Volta

 

Linguagem e corrupção dos costumes

 

Cristiane Aparecida Barbosa

Centro de Ensino Superior de Catalão

 

Rousseau, no prefácio de sua comédia Narciso ou o amante de si mesmo, escrita em 1733 e levada à cena em 1752, rebate algumas acusações contra ele, contra suas idéias e suas obras, principalmente contra o Discurso sobre as ciências e as artes.

Recorro a este texto com o fito de salientar por que os homens construíram e proferiram um discurso (1) que chamava a todos para acordarem no que diz respeito a um estado de direito, conforme diz Rousseau no segundo Discurso. Penso que, com os costumes corrompidos, os homens, embora enxergassem os prejuízos do acordo, não conseguiram resistir aos impulsos da ganância e da ambição. Logo, por um lado, a linguagem promove o desenvolvimento das ciências e das artes e do cultivo destas os costumes são corrompidos; por outro lado, com os costumes corrompidos, os homens não têm escrúpulos em empregar a linguagem para persuadir seus semelhantes por intermédio de um discurso retórico falacioso.

Neste prefácio, Rousseau, como fez em sua obra Diálogos: Rousseau juiz de Jean-Jacques, defende-se da acusação de contradizer-se, ou seja, de suas idéias não coincidirem com suas ações. Porém, defende-se ainda da acusação de que embora combatesse as ciências, as artes e as letras, fez uso da arte literária, afinal escreveu o Discurso sobre as ciências e as artes e outras obras, bem como escreveu esta referida comédia e outras peças teatrais.

       Àqueles que fizeram tais acusações Rousseau contra-argumenta que eles estão mais interessados em defender o interesse dos literatos do que em honrar a literatura, isto é, em defender a literatura nela mesma. Diz ele, que na juventude nutriu grande admiração por aqueles que se diziam sábios e por suas obras, contudo, a custo de muita reflexão concluiu que apenas encontrara muita eloqüência e pouca sabedoria. Portanto, afirma Rousseau, é um erro julgá-lo por suas obras escritas na mocidade, pois quando de sua composição, suas convicções expostas no Discurso sobres a ciências e as artes ainda não haviam florescido.

       No entanto, no Prefácio, Rousseau reafirma suas convicções a fim de responder à seus acusadores. Diz ele, que os fatos mostram que entre os povos que passaram a cultivar as ciências e as artes, isto é, a desenvolverem o gosto pelo estudo e pelas letras, os costumes foram corrompidos. Para Rousseau, é o desejo de distinguir-se e a ociosidade que levam um povo a entregar-se ao estudo, e do cultivo deste provém sua corrupção. Num estado bem constituído, em que todos os cidadãos são iguais, ninguém desperdiça seu lazer no que ele nomeia de ocupações frívolas.

       Quando se deixa, ressalta Rousseau, de privilegiar a virtude para se privilegiar os talentos, os homens param de pautar-se pelo que é bom para serem agradáveis ao público, independente da retidão. O excesso de estudo faz também com que o homem procurando cuidar de sua alma se descuide de seu corpo, que acaba por se tornar débil. Somente isto, adverte Rousseau, deveria ser motivo suficiente para que não se cuidasse das ciências e das artes.

       O estudo da filosofia põe fim à estima entre os homens, afirma Rousseau chamando atenção para a gravidade do assunto. Segundo ele, o filósofo pelo seu muito estudo passa a apreciar os homens pelo seu valor e logo, a desprezar a todos, tornando-se indiferente a todo o universo (2). O perigo está na falta de sentido com que vê família e pátria, para Rousseau. Com os letrados ocorre o mesmo, o desejo de ser admirado suplanta o desejo de ser virtuoso, os aplausos passam a satisfazer muito mais do que o reto proceder.

       É deste modo, de acordo com Rousseau, que os costumes corrompem-se e que os vícios apoderaram-se dos homens, é num Estado viciado que um homem honesto não consegue sair da miséria. Todavia, isso vem mostrar que os vícios listados não fazem parte da natureza do homem, mas que surgiram no homem quando mal governado.

       Assim, este filósofo concluiu que a maioria dos homens não é apta à ciência, que o homem em geral não nasceu para refletir e sim para pensar e agir, a reflexão só lhe traz infelicidade e não o faz melhor. “O estudo corrompe seus costumes, altera sua saúde, destrói sua razão; mesmo que lhe ensinasse alguma coisa, eu o consideraria muito mal recompensado.” (Rousseau, 1973, p. 433). Ou seja, ainda que a reflexão lhe traga algum conhecimento este não compensa os males que lhe causa.

       Um povo que ainda possui costumes, segundo Rousseau, deve eximir-se de dedicar-se ás ciências se não quiser ver seus cidadãos desprezarem suas leis. Pois, explica Rousseau, os costumes são a moral do povo, uma vez que estes estão corrompidos, cada qual segue suas paixões, e ainda que a lei seja um freio, só é respeitada pelo temor da punição, não sendo capaz de nortear o homem em suas intenções, ou seja, não tem capacidade de torná-lo bom.

       Porém, no que diz respeito a um povo corrompido, Rousseau posiciona-se, não a favor das ciências, mas, diz ele que, tendo os costumes já sido deturpados, importa precaver-se que os vícios não se tornem crimes. Daí a utilidade das academias, das escolas, dos espetáculos, distrair o povo para que, em sua ociosidade, não se metam em coisas mais perigosas. Deve-se, afirma Rousseau, valer-se do veneno – ciências, artes e letras – em dozes profiláticas a fim de se evitar maiores males.

 

Desse modo, as artes e as ciências, depois de terem feito os vícios brotarem, são necessárias para impedi-los de se tornarem crimes, cobrindo-os de um verniz que não permite que o veneno se evapore tão livremente. Destroem a virtude, mas preservam o seu simulacro público, que sempre é uma bela coisa; em seu lugar introduzem a polidez e a decência, e substituem o temor de parecer mau pelo de parecer ridículo. (Rousseau, 1973, p. 434)

 

       Rousseau declara ainda que ficaria feliz se sempre tivesse uma obra literária com a qual pudesse distrair o público, ainda que estes delas fizessem troça, pois por alguns momentos poderia “conter os maus desígnios de um único espectador”. (Rousseau, 1973, p. 435) Afinal, diz ele, quando se perderam os costumes, só a polícia poderia conter os crimes, e os espetáculos e a música desempenham bem este papel, visto que é uma forma de manter vigiados e contidos os cidadãos.

Desta maneira, Rousseau encerra seu Prefácio dizendo que, para ele, portanto, não se contradisse e recomenda que seus acusadores examinem os princípios dele, mais detidamente, antes de fazerem-lhe críticas descabidas. Uma vez que, terminando sua própria defesa, ainda que lhe apontem como contradição reprobar as ciências e as artes e ainda assim publicar livros e peças teatrais, ele responde que isto consiste numa amarga sátira a seu século e que se compôs não foi como os que critica, por ambição de obter consideração pública, mas por amor à virtude.

       Em vista do que foi dito anteriormente, quero destacar que sendo a linguagem a base para as ciências e as artes, é nesta perspectiva que acuso-a e condeno-a como responsável pelo progresso do homem até às luzes, e deste progresso à corrupção dos costumes. Meu intuito é, logo, ressaltar a culpabilidade da linguagem frente ao que Rousseau descreveu em seu primeiro Discurso e que salientou neste referido Prefácio. A linguagem teve, então, um papel central na degeneração das virtudes em vícios.

       Desejo, assim, estabelecer uma ponte entre o primeiro e o segundo Discurso no que diz respeito ao papel desempenhado pela linguagem no desenvolvimento das letras, artes e ciências. Visto que estas promovem no homem a perda de escrúpulos e isto vem mostrar porque os homens no segundo Discurso, os ambiciosos posseiros, ensejaram a construção de um discurso tendencioso com o objetivo de fundarem o Estado, no qual a posse das terras seria legitimada em propriedade.

 

Tendo as coisas chegado a tal ponto, facilmente se imagina o resto. Não me deterei descrevendo a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, o ensaio e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, nem todos os detalhes complementares que cada qual pode sem esforço imaginar. (Rousseau, 1973, p. 273)

 

Note que o desenvolvimento da linguagem ofereceu condições para que as artes, as ciências e as letras fossem cultivadas, se desenvolvessem e acabassem por perverterem as virtudes em vícios. Com isso, os costumes degeneraram e os homens tornaram-se gananciosos e ávidos por lucros, aos quais importava mais ter do que ser. Para mim, todo este quadro contribui para abalizar minha tese de que a linguagem, na forma de um discurso retórico, convenceu os homens a se unirem e fundarem o Estado.

É proveitoso sublinhar, ainda, que o fechamento do pacto ou do contrato mencionado no Discurso sobre a desigualdade, refere-se a um pacto implícito, ou seja, não houve o emprego do termo “contrato” ou “pacto”. Assim, como quando conversa-se com alguém, está implícito o pacto de que um fala e o outro ouve, do mesmo modo, certa vez, por meio de um discurso conclamou-se e se convenceu os homens a uniram-se e estabeleceram regras que prescreviam direitos e deveres e formaram uma associação, a qual entendemos como Estado ou Sociedade Civil. O que é importante destacar é que embora os termos “contrato”, “Estado” e “Sociedade Civil” não tenham sido empregados originalmente, é legítima sua utilização, visto que traduzem fielmente os acontecimentos.

Desta forma, o que quis mostrar com a utilização do Prefácio de O Narciso, é precisamente o caminho e a conseqüência do desenvolvimento das ciências e das artes que somente é possível com o uso da linguagem já amadurecida. As artes e suas companheiras desenvolveram-se e fizeram com que o homem perdesse a estima e o respeito por seus semelhantes, conforme dito anteriormente. O homem passou a se superestimar e a subestimar todos os demais, disto deriva a ganância, desta o engendramento do discurso, deste, por fim o Estado.

Explico-me. Eu afirmei que o discurso do demagogo fundou o Estado. Como? O quadro acima mostra que a ganância levou os homens a empenharem suas forças em criar um mecanismo que lhes proporcionasse “lucros às expensas dos outros”, pois, uma vez tendo chegado à conclusão de que a formação da sociedade civil lhe seria vantajosa, empenharam-se em colocá-la em vigor. Contudo, de que maneira se convenceria a todos? A resposta é: com o discurso falacioso.

 

 

Notas

 

(1) ‘Unamo-nos’, disse-lhes, ‘para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna’. Jean-Jacques ROUSSEAU, Discurso sobre a desigualdade, 275 p.

 

(2) “É a filosofia que o isola; por sua causa, diz ele em segredo, ao ver um homem sofrendo: ‘Perece se queres; quanto a mim, estou seguro’. Nada, além dos perigos da sociedade inteira atrapalha o sono tranqüilo do filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar um seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que se assassina.” Ibidem, 260 p.

 

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