Volta

 

Rousseau e as razões especiosas como legitimadoras da desigualdade

  

Otacílio Gomes da Silva Neto

Universidade Estadual da Paraíba

 

  

Tal projeto consistiu em empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, fazer de seus adversários seus defensores, inspirar–lhes outras máximas e dar–lhes outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural (Rousseau, 1983a, 269).

 

Preliminares

 

Não são poucos hoje em dia os que desacreditam na política como forma de amenizar a desigualdade no nosso país. A atual crise política pela qual passa os poderes executivo e legislativo reforça o descrédito de boa parte da população para com a classe política. Um dos sintomas desse descrédito é o abismo que vem separando a moralidade da política. Nunca os discursos sobre moral e ética foram tão eloqüentes e nunca foi feito tão pouco para efetivá-las no meio político. A falta de transparência na gerência da “coisa pública” horroriza parte da população, mas parece ainda não ser suficiente para conscientizá-la sobre a urgente necessidade de uma reforma política e social.

Essa postura coloca os argumentadores num patamar importante, pois um sistema corrupto precisa de uma gramática eloqüente e afinada para impedir que o povo enxergue a veracidade dos acontecimentos. É contagiante ver presidentes, deputados e senadores argumentarem nos seus púlpitos a favor da igualdade e da liberdade de direitos. Usando argumentos especiosos, eles perpetuam a corrupção no sistema político, mantêm o seu domínio e amenizam a insatisfação popular.

Essa conjuntura política perniciosa serve de motivação para abordamos o problema político e moral na relação entre Razão e formação da sociedade civil, a partir de Jean-Jacques Rousseau. Isso porque Rousseau parece apresentar a Razão como determinante na consolidação das instituições, e na formulação das leis civis. A Razão tomada em si mesma parece não ser má, Rousseau não defende categoricamente o irracionalismo (1). Todavia, uma das opiniões que Rousseau defende é que não podemos confiar demasiadamente na Razão porque ela pode nos levar ao engano (2). A nossa pretensão ao constatar a partir de Rousseau, que a Razão pode nos enganar, é abrirmos uma via de leitura que justifique o argumento que ele identifica como razões especiosas; pois esse argumento falacioso é fundamental para legitimar a desigualdade política.

É óbvio que a Razão não se limita às razões especiosas, pois na sua obra, Rousseau nunca deixa de considerar a Razão como uma faculdade importante. O argumento das razões especiosas é racional, mas nem todo argumento racional pode ser considerado como razões especiosas. O problema é que este se encontra na base das instituições e da formação do Governo.

 

As razões especiosas e o fundamento das instituições

 

As razões especiosas são textualmente apresentadas no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754) (3). Na ocasião, Rousseau narra a sociedade nascente colocada no mais horrendo estado de guerra devido aos conflitos entre o primeiro ocupante e o mais forte por causa da propriedade. Nesse estado de guerra, a força predomina, e o que parece ser mais interessante é que a Razão parece não predominar como predomina a força. Isso porque enquanto a força e a violência predominavam no estado de guerra, os pobres defendiam como podiam as suas posses e a sua liberdade, ao passo que os ricos não conseguiam grandes feitos devido, por um lado, a ausência de razões legítimas que assegurassem a origem e a concretização de suas posses e por outro, aos ciúmes mútuos (4). Nesse caso, parece haver uma oposição radical entre o predomínio da força e o uso da Razão (5). Em dado momento, os ricos percebem que pela força não se consegue manter o domínio sobre os pobres. Os ricos começam a perceber que usando a força para atacar, pela força dos pobres eles também são atacados. Nesse caso, usando a força não se consegue a ordem, pois a condição humana é a liberdade.

 

O objetivo dos ricos e dos fortes é manterem e aumentarem suas posses incentivando a escravidão. O objetivo dos pobres é assegurar suas posses e serem livres. Foi aí que alguém teve a idéia de usar argumentos que na teoria tinham como objetivo: a ordem e a manutenção das posses de pobres e ricos, mas que na prática era favorecido sem favorecer os demais fragilizados. Parece ser nesse ponto que a Razão entra em cena. Quando mal utilizada, a Razão pode justificar o domínio dos ricos sobre os pobres, e a maneira mais concreta disso acontecer, do ponto de vista político, foi o projeto excogitado, intitulado de razões especiosas. O mau uso da Razão passa a ser mais danoso do que o uso da própria força.

O projeto excogitado começa a se configurar, efetivamente, quando os ricos percebem que podem usar a força dos seus atacantes em benefício próprio, ludibriando-os com uma retórica capaz de, sutilmente, colocá-los em grilhões. Rousseau explica categoricamente como o direito foi submetido à violência e a natureza à lei, bem como que encadeamento de prodígios levou o forte a resolver-se servir ao fraco, numa palavra: o que fez o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, 1983, 235). Podemos arriscar em dizer que tanto o surgimento da propriedade atribuído à famosa frase – Isto é meu – presente no início da Segunda Parte do Discurso sobre a desigualdade, quanto o estabelecimento do governo, têm como base a mentira, e como conseqüência a sedução dos homens pelas palavras. Interessante é citarmos a astúcia dos ricos, pois por não conseguirem seus objetivos por meio da força, conseguiram por intermédio da Razão ludibriar as multidões:

 

Fora preciso muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham questões para deslindar entre si, que não podiam dispensar árbitros e possuíam demasiada ambição para poder por muito tempo dispensar os senhores (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, 1983, 269).

 

Nesse caso, Rousseau parece perceber uma coisa muita importante: se há o domínio pela força, a resistência dos dominados é quase inevitável. Ao passo que, quando esse domínio é feito pelo mau uso da Razão através das razões especiosas, então não há resistência, pois o povo consegue ser enganado pela sedução das palavras. A força escraviza, mas só o mau uso da Razão pode perpetuar a escravidão. Parece que há nesse ponto um grande paradoxo, pois quando o mau uso da Razão passa a justificar o domínio do mais forte não haveria novas razões para justificar a força? Estaria a Razão a serviço do mais forte? Onde a força predomina a Razão tem lugar especial?

 

 

A ilegitimidade da força

 

Parece estar bem claro tanto para Rousseau (quanto para Locke), que o poder político não pode ser fundado nem pela força e nem pela violência. No Livro Primeiro Do Contrato Social (1762), Rousseau vai criticar veementemente o direito do mais forte, ao afirmar que:

 

O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte – direito aparentemente tomado com ironia e na realidade estabelecido como princípio... A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência (Rousseau, Do Contrato Social, 1983, p. 25).

 

Com isso, Rousseau afasta qualquer hipótese que venha a corroborar a força como um direito. Nesse caso, o estado de guerra não é um estado de direito, é um estado de desordem. Mas isso não significa dizer que qualquer proposta de um estabelecimento político tendo por base princípios racionais seja legítimo. Isso porque Rousseau constata a fragilidade dos estabelecimentos políticos até então vigentes. Estabelecimentos talvez bem formulados no papel, bem escritos, mas que na sua base legitimam de uma forma mais efetiva a escravidão e a miséria. Na sua obra: Gramatologia Derrida constata esse problema ao afirmar a: Fidelidade à tradição que sempre fez comunicar a escritura com a violência fatal da instituição política (Derrida, 2004, p. 44). Nisso, Rousseau se afasta de Locke, pois o primeiro pacto baseado na mentira teve conseqüências danosas para a humanidade. Se o direito não provém da força, ou das razões especiosas que concretizam ainda mais a desigualdade política, de onde viria o direito legítimo?

 

 

Conclusão

 

É no Contrato Social que a questão parece ser resolvida. Rousseau sabe que não há mais volta para o estado de natureza, bem como, não adianta muito apenas constatar a fragilidade dos estabelecimentos políticos. Rousseau aposta nas convenções como algo que pode legitimar o direito (6). Nesse ponto temos uma nova interpretação da Razão, pois é ela que parece contribuir para que o direito natural legítimo seja respeitado. A Razão deve servir de guia para que o direito seja observado. Conforme Rousseau:

 

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idéias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem (Rousseau, Do Contrato Social, 1983, p. 36).

 

Estamos diante de uma questão muito difícil. Rousseau faz uma crítica à Razão ao citar as razões especiosas, mas parece se deparar com a mesma Razão, como se fosse preciso que ela fizesse uma crítica de si mesma, afastando a mentira e reencontrando uma nova ordem social legítima baseada nos princípios do direito natural. Sabemos que em Rousseau, o sentimento precede a Razão, como o homem precede a sociedade. Portanto, parece não adiantar muito compreender a política sem compreender o homem em sua verdade. O homem precede a qualquer estabelecimento político, e qualquer estabelecimento político parece não poder, efetivamente, garantir que o homem seja o que ele é em verdade. Moralidade e política, em Rousseau, são esferas indissociáveis (7). Por isso, a Razão para agir bem, deve estar sujeita a moral. E a política deve constantemente se olhar no espelho da natureza humana a fim de garantir-lhe os seus direitos fundamentais que independem de qualquer estabelecimento político.

Parece que os políticos de ontem e de hoje devem falar menos sobre necessidade de lições de moral e de devem agir mais moralmente para que o nosso estado democrático de direito se consolide com uma maior transparência e austeridade. De nada vale palavras sem ações, pois a Razão deve ser usada para libertar, e não para justificar a escravidão, o domínio do mais forte e a desigualdade política.

 

 

Referências

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores),.

______. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

______. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Júlia ou a Nova Heloísa. Campinas: Hucitec, 1994.

CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo, UNESP: 1999.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2.ed. São Paulo, Perspectiva, 2004.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

 

 

Notas

 

(1) Sobre esse tema, Cassirer cita uma passagem de Derathé muito importante na sua obra: A questão Jean-Jacques Rousseau. Conforme essa passagem: Rousseau jamais acreditou que alguém não pudesse fazer uso de sua própria razão... Muito ao contrário, ele queria nos ensinar a usa-la bem... Rousseau é um racionalista consciente dos limites da razão” (Derathé apud Cassirer, 1999, p.30).

(2) Quanto a esses temas relacionados à Razão nos temos pelo menos uma citação importante. Na Carta XVIII da Segunda Parte do romance Júlia ou A Nova Heloísa, Júlia assim escreve a Saint Preux: Muitas vezes senti-me errada em meus raciocínios, nunca nos impulsos secretos que nos inspiram e isto faz com que eu tenha maior confiança em meu instinto do que em minha razão (Rousseau, Júlia ou A Nova Heloísa, 1995, p.232-233).

(3) Vamos citar todo o parágrafo para nos ajudar a compreender a lógica da sedução das palavras como fundamento do governo. Conforme Rousseau: Com esse desígnio, depois de expor a seus vizinhos o horror de uma situação que os armava, a todos, uns contra os outros, que lhes tornava as posses tão onerosas quanto o eram suas necessidades, e na qual ninguém encontrava a segurança, fosse na pobreza ou na riqueza, inventou facilmente razões especiosas para fazer com que aceitassem seu objetivo: “Unamo–nos”, disse–lhes, “para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar–se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo–nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna” (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, 1983, p.269).

(4) Cabe-nos pontuar a grande diferença na questão da propriedade em Locke e em Rousseau. Para Locke, a propriedade é um direito natural, portanto, inalienável e inviolável. Para Rousseau, a propriedade não é um direito natural. Ela é considerada como: último termo do estado de natureza. É ela que vai engendrar a violência. Porém, a propriedade uma vez estabelecida na sociedade civil, é um mal menor, pois, Rousseau vai salvaguardar o legítimo direito de propriedade no Contrato Social.

(5) Parece que Locke na sua obra: Segundo tratado sobre o governo (1690), influenciou Rousseau, ao colocar força (violência) e Razão como opostas. Conforme Locke, a lei que predomina no estado de natureza é a lei da razão que: ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (Locke, Segundo tratado sobre o governo, 1983, p.36). Sendo assim, qualquer homem que no estado de natureza violar a lei natural deverá ser punido e até assassinado para impedir que a lei natural seja violada (Locke, Segundo tratado sobre o governo, 1983, p.38). O que distancia Rousseau de Locke é que o estado de natureza não é um estado racional. A Razão é uma faculdade que se desenvolve em sociedade, não no estado de natureza. Neste predomina o instinto de conservação e a piedade natural.

(6)  Conforme Rousseau: Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz qualquer direito, só restam as convenções como base de toda autoridade legítima existente entre os homens (Rousseau, Do Contrato Social, 1983, p. 26).

(7) Conforme Rousseau: É preciso compreender a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma das duas (Rousseau, Emílio ou Da Educação, 1999, p. 309).

 

 

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