Volta

 

Starobinski leitor de Rousseau: religião e retórica na história das origens

Thomaz Massadi Teixeira Kawauche

Universidade de São Paulo

 

Qual seria o lugar do tema da religião em um estudo que tratasse da gênese e da estrutura do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens? Num primeiro momento, poderíamos dizer que, na análise dessa obra, há mais para se falar sobre a religião de Rousseau fora do texto do que no texto propriamente dito. Isso por dois motivos. Primeiro, porque ao analisarmos o conteúdo do chamado Segundo discurso, não encontramos nele nenhum espaço adequado para o Deus da tradição cristã, de tal maneira que fica impossível associar as idéias ali presentes a qualquer tipo de “teologia” ou “profissão de fé” (tanto assim que, por esse texto, Rousseau foi considerado ateu); além disso, num sentido estritamente estruturalista, a arquitetura do texto resultante do método hipotético-dedutivo aplicado por Rousseau no tempo lógico do Discurso não revela outra coisa senão esquemas de uma ciência do homem, a etnologia, sem absolutamente nada de sobrenatural (estou lembrando, é claro, de Lévi-Strauss). Segundo, porque é exatamente nas circunstâncias de composição não apenas do Discurso sobre a desigualdade, mas principalmente de seu predecessor, o Discurso sobre as ciências e as artes, que a religião de Rousseau aparece de modo determinante: é no relato da gênese desses escritos que encontramos o vocabulário religioso do Cidadão de Genebra, o qual se refere à sua inspiração para escrever os discursos em termos de uma revelação divina, uma iluminação, um êxtase místico, como atestam as Confissões e a segunda carta a Malesherbes.

Não podemos negar que a religiosidade de Rousseau seja, de fato, responsável pela criação de um certo clima religioso, e até mesmo uma certa atmosfera mística, envolvendo o nascimento dos dois discursos para a Academia de Dijon. Isso, aliás, torna plenamente compreensível que um comentador como Michel Launay, em Rousseau écrivain politique, atribua importância ao pensamento religioso de Rousseau na formação de seu pensamento político e refira-se ao Segundo discurso como “o lugar onde Rousseau se debateu com a contradição suscitada nele por sua dupla formação devota e filosófica”. Outro comentador importante, Pierre-Maurice Masson, em seu clássico La religion de Jean-Jacques Rousseau, também ressalta o peso da formação religiosa de Rousseau na gênese do Segundo discurso, chegando a afirmar que todos os raciocínios ou conjeturas filosóficas desse texto encontram-se, de alguma maneira, limitados pelas concepções cristãs de Rousseau. Contudo, não podemos negar também que tais argumentos, sejam os de Launay, sejam os de Masson, são insuficientes para autorizar qualquer tipo de estudo do tema “religião” no interior do texto de Rousseau. Ainda que Launay demonstre a existência de todo um contexto religioso na formação do escritor político Jean-Jacques Rousseau, e ainda que Masson demonstre que a filosofia política rousseauniana esteja subordinada à fé cristã de nosso autor, não decorre desses pareceres que o tema “religião” possa ser estudado mediante uma análise estrutural (no sentido mais radical do termo) do Segundo discurso. Daí o nosso interesse na leitura que Jean Starobinski faz desse texto tão peculiar de Rousseau.

Se admitirmos a existência de certos paralelos que podem ser traçados entre alguns elementos do Segundo discurso e elementos da narrativa bíblica, como, por exemplo, o paraíso (correspondente ao estado de natureza) e a queda (correspondente à passagem do estado de natureza para o estado civil), poderemos ter uma primeira idéia do que Starobinski quer dizer quando afirma que os esquemas da teologia cristã constituem “os modelos estruturais segundo os quais o pensamento de Rousseau se organiza”. Em que sentido a religião de Rousseau poderia estar presente na estrutura do Segundo discurso, esse é o assunto deste trabalho, que tem como base um parágrafo da introdução de Starobinski ao Discurso sobre a origem da desigualdade, nas Œuvres complètes da Pléiade. O que pretendemos mostrar aqui é que tal afirmação indica algo mais que uma simples analogia entre elementos constituintes do texto de Rousseau e das Escrituras: antes, queremos mostrar que Starobinski nos remete a um problema clássico da retórica, qual seja, o problema da forma de comunicação entre Rousseau e os destinatários de seu discurso.

 

Se é verdade que, de todos os escritos de Rousseau, este ocupa o menor lugar na exposição de suas convicções cristãs, não é apenas porque está marcado pelo espírito da Enciclopédia e pela influência de Diderot; é também porque, formulado como uma revelação do humano, esse Discurso é integralmente um ato religioso de uma espécie particular, que substitui a história santa. Rousseau recompõe um Gênese filosófico em que não faltam o jardim do Éden, nem a culpa, nem a confusão das línguas. Versão laicizada, “desmistificada” da história das origens, mas que, suplantando a Escritura, repete-a em uma outra linguagem. Essa linguagem é a da reflexão conjetural, e toda sobrenatureza dela está ausente. Estando anulada a teologia cristã, seus esquemas constituem, no entanto, os modelos estruturais segundo os quais o pensamento de Rousseau se organiza. (Œuvres complètes, v. III, p. LII-LIII)

 

Como bem se sabe, Starobinski interpreta Rousseau partindo do pressuposto que a vida e a obra de Jean-Jacques não podem ser dissociadas. Não é o caso de entrarmos aqui nessa complicadíssima discussão, e nem de tentarmos entender de maneira apropriada as sutilezas da leitura que Starobinski faz do texto de Rousseau. O que nos importa neste trabalho é simplesmente lembrar que Starobinski freqüentemente se refere ao pensamento de Rousseau em termos de símbolos associados à tradição cristã, tais como o Jardim do Éden, o Cristo e o Dia do Juízo, procurando associar esses símbolos a episódios da trajetória de vida de Jean-Jacques, como se a biografia do Cidadão de Genebra fosse uma espécie de repetição da história santa em versão secularizada, “desmistificada”. Isso pode ser constatado em outros textos de Starobinski, principalmente no clássico A transparência e o obstáculo e no artigo “Jean-Jacques Rousseau e o perigo da reflexão”.

Evidentemente, essa fórmula de Starobinski não deixa de ser uma implicação imediata do pressuposto da unidade entre vida e obra do Cidadão de Genebra, podendo ser verificada muito facilmente nos escritos autobiográficos de Rousseau, notadamente, nas Confissões. Todavia, devemos observar que, nessa análise de Starobinski, não se trata simplesmente de tomar a ética e a filosofia política de Rousseau como se fossem expressões de uma teologia laicizada ou de um pensamento religioso dessacralizado. Isso seria simplificar demais não apenas a análise de Starobinski, mas também o próprio pensamento de Rousseau.

É verdade que Rousseau parece ir contra o pensamento teológico da tradição cristã de sua época, até mesmo tentando subvertê-lo, como entendem os críticos de sua religião civil e de sua religião natural no século XVIII. Mas dizer que as obras filosóficas de Jean-Jacques, como o Contrato social e o Emílio, realizam tal subversão da teologia cristã, isso já seria valorizar demais o peso da religião nos estudos sobre Rousseau, em detrimento de outros temas que têm sido explorados nas pesquisas mais recentes (veja-se, por exemplo, as teses de Ricardo Monteagudo e de Jacira de Freitas, além dos trabalhos de José Oscar Marques). E mais: nessa ressalva, estamos pensando apenas em obras que tratam explicitamente do tema da religião. O que dizer então do Discurso sobre a origem da desigualdade, um texto que o próprio Starobinski reconhece não ocupar para Rousseau senão “o menor lugar na exposição de suas convicções cristãs”?

O que diferencia a leitura de Starobinski de outras leituras, como a de Launay e a de Masson, não está apenas no fato de ele falar em esquemas da teologia cristã na estrutura do Segundo discurso, mas principalmente no esforço que ele dispende para estabelecer um paralelo entre o discurso teológico do cristianismo e o discurso filosófico de Rousseau. Starobinski afirma que Rousseau “recompõe um Gênese filosófico”, que o Discurso “substitui a história santa”, mas não querendo com isso fazer um ataque direto ao discurso cristão das origens, como seria de se esperar dos enciclopedistas. O que o Rousseau de Starobinski deseja é tão-somente fazer uma repetição das Escrituras em “versão laicizada”: quanto à história santa, o Discurso “repete-a em uma outra linguagem”. Percebemos então que o foco do Rousseau de Starobinski não está apenas no conteúdo de seu discurso, mas também na forma desse discurso, ou ainda, na maneira pela qual ocorre a comunicação entre o autor e seus leitores.

Devemos agora tentar entender por que Rousseau escolhe repetir a forma do discurso teológico e não de outro qualquer. Sem entrarmos no mérito das teorias sobre retórica e dos motivos pessoais que conduzem as escolhas de Rousseau, podemos observar que no processo comunicativo entre Rousseau e os destinatários de seu discurso, Starobinski enxerga uma analogia direta entre a relação escritor-leitores e a relação orador-auditório. Um parágrafo antes nesse mesmo comentário de Starobinski, ele afirma: “Rousseau preludia com solenidade. (...) Antes de evocar o homem silencioso dos primeiros tempos, Jean-Jacques se colocou em cena na atitude do orador, e dispôs à sua volta um auditório.” Nesse sentido, a repetição da história das origens extrapola a questão textual – a discussão vai muito além dos esquemas da teologia cristã, devendo ser compreendida numa perspectiva mais pragmática que estrutural: queremos dizer que a repetição da qual fala Starobinski se relaciona não com os esquemas, mas com o sucesso comunicativo que se consegue pelo uso desses esquemas. Estamos, portanto, diante de um problema clássico da retórica: importa menos o conteúdo do discurso do que a persuasão do orador e a adesão do auditório. Se levarmos em conta ainda o tamanho do auditório de Rousseau, composto não apenas pela República de Genebra, mas, em última instância, por toda a humanidade – pois Rousseau se dirige ao homem em geral: “Oh! homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, ouve-me; eis tua história (...)”–, teremos mais uma razão para pensar que o nosso orador busca uma persuasão universal (que não deve ser confundida com um discurso universal (1))- , bem ao estilo do legislador do Contrato, ou seja, uma persuasão divina capaz de atingir todos os corações, por mais diferentes que sejam, de modo a transformar a natureza humana. Podemos então dizer que, para o Rousseau de Starobinski, a repetição do discurso teológico das origens em outra linguagem é algo que não se explica adequadamente apenas com uma análise interna de texto – uma análise estrutural, digamos –, uma vez que a escolha de Rousseau se dá, antes de tudo, por uma questão de retórica. Não devemos nos espantar, portanto, se chegamos à conclusão que Starobinski lê Rousseau baseado em uma teoria do discurso. Tal constatação nos remete, é claro, ao famoso ensaio de Bento Prado Jr., “Lecture de Rousseau”, em que lemos o seguinte:

 

A obra de Rousseau é comandada pelos princípios da retórica que ele propõe e sua aparente excentricidade – falta de unidade ou de coerência – desaparece se a leitura se faz segundo uma centração retórica. A unidade do pensamento de Rousseau pode ser mostrada no movimento mesmo de seus escritos, ou seja, segundo a estratégia da persuasão ou segundo a ordem da argumentação.

 

A hipótese do Prof. Bento, de que a retórica ocupa um lugar central na obra de Rousseau, cabe perfeitamente neste nosso trabalho. Deixemos um pouco de lado a “ordem da argumentação” e tentemos nos concentrar na “estratégia de persuasão” de Rousseau para com seu auditório. Para isso, vejamos algumas passagens-chave do Discurso sobre a desigualdade, não com o intuito de analisá-las em seu contexto, mas apenas tentando verificar nessas passagens a tal “estratégia de persuasão” de que fala o Prof. Bento. Vou me ater apenas aos pontos mencionados por Starobinski: o Jardim do Éden, a culpa e a confusão das línguas.

O Jardim do Éden é a hipótese do estado de natureza. “Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão” é uma frase que os comentadores costumam entender como uma referência ao discurso teológico. Goldschmidt discute a possibilidade de que tais “fatos” possam se referir a fatos históricos em geral e não apenas a “fatos teológicos”, mas de qualquer maneira, o que nos importa é perceber a estratégia de Rousseau: ao desviar a atenção de seu auditório da realidade histórica, seja ela bíblica ou secular, Rousseau promove a criação de um ambiente favorável à adesão. Se os fatos não entram na discussão e se tudo o que se tem são hipóteses, então o conteúdo do Discurso está sujeito unicamente a contestações lógicas, relacionadas apenas ao procedimento dedutivo de Rousseau, e não à fidelidade aos relatos dos livros. Podemos afirmar o mesmo do estado de natureza: “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá”. Como explica Goldschmidt, “O estado de natureza é fechado sobre si mesmo; não há nada de comum entre ele e o estado civil”, o que faz do jardim do Éden de Rousseau um lugar razoável de ser pensado por todos, crentes ou ateus, haja visto tratar-se apenas de uma abstração, uma hipótese. Não é preciso ser religioso para raciocinar a partir de uma hipótese.

Da mesma maneira, a culpa, também presente no Discurso, é colocada por Rousseau acima de toda contestação particular, uma vez que ela não é atribuída a nenhum indivíduo específico do auditório, como ocorre no discurso da teologia, segundo o qual, a começar por Adão, todos são culpados. Ao invés disso, Rousseau atribui a culpa à sociedade em geral, e consagra a conhecida fórmula: o indivíduo é bom, mas a sociedade o corrompe. Neste caso, a culpa é de todos, mas ao mesmo tempo, não é de ninguém. Como explica Ernst Cassirer, a grande novidade de Rousseau foi transferir a culpa da esfera individual para a esfera social. Dessa forma, o escândalo causado pela famosa tese de Rousseau de que “o homem é naturalmente bom” se dá por falta de compreensão da situação retórica em que ela é feita, isto é, da estratégia de persuasão que a anima. Antes de dizermos que Rousseau está combatendo o dogma do pecado original, devemos notar que ele está tentando ganhar a simpatia de um auditório, evitando acusar quem quer que seja de uma culpa originária, como num púlpito de igreja. Pensando assim, torna-se mais fácil entender o porquê de Rousseau associar o progresso da corrupção do gênero humano a um “funesto acaso”: como argumenta o Cidadão de Genebra, a perfectibilidade só se desenvolve pelo “concurso fortuito de inúmeras causas estranhas”, ou ainda, pelos “vários acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana, deteriorando a espécie”.

Finalmente, devemos lembrar que, no Segundo discurso, a origem da desigualdade passa, necessariamente, pela origem das línguas. E a confusão das línguas, ou melhor, a diversidade comunicativa dos diferentes povos, é apresentada por Rousseau apenas como um parênteses do texto, mais para expor a dificuldade investigativa de sua genealogia da desigualdade na história do progresso humano do que para dogmatizar qualquer verdade acerca da origem das línguas:

 

Quanto a mim, atemorizado com as dificuldades que se multiplicam e convencido da impossibilidade quase demonstrada de terem podido as línguas nascer e estabelecer-se por meios puramente humanos, deixo, a quem desejar, empreender a discussão desse problema difícil de saber o que foi mais necessário – a sociedade já organizada quando se instituíram as línguas, ou as línguas já inventadas quando se estabeleceu a sociedade.

 

Rousseau deixa a questão em aberto para o seu auditório, cuidando para não tomar partido de ninguém e não dogmatizar além do necessário para persuadir seus ouvintes. Rousseau dogmatiza os conceitos fundamentais, é claro, mas ele faz isso de maneira a cativar o auditório menos por aquilo que seu discurso tem de dogmático do que pela forma como os dogmas são comunicados. Mais uma vez, o que se tem em vista é a adesão dos ouvintes, e daí a preocupação de Rousseau em desenvolver uma estratégia de persuasão.

Mas, afinal de contas, para onde aponta tudo isso? Queremos mostrar aqui que, para Starobinski, Rousseau utiliza os esquemas da teologia cristã não pelo conteúdo do discurso religioso, que o próprio Rousseau rejeita, mas pela eficácia do processo comunicativo na relação que o escritor político genebrino estabelece com os destinatários de seu discurso filosófico. Trata-se de perceber no Discurso sobre a origem da desigualdade um uso prático da linguagem por parte de Rousseau, isto é, uma retórica em sua obra. Trata-se também de perceber que a religião da qual Starobinski fala no texto de Rousseau não se encontra simplesmente nas analogias entre elementos filosóficos do Segundo discurso e elementos teológicos da narrativa bíblica, mas, de modo mais sutil, no uso prático que Rousseau faz dos esquemas discursivos oriundos da teologia cristã.

Voltando à pergunta inicial: qual seria o lugar do tema “religião” em um estudo que tratasse da gênese e da estrutura do Discurso sobre a origem da desigualdade? De acordo com o que vimos aqui, podemos dizer que, para Starobinski, há espaço para falarmos do tema “religião” tanto na gênese quanto na estrutura desse texto, pois, para Rousseau, o “ato religioso” se dá no próprio ato da comunicação, seja da gênese de suas idéias, seja da estrutura de sua obra. Mais que verdades, o texto de Rousseau nos revela um ato comunicativo. E se nesse texto há sinais de uma religião, esta se apresenta tão-somente como retórica.

 

 

Notas

 

(1)  A idéia é que o orador deve se dirigir a toda a humanidade, mas não necessariamente com o mesmo discurso em todos os auditórios. Cada auditório apresenta particularidades que devem ser levadas em conta pelo orador. Refiro-me, portanto, à idéia de persuasão, e não de discurso, como universal.

 

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