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Prefácio à tradução de 
Uma investigação sobre os princípios da moral,
de David Hume

JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES
Departamento de Filosofia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Estadual de Campinas
E-Mail: jmarques@obelix.unicamp.br
Web: http://www.unicamp.br/~jmarques


David Hume (1711-1776) conta-se entre os espíritos mais luminosos de seu século e ocupa um lugar proeminente entre os autores de língua inglesa, não apenas por sua obra filosófica mas também como ensaísta e historiador. Continuador da tradição empirista inaugurada por Bacon e desenvolvida por Locke e Berkeley, levou-a à sua mais extrema conclusão, culminando em um sistema que tem sido muitas vezes acusado de ser excessivamente cético e de privar a ciência e a moral de qualquer justificação racional.

Sua contribuição de maior impacto para a filosofia foi a crítica ao princípio de indução, que desde Bacon era tomado como o instrumento por excelência para o estabelecimento de inferências científicas. Ao argumentar que nossa experiência acerca de fatos passados não pode racionalmente justificar previsões sobre acontecimentos futuros, Hume colocou em xeque toda uma forma de conceber a natureza de nosso conhecimento factual acerca do mundo, e, em particular, abalou as pretensões à universalidade características das leis científicas. O fato de que as devastadoras conclusões de Hume tivessem permanecido tanto tempo sem receber uma resposta satisfatória constituiu, nas palavras de Kant, "o escândalo da filosofia". Ao lado disto, é bastante conhecida a afirmação de Kant de que foi a leitura de Hume que o despertou de seu "sono dogmático", fornecendo-lhe o incentivo para escrever a Crítica da razão pura.

Se esta, na verdade, é a representação usual que se faz da filosofia de Hume, é preciso, porém, evitar as simplificações. A Crítica não pode ser considerada apenas como uma resposta a Hume: são muitas as linhas de reflexão filosófica que nela culminam, confrontam-se e coalescem. E, reciprocamente, é inaceitável reduzir Hume ao papel de um filósofo secundário, cuja importância residiria apenas em ter gerado uma crise de princípios que exigiu a intervenção de Kant para sua superação.

Esta fácil acomodação das idéias de Hume a um esquema linear de evolução do pensamento filosófico, tão a gosto dos manuais didáticos de filosofia, é a principal responsável pela incompreensão da importância e originalidade de seu projeto, que só recentemente começou a ser devidamente avaliado. Concentra-se a atenção em suas reflexões sobre a teoria do conhecimento, relegando-se a segundo plano seu tratamento da moral, da política e da religião. E, paralelamente, dá-se uma ênfase indevida aos aspectos negativos e céticos de seu pensamento, deixando-se de lado a parte propriamente positiva de seu trabalho. Sob esse aspecto, o texto aqui traduzido, a Investigação sobre os princípios da moral, serve como uma excelente introdução ao "outro" Hume, e fornece uma visão ampla e imparcial de seus objetivos e métodos de investigação.

Para entender a origem desse texto, é necessário dizer algumas palavras sobre uma obra anterior. Em 1734, Hume, então um jovem de apenas 23 anos, residindo na França, lançou-se a um projeto de grande envergadura: a redação de um tratado em três partes com o qual pretendia revolucionar os estudos humanísticos pela aplicação do método experimental, que tanto sucesso obtivera nas ciências da natureza, e obter para si um lugar entre os grandes autores filosóficos de sua época. A redação das duas primeiras partes ocupou-o durante três anos, e a parte final foi concluída após seu retorno para a Inglaterra em 1737. A obra apresenta todas as virtudes e defeitos de um trabalho juvenil: extraordinário vigor e inspiração, profusão e riqueza de idéias originais, mas, ao mesmo tempo, falta de articulação, proporção e mesmo coerência entre as teses expressas, e um pendor pela obscuridade e complexidade da argumentação que beiram o pedantismo. Com todas estas falhas, entretanto, o Tratado sobre a natureza humana permanece hoje, para o especialista, como o opus magnum de Hume, e expressão insuperada de sua filosofia.

O Tratado divide-se em três partes, ou livros: "Do entendimento", "Das paixões" e "Da moral", cobrindo uma ampla gama de assuntos que vão desde questões ligadas a nosso conhecimento factual do mundo, das relações causais e dos objetos exteriores até nossas atitudes valorativas frente a nossas ações e de outras pessoas. Seu escopo abrange assim tanto a epistemologia como a filosofia moral, mas estas áreas de investigação não são tomadas como estanques e independentes uma da outra. De fato, um grande passo para a correta apreciação da importância da obra filosófica de Hume pode ser dado simplesmente reconhecendo-se a profunda unidade que subjaz à sua abordagem de cada um desses campos de estudo. Essa unidade se manifesta visivelmente como uma unidade de perspectiva e de método.

Quanto à perspectiva comum adotada por Hume diante desses assuntos, o que deve ser considerado é o fato de que todas essas questões são tratadas exclusivamente do ponto de vista da subjetividade humana. Sua epistemologia não se detém em reflexões sobre uma suposta ordem exterior e necessária do mundo, à qual nosso conhecimento deveria adequar-se, mas diz respeito apenas à manipulação coerente e ordenada das impressões sensíveis que experimentamos em nosso cenário interior, e das idéias que delas resultam. Do mesmo modo, nossos juízos morais não pressupõem, para sua validade, qualquer padrão transcendente do que é bom ou mau em si mesmo, mas repousam integralmente em sentimentos de aprovação ou desaprovação que experimentamos frente a certas ações, comportamentos e inclinações. O objeto do Tratado é o ser humano, e sua única tarefa é descrever e explicar o modo pelo qual chegamos a desenvolver tanto nossas convicções acerca da realidade do mundo exterior como nossos julgamentos morais diante das práticas de nossos semelhantes.

A mesma unidade se revela no método adotado para prover essas explicações. A chave, aqui, é a menção ao "método experimental". Com isto, Hume pretende indicar que uma investigação como essa deve proceder a partir de fatos observados sobre o comportamento humano, deixando de lado quaisquer esquemas puramente hipotéticos e idealizados acerca da "real natureza" do homem. Seu alvo, aqui, é a antiga idéia do homem como um ser caracteristicamente racional, e a conseqüente tentativa de fundamentar na razão todas as atividades que são próprias do ser humano, entre as quais se incluem principalmente a busca do conhecimento e o aprimoramento moral. Uma importante tarefa preliminar, que Hume se vê obrigado a realizar antes de oferecer sua própria visão do que é característico da natureza humana, é, portanto, o desmantelamento dessas antigas concepções. Antes de explicar como realmente adquirimos nossas crenças factuais e nossas atitudes morais, Hume se dedica a mostrar que a razão não é capaz de atingir esses resultados. Que ele tenha sido tão minucioso e eloqüente nessa tarefa é o motivo, com certeza, de que seja lembrado principalmente por essa realização, e de que a contraparte positiva de seu trabalho, que assegura uma primazia do sentimento interno na gênese dessas atitudes, não tenha recebido a merecida atenção.

A partir das considerações precedentes, torna-se visível o equívoco da imagem anedótica de Hume como o cético empedernido empenhado em solapar as bases da atividade científica e da moralidade. Seu ceticismo é sem dúvida real, mas dirige-se apenas contra a especulação metafísica não sustentada na experiência, que postula entidades implausíveis como "as coisas tal como são em si mesmas", ou "as leis morais ditadas pela Razão", às quais o conhecimento e as práticas humanas devem-se adequar, sob pena de privar o homem de sua humanidade. Longe de desacreditar as ciências da natureza (pelas quais, embora seu conhecimento não fosse muito profundo, nutria extremo respeito) ou os padrões da moralidade (espelhados em uma vida irrepreensível), Hume esforçou-se mais do que qualquer outro filósofo de sua época para dar-lhes um fundamento mais sólido e convincente do que a frágil sustentação na razão humana, repetida desde Aristóteles até Descartes.

A recepção do Tratado constitui um fato notável da história editorial: não há notícia de nenhuma obra filosófica de importância que tenha recebido uma acolhida inicial tão desfavorável. E, rigorosamente, nem se pode falar de recepção desfavorável. Nada teria deixado Hume mais satisfeito do que suscitar polêmicas, atrair ataques e ser duramente criticado. Isto lhe teria permitido assumir o centro de um debate, responder aos argumentos contrários e assegurar sua própria notoriedade. Ao invés disso, não encontrou senão o mais absoluto silêncio e indiferença. A indignação contra suas idéias permaneceu oculta e bem guardada nos círculos acadêmicos e eclesiásticos oficiais, e manifestou-se sob a forma de um bloqueio sistemático a todas as tentativas de Hume de obter uma posição universitária, ao longo de toda sua vida.

O fracasso do Tratado ensinou a Hume uma amarga lição. Acreditando que a má sorte se deveu não ao conteúdo mas à forma pesada de sua exposição, extraiu dele duas outras obras mais curtas, nas quais procurou dar um tom acessível ao texto, eliminar os meandros argumentativos e cuidar ao máximo da clareza da expressão. São elas as duas Investigações: sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, extraídas respectivamente da primeira e da terceira parte do Tratado e publicadas em 1748 e 1751 (uma terceira obra, extrato da segunda parte do Tratado e publicada em 1757, carece de maior relevância). Esta conversão estilística a uma prosa mais fluente e compreensível marcou todo o restante de sua produção literária e filosófica, granjeando-lhe a tão cobiçada e merecida reputação como um dos maiores homens de letras de seu tempo.

Uma comparação aprofundada entre o Tratado e as Investigações constitui assunto complexo, próprio de especialistas, e não precisa nos ocupar aqui. Registre-se apenas que, enquanto a Investigação sobre o entendimento humano pode ser razoavelmente considerada como um sumário da primeira parte do Tratado, desenvolvendo-se segundo as mesmas linhas gerais e desembocando em conclusões assemelhadas, o caso da segunda Investigação, a obra aqui traduzida, apresenta problemas especiais. De fato, trata-se de um texto que apresenta notáveis diferenças com relação ao texto que lhe deu origem, e essas diferenças não se resumem apenas à ordem em que os temas são apresentados, ou à ênfase que recebem em cada caso. Na opinião de um conceituado intérprete como Selby-Bigge, as mudanças são de tal ordem a ponto de ser possível dizer que o todo o sistema de moral é essencialmente distinto nos dois casos.

Como se disse, porém, não é razoável nem necessário estendermo-nos neste momento sobre tais questões. Aqui, o leitor poderá beneficiar-se da recomendação do próprio Hume, de que as duas Investigações, e apenas elas, devem ser tomadas como a expressão final e definitiva de suas idéias e princípios filosóficos. O scholar, é verdade, discordará, e continuará dando preferência ao texto mais denso, profundo e desafiador do Tratado. Mas o leitor culto e educado, para quem a filosofia não é um meio de vida mas fonte de princípios e ensinamentos, e que busca antes o conteúdo substancial do que os penosos caminhos das réplicas e tréplicas, este leitor poderá de imediato entregar-se a um dos textos mais ricos e fascinantes da prosa filosófica, e seguir com tranqüilidade o fio da exposição lúcida, atraente e motivadora de um dos grandes filósofos de todos os tempos. Pois, afinal, esse foi o leitor que Hume teve em vista, e para quem dedicou preferencialmente seu trabalho.

Concluo com algumas informações sobre a presente tradução. Seguiu-se o texto contido nas Enquiries concerning Human Understanding and concerning the Principles of Morals (3ª edição, 10ª reimpressão, Oxford: Clarendon Press, 1989), estabelecido por L. A. Selby-Bigge a partir da edição póstuma de 1777, com revisão e notas de P. H. Nidditch. Até que se disponha de uma edição crítica definitiva, este texto permanece como a fonte mais autorizada e digna de confiança no que se refere a esta obra de Hume. O emprego dos sinais de pontuação e das letras maiúsculas e itálicas foi modificado para refletir as modernas convenções, que são significativamente diferentes daquelas usualmente praticadas no século 18. Todas as notas de rodapé numeradas são de autoria do próprio Hume, e sempre que se acrescentou alguma informação (como dados bibliográficos mais completos ou traduções para o português de citações originalmente em língua grega ou latina) esse acréscimo aparece entre colchetes. As poucas notas adicionais são introduzidas por meio de asteriscos, e destinam-se principalmente a prover informações sobre vultos ou acontecimentos históricos que não são hoje tão familiares como o eram na época de Hume.

Mantendo-se absolutamente fiel à obra original, a tradução evita, contudo, uma literalidade ingênua que poderia pôr a perder, pelo uso de construções artificiais e inusitadas na língua portuguesa, a fluência e as qualidades literárias do texto humeano. A Investigação sobre os princípios da moral foi considerada por Hume como o melhor de todos os seus escritos, tanto do ponto de vista filosófico como literário; uma opinião que, sem dúvida, transfere para os ombros do tradutor uma pesada responsabilidade. Ao preparar este material para o público leitor brasileiro, não poupei esforços para obter um resultado que, pela clareza, compreensibilidade e elegância, fosse capaz de enfrentar, sem desmerecimento, uma comparação com a versão original.

 
José Oscar de Almeida Marques
Campinas, dezembro de 1994
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