Rousseau e os paradoxos da liberdade

Conferência apresentada no Colóquio Internacional “Religião e Política em Rousseau: em torno das Cartas escritas da montanha”, promovido pelo Departamento de Filosofia da FFLCH-USP e o Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, realizado na PUC-SP de 11 a 13 de setembro de 2006.

 

José Oscar de Almeida Marques

Departamento de Filosofia - Unicamp

 

Afin donc que le pacte social ne soit pas un vain formulaire, il renferme tacitement cet engagement qui seul peut donner de la force aux autres, que quiconque refusera d’obéir à la volonté générale y sera contraint par tout le corps : ce qui ne signifie autre chose sinon qu’on le forcera d’être libre ; car telle est la condition qui donnant chaque Citoyen à la Patrie le garantit de toute dépendance personnelle ; condition qui fait l’artifice et le jeu de la machine politique, et qui seule rend légitimes les engagements civils, lesquels sans cela seraient absurdes, tyranniques, et sujets aux plue énormes abus. (Du contract social I.7, OC iii 364)

            A célebre passagem, ao final do Livro I do Contrato social, em que Rousseau recomenda a coerção, pelo corpo político, daquele que se recusar a obedecer à vontade geral, e acrescenta que isso equivale a “forçá-lo a ser livre”, tem provocado a perplexidade, se não mesmo a hostilidade, de comentadores que vêem aí uma clara manifestação de que Rousseau endossa a submissão incondicional do indivíduo à vontade coletiva. É difícil, entretanto, negar que a vida em sociedade exige restrições da liberdade de cada indivíduo, para torná-la compatível com a liberdade dos demais. Assim, o que surpreende na afirmação de Rousseau não é tanto que coerções devam ser impostas, mas que sejam elas, essencialmente, que tornam o homem livre, como Rousseau afirma no final da passagem citada. O caráter paradoxal de todo o raciocínio se acentua quando se leva em conta que, algumas páginas antes, Rousseau havia descrito o objetivo fundamental de seu livro como a busca de uma forma de associação em que cada um, unindo-se a todos, não obedecesse senão a si mesmo, e continuasse tão livre quanto antes (I.6; OC iii 360). 

            A resolução do paradoxo exige uma compreensão mais detalhada da noção de liberdade tal como entendida por Rousseau. Para isso, algumas observações contidas na oitava das Cartas escritas da montanha podem trazer importantes esclarecimentos:

On a beau vouloir confondre l’indépendance et la liberté. Ces deux chose sont si différentes que même elles s’excluent mutuellement. Quand chacun fait ce qu’il lui plait, on fait souvent ce qui déplait à d’autres, et cela ne s’appelle pas un état libre. La liberté consiste moins à faire sa volonté qu’à n’être pas soumis à celle d’autrui ; elle consiste encore à ne pas soumettre la volonté d’autrui à la nôtre. […] Je ne connois de volonté vraiment libre que celle à laquelle nul n’a droit d’opposer de la résistance ; dans la libertécommune nul n’a droit de faire ce que la liberté d’un autre lui interdit […] Il n’y a donc point de liberté sans Loix, ni où quelqu’un est au dessus des Loix

            Estas observações trazem imediatamente à mente a familiar distinção entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva” (cf., entre outros, Berlin, 1958). Rousseau, poder-se-ia propor, não concebe a liberdade como simples ausência de impedimentos ao exercício da vontade (liberdade negativa), mas considera que agir livremente é agir de acordo com uma regra auto-imposta mediante considerações racionais, em vista do que é melhor para nós (liberdade positiva). Como pretendo mostrar, entretanto, essa distinção não captura corretamente toda a complexidade da noção de liberdade em Rousseau e, de resto, essa própria clivagem da noção de liberdade em “negativa” e “positiva” parece ser conceitualmente mal-fundamentada (cf. MacCallum, 1967).

            Mas ainda que se admitisse que Rousseau é um proponente da “liberdade positiva”, no sentido de Berlin, nosso paradoxo não estaria satisfatoriamente resolvido. De fato, qualquer liberdade digna desse nome deve ser consciente de seu fim. Se minha vontade inicial, inicialmente em desacordo com a vontade geral, for conscientemente modificada em razão de minha melhor compreensão dessa vontade geral, eu estarei fazendo o que quero e, com isso, ajo livremente. Mas se não cheguei a compreender qual é a vontade geral, e sou forçado a agir segundo ela, então é difícil aceitar que esteja agindo livremente.

            Assim, abandonando a idéia de que Rousseau teria nos apresentado um novo conceito de liberdade, meu objetivo será o de mostrar que Rousseau investigou, mais profundamente que seus antecessores, as condições que devem presidir ao exercício da liberdade política de forma compatível com os requisitos da vida em sociedade. A posição de Rousseau só pode ser corretamente compreendida se levarmos a sério as severas exigências que devem ser atendidas por uma sociedade para que ela possa se organizar politicamente segundo os princípios do Contrato Social; exigências essas que, em nossas modernas sociedades  heterogêneas, fragmentadas e em permanente conflito interior –, não podem mais ser satisfeitas e, nem sequer, compreendidas, como mostram as reações ora escandalizadas, ora eufemísticas, que as palavras de Rousseau costumeiramente despertam nos que estudam seu pensamento.

REFERÊNCIAS

ALICI, Luca. Rousseau e il repubblicanesimo (2001). Bollettino telematico di filosofia politica. Publicação online http://bfp.sp.unipi.it/art/alici.html

BERLIN, Isahia. Two Concepts of Liberty (1958) In Four Essays on Liberty, Oxford University Press, 1969.

MacCALLUM, Jr. Gerald C. Negative and Positive Freedom. The Philosophical Review v.76 n.3 (Jul. 1967) p. 312-344.

 

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