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JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES
 
 



 
 
 
 
 
 

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do Prof. Dr. Michael Wrigley

Comissão Julgadora:

Profª Drª Ítala M. L. d'Ottaviano (Unicamp)
Prof. Dr. João Vergílio G. Cuter (USP)
Prof. Dr. Luiz Carlos P. D. Pereira (UFRJ, PUC-RJ)
Prof. Dr. Michael B. Wrigley (Unicamp)
Prof. Dr. Paulo Roberto Margutti Pinto (UFMG)
 
 

1998
 


Sumário

Introdução

1 Os objetivos do Tractatus
1.1 O sistema de Frege
1.2 O sistema dos Principia Mathematica
1.3 O Tractatus e a natureza da lógica
1.4 O Tractatus e a natureza da linguagem
1.5 O Tractatus e a natureza da filosofia
2 O referencial ontológico
2.1 Contingência e complexidade
2.1.1 O modelo mereológico
2.1.2 Inadequações do modelo mereológico
2.1.3 O modelo booleano
2.2 Necessidade e simplicidade
2.2.1 Os estados de coisas como combinações de objetos
2.2.2 Os objetos como a substância do mundo
2.3 Categorias
2.4 Espaço, tempo e mudança

3 O sistema da linguagem
3.1 A proposição em geral
3.2 A proposição como função de verdade de proposições elementares
3.3 A proposição elementar como figura de um fato
3.4 Funções, protótipos e generalidade
4 Forma e representação
4.1 Pensamento e projeção
4.2 Modelos projetivos
4.2.1 O modelo de Griffin
4.2.2 O modelo de Anscombe
4.2.3 O modelo de Shwayder
4.2.4 O modelo holístico
4.3 Proposições completamente generalizadas
Conclusão: O mundo na perspectiva correta

Referências Bibliográficas

Índice das Citações do Tractatus


Introdução

Meu assunto neste trabalho é a teoria da representação formulada por Ludwig Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus. Por uma "teoria da representação" entendo uma explicação das relações entre o domínio dos símbolos e o domínio das coisas. Em termos concisos, meu objetivo é mostrar que essas relações, que subjazem a todos os enunciados factuais sobre o mundo, não repousam, elas próprias, sobre nenhuma base factual, mas fundam-se exclusivamente nas correspondências formais que vigoram entre esses dois domínios. O conjunto de implicações que associo aqui à palavra "formal" ficará melhor caracterizado ao longo da exposição; de início basta observar que a tomo primordialmente em sua oposição a "material" ou "empírico". Como espero mostrar, ao compreendermos que a teoria da representação exposta no Tractatus é, nesse sentido, uma teoria formal da representação, conseguiremos remover alguns importantes obstáculos que dificultam a interpretação tanto de aspectos técnicos particulares como dos objetivos filosóficos mais gerais do texto de Wittgenstein.

O Tractatus é um texto já tão extensamente discutido e analisado que pode parecer temerário tomá-lo como tema de uma tese de doutoramento. Que haveria, ainda, a acrescentar à multidão de comentários dos pesquisadores que dele vêm se ocupando há tantas décadas? Que nova perspectiva poderia ser adotada diante dessa obra que tivesse até agora passado despercebida aos analistas? Será que estamos, aqui, em território em que se possa esperar ainda alguma revelação? Parece-me oportuno, antes de prosseguir, tentar dar uma breve resposta a essas considerações.

O que há de mais fascinante no texto do Tractatus é que as proposições que o compõem parecem constituir apenas a superfície textual visível de uma elaboração filosófica cujo efetivo desdobramento estaria se dando em um nível muito mais profundo do que aquele que surge imediatamente à vista; assim, ele atiça nossa curiosidade com uma promessa de revelações ocultas. É claro que, em maior ou menor grau, todo texto filosófico contém essas camadas mais profundas, mas o estilo aforístico e fragmentário em que Wittgenstein escreveu seu livro torna muito mais forte essa impressão. E, confrontados com as obscuridades, lacunas e aparentes inconsistências do texto, atrai-nos a idéia de que elas chegariam a encontrar sua solução definitiva se viéssemos a penetrar além da superfície textual, se descobríssemos a chave correta de sua interpretação.

O desafio de encontrar essa chave pode certamente atuar como uma motivação para os que se aproximam do Tractatus e elegem-no como tema de sua investigação. Essa seria a meta "grandiosa": apresentar uma leitura integral do texto capaz de resolver todas dificuldades tradicionalmente encontradas pelos comentadores, e unificar, em um todo coerente, os múltiplos planos em que se desenrola sua exposição.

Infelizmente, o quanto esse projeto tem de fascinante e estimulador, também tem de ilusório e frustrante. Pois, embora contido em poucas páginas, o escopo do Tractatus é imenso, cobrindo em maior ou menor grau todo o leque de problemas filosóficos tradicionais. Das considerações iniciais sobre a estrutura da realidade, passando por uma teoria da lógica, da linguagem e do discurso valorativo, até a reflexões críticas finais sobre a natureza da própria atividade filosófica, abre-se um campo de investigações tão amplo e variado que parece de antemão destinar ao fracasso qualquer tentativa de abrangê-lo em um plano interpretativo contínuo, especialmente porque, apesar da aparência de sistematicidade do método de numeração dos aforismos, a exposição de Wittgenstein está muito distante dos procedimentos pelos quais os textos filosóficos comumente introduzem suas teses, desenvolvem seus argumentos e estabelecem suas conclusões. Não é de surpreender que uma interpretação coerente e integral do Tractatus jamais tenha sido produzida - a chave não está apenas perdida: é mesmo duvidoso que tenha alguma vez existido.

Se a meta "grandiosa" não é alcançável, resta muito trabalho relevante que pode ser e vem sendo realizado no campo da interpretação do Tractatus. Uma possibilidade muito explorada consiste em tomá-lo em seu contexto histórico, examinando como o texto apreende, reformula e desenvolve alguma problemática conceitual preexistente. Para esse fim, os temas discutidos por Frege e Russell em suas obras pioneiras sobre a lógica matemática aparecem como candidatos privilegiados. Por exemplo, pode-se examinar a teoria da significação no Tractatus como um desdobramento das idéias originais de Frege acerca do sentido e da referência das partes da proposição, contrastar suas teses ontológicas com o atomismo lógico de Russell e, mais particularmente, buscar extrair da concepção tractariana da lógica um argumento contra o projeto de fundamentação logicista da aritmética proposto por Frege e Russell.

Em todos esses casos, o Tractatus é tomado como o lugar de superação ou aperfeiçoamento de perspectivas filosóficas que o precederam, mas é igualmente possível uma abordagem que vai na direção contrária: o exame de certos temas do Tractatus como uma propedêutica para o estudo das obras posteriores do autor. O próprio Wittgenstein foi responsável pela importância que se dá a este tipo de abordagem, ao afirmar no Prefácio das Investigações Filosóficas que estas só poderiam ser corretamente entendidas quando contrastadas com seu antigo modo de pensar. Com isso o Tractatus, que antes da década de 50 aparecia apenas como o superado protocatecismo dos positivistas lógicos, adquiriu novos atrativos aos olhos dos interessados em questões filosóficas mais amplas, e tornaram-se comuns as exposições do pensamento de Wittgenstein que começam com uma apreciação geral das idéias do Tractatus, buscando exatamente compor um pano de fundo contra o qual se procede ao exame da "segunda filosofia" do autor.

Ao lado dessas abordagens que se poderia denominar históricas, por tomarem o livro de Wittgenstein como uma etapa (inicial ou final) de um processo mais amplo de desdobramentos conceituais, é possível identificar ainda uma abordagem sistemática, que concebe o texto de Wittgenstein não como um momento de um debate histórico mas como repositório de conceitos e princípios capazes de contribuir para o tratamento e elucidação de questões filosóficas presentes. Um exemplo é o conhecido livro de Stenius, no qual se defende a idéia de que a chamada "teoria afigurativa da proposição" - ou seja, a concepção da proposição como "figura" (Bild) do fato que descreve - é capaz de prover um eficiente modelo para o tratamento dos problemas semânticos da moderna filosofia da linguagem. Nessa perspectiva, mais do que simplesmente prover uma exegese de seu conteúdo, o que se pretende é antes testar a fecundidade das idéias de Wittgenstein, desenvolvendo-as em novas direções e desconsiderando, se necessário, aquelas partes da obra que se revelam problemáticas ou prejudiciais a essa finalidade. Assim, Stenius não hesitou em reconstruir muito da exposição do Tractatus, de modo a tornar suas teses semânticas independentes da metafísica do atomismo lógico que ele, Stenius, considerava inaceitável.

Este breve apanhado de algumas das maneiras pelas quais se pode conduzir uma investigação sobre o Tractatus permite caracterizar o caminho seguido no presente trabalho. Ele assemelha-se, de um lado, à abordagem sistemática, por não se dedicar a uma investigação da gênese ou dos desdobramentos históricos das questões estudadas: toda a discussão estará confinada aos limites dados pelo próprio texto. Por outro lado, à maneira da abordagem histórica, os tópicos são tratados de maneira puramente exegética, sem a preocupação de tornar os resultados do Tractatus mais plausíveis ou suas conclusões aplicáveis a domínios mais gerais da investigação filosófica. Impõe-se a meta de uma leitura estritamente interna do texto, seja porque nada lhe vem de fora, sob a forma de história, seja porque nada se dirige dele para fora, sob a forma de aplicação.

A uma proposta programática assim restrita deve corresponder, como compensação, uma discussão relativamente aprofundada. Não tentei abarcar a miríade de detalhes que surgem ao longo do percurso expositivo do Tractatus, preferindo, ao contrário concentrar os esforços em um único tema. Mas a visão de conjunto não ficou com isso abandonada, pois a teoria da representação constitui, como procurarei mostrar, o eixo central em torno do qual se hierarquizam os objetivos que Wittgenstein buscou alcançar com seu livro, e provê um ponto de vista unificador a partir do qual seu projeto filosófico pode ser mais vantajosamente compreendido.

O pleno esclarecimento, contudo, é algo inalcançável. O Tractatus é, e continuará a ser, uma obra difícil, cujas ramificações mergulham em uma obscuridade que se diria deliberada. Após muitos anos de atenção às questões de interpretação do Tractatus, convenci-me, porém, de que essas ramificações procedem de um núcleo que, ele próprio, pode ser exposto claramente. Assim, se a busca de uma chave interpretativa universal deve ser abandonada, resta o desafio mais factível e não menos estimulante de localizar e descrever sua espinha dorsal, isto é, a teoria das relações entre linguagem e realidade. Essa foi a tarefa na qual concentrei meus esforços, e a principal razão para ter-me decidido a escrever este trabalho é a crença de que tenho algo a dizer sobre o assunto que talvez até agora não tenha sido enunciado claramente em outros estudos.

Dividi o texto em quatro capítulos. No primeiro, de caráter geral e introdutório - e o único que contém uma exposição de caráter histórico -, apresento minha leitura das motivações filosóficas que levaram Wittgenstein a escrever seu livro, e procuro justificar minha posição metodológica de que o desvendamento do mecanismo da representação lingüística, ou das relações representativas entre linguagem e realidade, constitui o núcleo central do empreendimento de Wittgenstein, e o instrumento indispensável para que o Tractatus alcance seu objetivo último, que é o traçado dos limites entre o que pode e o que não pode ser expresso na linguagem.

A investigação em profundidade da relação de representação pressupõe a conceituação prévia dos dois domínios que ela põe em contato: o domínio ontológico do que é representado, que no Tractatus consiste no mundo, ou realidade, e o domínio simbólico em que a representação se realiza, que é a linguagem. Essa é a tarefa dos dois capítulos seguintes, dedicados respectivamente a expor as características fundamentais de cada um desses domínios e explorar alguns dos problemas conceituais que, no Tractatus, a eles se associam.

O quarto e último capítulo constitui propriamente o cerne do trabalho, e nele forneço uma interpretação em termos puramente formais da maneira pela qual linguagem e realidade se articulam no Tractatus. Mostro que um mecanismo puramente formal da representação é possível e, mais ainda, que é capaz de resolver algumas importantes dificuldades comumente enfrentadas quando se busca explicar essa articulação.

Reservo para a Conclusão uma breve discussão e defesa da posição que assumi tacitamente ao longo de todo a investigação, a saber, o realismo semântico do Tractatus e a existência extra-lingüística do mundo, dos fatos e dos objetos. Trato de responder, com isso, a intérpretes que consideram que as teses ontológicas formuladas no início do texto são, em última análise, desautorizadas pelas conclusões finais do Tractatus acerca da natureza e limites da atividade filosófica.

* * *

As passagens do Tractatus são referidas da maneira usual, por meio da numeração que Wittgenstein apôs aos aforismos, acrescentando-se quando necessário as letras a, b, c etc. para distinguir os parágrafos de um mesmo aforismo. Ao final do volume estão indexadas todas as referências feitas a passagens do Tractatus no decorrer do trabalho.

Mantive na língua original as citações em inglês provenientes da literatura secundária. Para tornar a exposição mais fluente, traduzi para o português as citações de Wittgenstein sempre que me pareceu não haver razões de natureza analítica ou terminológica que recomendassem a preservação do idioma original.

As referências bibliográficas foram deliberadamente reduzidas a um mínimo e não pretendem refletir o grande volume de textos que li e reli ao longo dos anos em que desenvolvi a pesquisa. Em particular, não me impus a tarefa de apresentar e criticar as interpretações de que discordo. Meu objetivo aqui é apresentar uma interpretação original, não discutir as numerosas controvérsias e divergências interpretativas a que o Tractatus tem dado origem. Por isso, as passagens e autores citados foram selecionados em função de sua utilidade para a condução de meu argumento e explicitação de minha perspectiva. Minha escolha de comentários clássicos em língua inglesa dos anos 60 e início dos 70 resulta, é certo, de minhas preferências estilísticas pessoais, mas também do fato de que foi nas exposições lúcidas e vigorosas dessas obras que primeiramente encontrei, como que in statu nascendi, os materiais e instrumentos para forjar minha própria interpretação. De qualquer forma, este é um trabalho sobre o Tractatus, não sobre a literatura secundária, e terá cumprido sua função se conseguir comunicar ao pesquisador alguns novos insights sobre um tópico que é, seguramente, central para a compreensão de um dos mais importantes e influentes textos filosóficos do século 20.
 

JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES

Departamento de Filosofia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Estadual de Campinas

E-Mail: jmarques@unicamp.br
Web: http://www.unicamp.br/~jmarques


O texto completo em formato PDF pode ser obtido na Biblioteca Digital da UNICAMP:
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