais, num acordo firmado com o cônsul da Itália. Entretanto, tais aulas não serão obrigatórias, num indício do que a autora afirmou, ou seja, que o imigrante não pode impor a sua memória, não tem esse direito.
    Assim, se esse imigrante é um sujeito “indistinto”, podemos no entanto perceber, no processo de inscrição do imigrante italiano no português brasileiro, uma espécie de “gradação”. Vejamos a seguir, com mais vagar, cada um desses “estágios”.
A Chegada na América
    Um primeiro “estágio” ocorreria quando, logo de chegada, o imigrante, no caso, o italiano, tivesse o primeiro confronto com a nova língua: ele, italiano, falando italiano, no Brasil, espaço de falantes de português-brasileiro em sua maioria. Nesse momento, o imigrante estaria , como já dissemos, à margem da cidadania e da história lingüística do português-brasileiro; ele é o outro, que ainda não se reconhece – nem é reconhecido – como brasileiro. Falta-lhe justamente o domínio da língua. Mas isso não significa que a sua presença no espaço brasileiro não fosse percebida, nem causasse influências. Um exemplo, aliás muito conhecido, de uma influência imediata do imigrante italiano no Brasil é a história que se conta sobre a origem da expressão “terra roxa”, que denomina um tipo de terra comum no Estado de São Paulo e propício para o cultivo do café. Conta-se que, chegando, os italianos a chamaram de “terra rossa” (terra vermelha, em italiano). Os brasileiros, ouvindo a expressão, passaram a chamar tal terra de “terra roxa”, por aproximação do que ouviram. Esse é um pequeno exemplo de que a chegada na América dos imigrantes italianos não passou despercebida,  nem mesmo no momento dos primeiros contatos; longe disso, acabou por influenciar costumes e maneira de falar.
     “Contatos Imediatos”
    Um segundo momento seria o retrato por Juó Bananére em suas paródias: o imigrante já passa a dominar certos aspectos da nova língua, mas ocorre uma mistura entre os elementos de sua língua materna e a língua adotada, ou seja, o imigrante passa a se esforçar para se inserir na história do português-brasileiro; seria uma espécie de italiano abrasileirado. O trabalho de E. Orlandi (1996), que estamos comentando, refere-se a este momento.

MIGNA TERRA
Migna terra tê parmeras
Che ganta inzima o sabiá
As aves Che ato aqui,
També tuttos sabi gorgeá
A abobora celestia tambê
Che tê lá na mia terra
Tê moltos millió di strella
Che non tê na Inglaterra
Os rios lá sô maise grandi
Dus rio di tuttas naçó;
I os motto si perdi di vista
Nu meio da imensidó.
Na migna terra tê parmeras
Dove ganta a galligna dangola;
Na migna terra tê o Vap’relli,
Chi só anda di gartolla.

    Na Canção do Exílio, Gonçalves Dias compara constantemente o Brasil e a Europa, ou seja, a sua terra e a outra. Já na paródia de Bananére essa dicotomia, essa oposição parece desaparecer: a “migna terra” já não é a Itália, mas também não é o Brasil. “A indistinção em Migna terra (Brasil ou Itália?), o “lá” (que é o Brasil ‘aqui’), a escrita com formas misturadas (gn/nh, g/c), o não falar-se em ‘volta’, são a própria definição do imigrante: é o que vem e fica” (E. Orlandi, idem). Vemos esse “italiano abrasileirado” no texto acima através dos usos g/c (“ganta”, ao invés de canta), gh/nh “(migna”, ao invés de minha, o “correto em português, ou mia, o “correto” em italiano), tt/d, u/o (“tuttos”/ “tuttas, ao invés de todos/todas, que seria o “correto” em português ou titti/tutte, o “correto” em italiano), ch/qu (“Che”, ao invés de que). Isso tudo revela, como bem constatou Eni Orlandi (ibid.), a indefinição de identidade, do lugar que o imigrante reconhece como sendo a “sua terra”.
    De minha parte, gostaria de trazer para a reflexão também um outro poema de Bananére onde vemos essa indefinição do lugar do imigrante. É o caso do “Sonetto Futuriste”.

SONETTO FUTURISTE

Pra Marietta
Tegno uma brutta paxó,
P’rus suos gabello gôr di banana,
I p’ros suos zoglios uguali dos lampió
La da igregia di Santanna.
Ê mesimo una perdiçó
Ista bunita intaliana,
Che faiz alembrá os gagnó
Da guerre tripolitana.
Tê uns lindo pesigno
Uguali cós passarigno,
Chi sto avuanó nu matto;
I inzima da gara della 
Te una pinta amarella,
Uguali d’un carrapato.

    A começar pelo título – uma referência ao movimento de vanguarda do Futurismo, em voga na Itália no início do século –, encontramos uma alusão à Itália. Logo na primeira estrofe, ocorre um deslocamento: a comparação dos cabelos de Marietta com a “cor de banana”, fruta tipicamente tropical, e dos olhos com os lampiões da Igreja de Santana, um bairro de São Paulo. Na segunda estrofe, contudo, volta a referência italiana: talvez à guerra da Itália contra a Turquia, em 1911 – 1912,  período em que aquela ocupa Trípoli. Vê-se que a referenciação se torna indeterminada: Bananére se utiliza de imagens italianas e brasileiras, simultaneamente. Isso nos mostra, de certo modo, a mistura das culturas e a indefinição do lugar do imigrante. O seu lá e o seu aqui não se podem fixar com clareza.
    Podemos perceber o mesmo fenômeno, ainda, em uma letra de Adoniran Barbosa, na qual se nota, se não uma mistura de línguas, uma mistura de culturas. Vejamos:

SAMBA ITALIANO
Piove, piove
Fá tempo que piove quá Gigi
E io, sempre io
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricorda Gioconda
De quella sera in Guarujá
Quando il mare
Ti portava via
E me chiamaste: “Aiuto, Marcello”
La tua Gioconda à paura di quest’onda

    Percebe-se no texto que, apesar de estar escrito muito mais em italiano que em português-brasileiro, o espaço retratado já não é na Itália, mas no Brasil. O texto remete, inclusive, a um momento passado que tivera lugar numa praia brasileira. Embora em italiano a letra já traga o espírito brasileiro, o que já é um indício, ainda que tênue, de um início de transição de culturas, de um início de integração.
   
    O Início da Integração

    Um terceiro momento seria aquele em que o imigrante italiano, ou os seus descendentes, passam a se integrar à cultura brasileira, mas sem apagar a suas origens. Isso é o que vemos retratado, de certa forma, nas letras de Adoniran Barbosa, nas quais temos um português italiano, em que a língua já é o português-brasileiro, mas ainda vemos alguns leves traços do imigrante italiano, principalmente no que diz respeito aos “erros”, ou traços de baixo nível de escolarização. Aliás, não deixaria de ser relevante o fato de Adoniran Barbosa – na verdade seu nome era João Rubinato – ser descendente de imigrantes italianos: “João Rubinato pertence às primeiras gerações de valinhenses, filhos de imigrantes italianos que desembarcaram na cidade no final do século passado. Mas sua história se confunde com a dos italianos que residiam no Bixiga, em São Paulo” (Silvana Guaiume, 1997). Essa origem acaba por se refletir no discurso de Adoniran: “A linguagem acaipirada das composições é reflexo da origem interiorana de Adoniran, misturada com vícios do vocabulário italiano” (Silvana Guaiume, 1997). São célebres as letras de “Tiro ao Álvaro”, do “Samba do Arnesto” ou ainda de “Iracema”, em que Adoniran Barbosa retrata com muita felicidade a fala dos moradores dos bairros de São Paulo com maior concentração de população de ascendência italiana. Vejamos um exemplo:

SAMBA DO ARNESTO
O Arnesto nos convido
Prum samba
Ele mora no Braz
Nóis fumos
Num incontremos ninguém.
Nóis vortemos cuma baita
Duma réiva
Da outra veiz
Nóis num vai mais!
(Nóis num semo tatu)
Notro dia 
Encontremos co’o Arnesto
Que pediu descurpas
Mais nóis num aceitemos.
Isso num se faiz, Arnesto,
Mais você divia
Ter ponhado um recado
Na porta, ansim:
Óia turma, num deu
Pra esperá.
Aduvido que isso num
Faz mar,
E num tem importança.
Da outra vez
Nóis te carça a cara.

    Percebemos no texto acima alguns indícios do que seria o retrato caricato da fala de uma faixa da população paulistana: os descendentes de imigrantes italianos moradores em alguns bairros, como o Bixiga e o Belenzinho. Isso se nota nos “erros” de português: a/e em verbos de 1ª conjugação (encontremos, vortemos, aceitemos); l/r (vortemos, descurpas); ditongação de monossílabos (nóis, veiz, mais, faiz). Poderíamos continuar apontando uma serie desses indícios da fala de um grupo social popular formando, no caso, de imigrantes e descendentes de imigrantes italianos, como o próprio Adoniran Barbosa.
    É interessante notar-se que, diferentemente de Juó Bananére – cujo nome é Alexandre Marcondes machado –, o que se tem agora é o olhar do próprio imigrante sobre si mesmo. Se em Bananére temos a visão de um brasileiro escrevendo como se imigrante italiano fosse, em Adoniran Barbosa temos a “legitimação” da fala do imigrante, através dele próprio. Agora não é mais o outro que o vê e o retrata, parodiando-o; ele mesmo se vê e se retrata. Em lugar de posar como modelo, pinta seu auto-retrato, com ironia.
 
Brasileiríssimo, enfim.
Por fim, num último momento, temos o brasileiro descendente de italiano, cuja fala quase já não mais revela a sua ascendência e cuja memória de língua (2) é a portuguesa-brasileira, e não a italiana – remotamente podemos dizer que ainda a sua memória de língua é afetada pela língua italiana pois, além de jamais perdermos nossa memória de língua, o descendente de italiano sempre estará exposto, embora não domine o idioma, a vocábulos e/ou expressões italianas ou italianizadas, sobretudo imprecações (como “ma che!”, “porco cane!”, “Dio Santo!”, “ecco!” e outras menos comportadas...) e há costumes reveladores de sua origem (os grandes almoços de domingo com toda família reunida em torno da macarronada, pratos típicos ensinados de geração a geração, as massas feitas em casa).
Neste contexto é que se inserem iniciativas como a do ensino de língua italiana nas escolas municipais de Campinas, de forma a percorrer um “caminho inverso”: reforçar a memória de língua italiana nesses descendentes dos imigrantes, através de um discurso de “reavivamento” dos laços culturais entre a Itália e esses “italianos” do Brasil. Isso, aliás, vem ao encontro da proposta de Eni Orlandi (1996, 131): discutir esses fenômenos cotidianos da língua, que expressam sempre uma idéia de violência de uns falantes por outros, já que é na língua que se explicitam as confrontações, pois “a língua pertence a todos e é, ao mesmo tempo, o que temos de mais propriamente nosso. Lugar de reações à história e ao social e lugar de singularidade.”
 
Notas:
(1) EMERSON TIN é bacharel em letras pelo IEL (Instituto de Estudos da Linguagem), UNICAMP, e aluno do Curso de Lingüística  desta Universidade. Essa resenha do texto “O Teatro da Identidade – A Paródia como Traço da Mistura Lingüística” de E. P. Orlandi (1996) é produto de seu trabalho no curso de História das Idéias Lingüísticas ministrado na graduação do Departamento de Lingüística no IEL – Unicamp.
(2) Essa é uma noção que tem merecido a atenção de pesquisadores que trabalham discursivamente com a língua, em particular cf. o trabalho de Mª Onice Payer a respeito da imigração italiana.
Bibliografia
GNERRE, Maurizio (1991). Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes.
GUAIUME, Silvana (1997). “Adoniran Barbosa”, Correio Popular, 03 de agosto de 1997, Carderno C, p. 10.
ORLANDI, Eni Puccinelli (1996). “O Teatro da Identidade – A Paródia como Traço da Mistura Lingüística (Italiano/Português)”. In: Interpretação, Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico. Petrópolis. RJ: Vozes, pp. 114 – 131.


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