Volta

 

Rousseau e Sêneca: da crítica das luzes à defesa da virtude

Arlei de Espíndola

Universidade Estadual do Oeste do Paraná / Toledo

 

Sêneca é um autor importante na constituição do pensamento de Rousseau. A oposição por ele estabelecida, juntamente com os outros estóicos, entre “ciência” e “virtude”, que é acompanhada pela tentativa de fazer recair a prioridade sobre o desenvolvimento desta última, reflete-se claramente no Discurso sobre as ciências e as artes. Ainda que essa obra apresente falha e limitações, reconhecidas, aliás, pelo próprio filósofo genebrino, ela tem grande importância, em sua trajetória, por um duplo motivo: havendo brotado da Iluminação que o acometeu no caminho que percorria até Vincennes, não só o retirou do anonimato, concedendo-lhe fama, como contém, de forma germinal, quase todo seu pensamento.

O objetivo, neste trabalho, é mostrar, rapidamente, o sentido da crítica que Rousseau endereça ao conhecimento científico, filosófico, artístico, etc., no texto precedente. Veremos que ele não está interessado em negar o saber de um modo absoluto, mas salientar sobre o primado que deveria ser concedido à virtude. Paralelamente, mostraremos as antecipações que são feitas pelo filósofo romano, Sêneca, que partilha, em suas principais obras, com um pensamento muito similar no ponto que será colocado em questão.  

Na época em que vive Rousseau, o chamado Século das Luzes, além de haver acontecido uma consumação do antropocentrismo inaugurado na Renascença, faz-se presente um espírito unificador, o qual exerce hegemonia entre os homens, que fortalece o sentimento de otimismo em relação aos poderes da razão. Daí resulta o desejo de que essa força espiritual passe a comandar a vida na sociedade, uma vez que todo o mal é visto como resultante da ignorância, do obscurantismo, da superstição.

Rousseau é um autor aparentemente deslocado em sua época, não podendo ser considerado um porta-voz perfeito, um representante fiel da mentalidade característica do século XVIII. Ela faz marcar toda sua diferença construindo um pensamento um tanto distinto. Se o caso é, para Rousseau, neutralizar o mal na sociedade, o desafio não reside em incentivar-se o progresso, em desenvolver-se cada vez mais a razão. Todo o filósofo que se preze, na opinião do autor genebrino, deve entender que é o caráter, primeiramente, que precisa ser moldado, os bons costumes é que devem ser difundidos, porque se precisa fazer os homens terem conhecimentos acerca de seus deveres. Significa uma transgressão privilegiar, logo de saída, o exercício com vistas a desenvolver a inteligência, almejando dar aos seres humanos uma capacidade maior de raciocinar; sem sentido é conceder o primado ao fomento de saberes teóricos, de conhecimentos abstratos, visto que não é aí que repousam as bases da unidade e da integridade moral. Mesmo que seja disseminada a noção de que o progresso trouxe benefícios, de que a evolução contribuiu para reduzir os sofrimentos, as guerras, as mortes, a História tem revelado, desde muitos tempos, justamente o contrário. As ciências e as artes, à medida que foram retomadas e chegaram aos avanços que conhecemos, embora se queira negar, acarretaram a corrupção humana: “onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição” (Rousseau, Jean Jacques. Discours sur les sciences et les arts. Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1964, T.III, p.9).

Rousseau não deseja passar a seu leitor a idéia de que o saber teórico é absolutamente pernicioso, de que as ciências e as artes são completamente danosas, merecendo, por isto, serem relegadas à inexistência. O que ele pretende é convencê-lo de que a virtude tem um papel na vida moral dos indivíduos que supera aquele que é desempenhado pelas luzes de seu espírito. Assim, é correto trabalhar-se para fazê-la florescer no íntimo dos homens desde o começo de suas vidas ou intervir para que ela se torne mais robusta, caso já tenha dado algum sinal de existência. “Não é em absoluto a ciência que maltrato, disse a mim mesmo, é a virtude que defendo perante homens virtuosos” (idem p.5).

Todos sabem que há um grande número de leitores de Rousseau que lançam a suspeita de que ele é um filósofo regressivista e primitivista ou mesmo que desenvolve uma apologia da ignorância. Mas essa leitura não possui uma boa base de sustentação. Aos primeiros, que encontram em Voltaire um ilustre protagonista, se tem a dizer que o autor genebrino não pactua com a tese defendida pelos cínicos. Aos segundos, o texto do primeiro Discurso mostra que a iniciativa de buscar conhecimentos e exercitar-se espiritualmente é algo que conserva uma relação íntima com o que há de mais profundo no homem refletindo uma necessidade essencial que este possui. No entendimento de Rousseau: “como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu deleite” (idem p.6).

Sêneca, autor muito afastado culturalmente e temporalmente de Rousseau, vive numa época histórica não muito própria para dar-se vazão a grandes utopias e para postular-se uma perspectiva para a humanidade que se aproxime daquilo que vislumbra o filósofo moderno. No entanto, o pensador romano volta-se com maestria à questão moral, e, valorizando como todos os seguidores do estoicismo, o mundo subjetivo, muito contribui para pensar as possibilidades da liberdade individual. Servindo de fonte de inspiração de Rousseau, ele, tendo como núcleo central de suas preocupações esse eixo precedente da meditação filosófica, enaltece a virtude dizendo que ela “unicamente [...] nos proporciona uma alegria perene e inabalável”(Sénèque. Lettres a Lucilius. Trad. Française Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1995, T.I, p.119).

Todo o esforço para moldar o caráter dos homens, para torná-los conscientes de seus deveres, para fazê-los dotados de virtude, é muito bem recebido pelo filósofo estóico porque aí se encontra, em seu entender, o sustentáculo maior da independência humana. Seu repúdio é endereçado à presença do vício no coração dos indivíduos e à proliferação desenfreada à que esse está subordinado na sociedade de sua época:

 

Não há nada que suplante em valor e beleza a virtude; e tudo quanto fazemos em obediência aos seus ditames é um bem, e é, portanto, desejável (idem, T.II, p.141).

 

Quando o esforço visa a obtenção da virtude, nesse caso, quanto maior for a energia despendida, quanto menor o cansaço e as concessões ao repouso, tanto maior será a minha admiração e o meu grito de incitamento (idem, T.I, p.138).

 

Para o autor estóico, os vícios, em conjunto com a ignorância, seriam as fontes dos males sociais. Todavia, esses últimos poderiam deixar de influir na vida dos homens bastando que estes adquirissem a sabedoria e conseguissem ser inabaláveis e incorruptíveis.

Diante do exposto até aqui, com efeito, há de se considerar um equívoco querer estabelecer-se como meta, como ideal ético, tanto a partir de Rousseau como de Sêneca, ver o ser humano abrir mão de ampliar seus horizontes de compreensão do mundo e ficar preso eternamente em seu grau zero de desenvolvimento espiritual. Conquistar a felicidade, que é o alvo maior do homem em sua existência, implica em contar com a sabedoria, requer que se possua discernimento das coisas, além de se estar de posse da virtude. “Em que consiste o bem? Na ciência. Em que consiste o mal? Na ignorância” (idem, T.I, p.139).     

Traço básico dos escritos de Rousseau está em revelar ambigüidades, em operar propositalmente com paradoxos. Esse aspecto é evidenciado, por exemplo, quando o filósofo reconhece a atividade intelectual como própria do homem, mas recua dizendo que há somente alguns poucos homens com disposições que os qualificam para envolver-se com os estudos e se mostrarem diferenciados no sentido positivo do termo. Assumindo essa posição, o filósofo converge para um caminho oposto ao percorrido por Diderot e trai assim, parcialmente, seus ideais democráticos negando, ao contrário também dos estóicos, que todo homem possa chegar à sabedoria. Essa aparece como uma possibilidade, segundo o autor genebrino, de um pequeno grupo de pessoas com um talento acima da média.    

Rousseau, com efeito, manifesta inquietude tanto em relação à necessidade que há de as pessoas procurarem ser úteis na sociedade como frente ao fato de elas deverem, inexoravelmente, se preocupar com a vocação para a qual foram dotadas. De um lado, existe o risco de passarem por perniciosas se não buscarem contribuir com os outros, afastando-se da inércia. Todavia, não é qualquer ação que interessa, sendo preciso que tenham ciência acerca de suas aptidões e optem, no momento que convier, pela atividade que sentem inclinação para realizar.

Tem-se uma razão justa, segundo Rousseau, para se prescrever um princípio básico: cada um deve buscar trabalhar, tentar produzir, visando sempre dar o melhor de si. Muitos problemas evidentes na sociedade civilizada resultaram da exploração mútua dos indivíduos entre si e também da falta de discernimento que revelaram sobre seus dons, dispondo-se a tarefas que não eram feitos para executar. Considerando-se o aludido princípio, todo aquele que não tiver queda, por exemplo, para atuar no campo das letras, pode se contentar com ocupar-se, competentemente, com outra atividade qualquer, associada à sua disposição eterna, porque estará cumprindo com seu papel social. Equívoco será um homem forçar o seu natural e frustrar por completo todas as expectativas, não conseguindo ser útil aos outros: “seria de desejar-se que todos aqueles que não pudessem ir longe na carreira das letras fossem obstados desde o começo e se lançassem às artes úteis à sociedade? Alguém que durante toda a vida será um mau versificador, um geômetra subalterno, ter-se-ia talvez tornado um grande fabricante de tecidos”(Rousseau, Jean Jacques. Discours sur les sciences et les arts, p.29).

Rousseau entende que os homens ilustres moldados para guiar o gênero humano têm um traço característico de personalidade que geralmente se sobressai. Eles mostram, como testemunham os exemplos de Bacon, Descartes, Newton, a força e a coragem, dado seus recursos individuais, que lhes permitem descobrir seus próprios caminhos e ultrapassarem seus obstáculos dispensando o acompanhamento de mestres: “os Verulamios, os Descartes e os Newtons, esses preceptores do gênero humano, não tiveram preceptores, e qual o guia que os teria conduzido até onde os levou seu imenso gênio?”(idem, p.29). Seria desejável, no julgamento de Rousseau, que homens com semelhante perfil se envolvessem com a pesquisa científica, com as diferentes atividades do espírito. Os indivíduos sem essa força natural, entre os quais ele próprio, em seu entender, se enquadraria, deveriam consentir com sua obscuridade e aceitarem a idéia de achar outras formas mais simples de se tornarem socialmente úteis:

 

quanto a nós, homens vulgares, a quem o céu não concedeu talentos tão grandes e que não fomos por ele destinados a tamanha glória, permaneçamos na obscuridade. Não corramos atrás de uma reputação que nos escaparia e que, na situação atual das coisas, jamais nos devolveria o seu preço, ainda que tivéssemos todos os títulos para obtê-la  (idem, p.30).  

 

Os homens cuja História deixou o registro de serem talentosos para desenvolver trabalhos teóricos, como foi o caso das figuras ilustres acima citadas, manifestaram toda sua grandeza com seus ensinamentos, com seus preceitos sábios, transmitidos aos seus contemporâneos e legado aos seus descendentes. Dado a esse testemunho, Rousseau acredita que valeria o corpo de governantes da França de seu tempo pensar sobre o valor que possuem as pessoas de semelhante natureza, que residem em seu quadro social, e cogitarem sobre a possibilidade de lhes conceder proteção e asilo no seio da Corte. Ao deixarem o estado marginal e ficarem em condições mais próprias para os estudos, seja por se livrarem da indigência seja por escaparem do ostracismo, elas teriam chances de cumprir com o papel para o qual nasceram e haveriam de beneficiar o gênero humano em seu conjunto.

Rousseau concede o primado à virtude por entender que é fundamental os homens possuírem, antes de tudo, um caráter exemplar que os permite ter ciência do que lhes cabe como dever. Não obstante, ele está longe de julgar que o saber teórico seja algo indesejável e que a virtude seja de todo incompatível com este tipo de produção. O problema que há de fato, para Rousseau, consiste na espécie de conhecimento que se tem dado importância e também na disjunção, observada no quadro do Antigo Regime, entre o campo do saber e a instância do poder político. Priorizando-se o estudo das verdades morais, e levando-se àquelas duas esferas a formarem um todo coeso, dar-se-á uma solução a essa dificuldade: “enquanto o poder estiver sozinho de um lado e, de outro, sozinhas as luzes e a sabedoria, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente farão belas coisas e os povos continuarão a ser abjetos, corrompidos e infelizes” (idem, ibidem).

Sêneca acredita também que todo homem possui obrigação de fazer-se útil a seus semelhantes na sociedade. Para cumprir esse ditame, e permanecer na via que conduz à virtude, impõe-se ao ser humano o dever de voltar-se sobre si mesmo e buscar se conhecer visando ter claro quais são seus limites e suas possibilidades. No entender do estóico romano, um homem não é dotado para todas as atividades, e cada um tem disposições específicas, segundo prescrições da natureza. Seria uma falta, em seu julgamento, alguém seguir pelo caminho para o qual não foi talhado, subestimando suas forças.

 

Devemos examinar se nossas disposições naturais nos tornam mais aptos à ação ou aos trabalhos sedentários e à contemplação pura; e inclinar-nos do lado para o qual nosso gênio nos conduz. Isócrates arrancou com viva força Éforo do forum, quando se convenceu de que este era mais indicado para escrever história. Jamais um talento que se força produz o que se esperava; e forçar a natureza é sempre inútil (Sénèque. De la tranquillité de l’âme. Trad. Française Émile Bréhier. Paris: Gallimard, 1962, T.II, p.672).

 

Sêneca partilha igualmente a idéia de que o poder e o saber precisam formar uma unidade no seio da sociedade civilizada. No quadro de seu tempo, os príncipes, em troca da perspectiva de obterem segurança pública, costumavam dar proteção aos sábios e mostraram, assim, que ambas as esferas podiam prestar-se um auxílio mútuo. Os homens ocupados com a filosofia teriam obrigação ao final, segundo Sêneca, de se revelarem gratos para com as pessoas ilustres que viveram bem antes deles e que ajudaram, com sua sabedoria, a iluminar seus caminhos. Essa gratidão precisava, no entanto, estender-se aos governantes do meio em que viviam uma vez que estes lhes teriam dado condições para se dedicar aos estudos. Parecendo falar, na verdade, de seu caso pessoal, o autor romano argumentou: “o filósofo tem pelos mestres a quem ficou devendo a libertação do caminho do erro toda a veneração e respeito; o mesmo sente ele em relação ao príncipe, à sombra de cuja protecção pode dedicar-se aos seus elevados estudos” (Sénèque. Lettres a Lucilius, T.III, p.33).

Convém fazermos o esforço agora de tentar averigüar como Rousseau e Sêneca definem o conceito de virtude. Várias passagens do primeiro Discurso, com efeito, sugerem que a “virtude” é uma disposição moral e psicológica que o ser humano possui desde o momento em que nasce. Por essa ótica, um homem não precisaria realizar grandes esforços intelectuais para mostrar-se dotado desta condição, e não existiria problema se seguisse limitado do ponto de vista espiritual, se conservasse seu modo simples de viver. Voltar sobre si mesmo e ouvir atentamente a voz da consciência, neutralizando o clamor das paixões, seria o bastante para um indivíduo fazer-se virtuoso. 

 

Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões? Aí está a verdadeira filosofia; saibamos contentarmo-nos com ela (Rousseau, Jean Jacques. Discours sur les sciences et les arts, p.30).

 

Outro exemplo de que a virtude antepõe-se ao processo de civilização é manifestado quando Rousseau condena o amor devotado aos “talentos” na sociedade. Apoiando o cultivo destes, as pessoas permitem que se estabeleça o interesse de mostrar docilidade de caráter, que ganhe forme a prática da polidez, e que o gênero humano se sinta convidado, enfim, a incorporar todo tipo de refinamento. O processo de sofisticação, com efeito, robustece os “hábitos” próprios do mundo urbano, os quais não primam pela espontaneidade, pela transparência, e pelo amor que se deveria devotar à verdade. Aquele bem supremo, para Rousseau, reside justamente nestes valores primitivos, e ele não poderia seguir se manifestando com o surgimento dos atos medidos, calculados, com o porte de máscaras, com a vaidade tornada, então, hegemônica. Vendo-se diante deste quadro negativo no mundo civilizado, Rousseau argumenta: “vós lhes deveis [...] a aparência de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas” (idem, p.7).

Esse modo de julgar indica que Rousseau considera a virtude como algo que o homem traz ao mundo como uma espécie de herança da natureza que lhe dispensa de aprimorar-se. Ele contaria, assim, com uma sublimidade espiritual que o deixaria no ponto ótimo desde o início do desenvolvimento, tornando dispensável qualquer empenho para se lapidar. Sendo um ser ideal, o homem, além de estar desobrigado de aprimorar sua humanidade, não teria de ocultar imperfeições visto que não as possuiria. 

Rousseau toca no problema da dicotomia ser versus parecer, na questão da cisão interna sofrida pelo ser humano, a qual encontra sua mola propulsora na cobrança de que todos se façam mutuamente agradáveis na sociedade. O filósofo genebrino, repetindo uma idéia de Sêneca, identifica nesse mecanismo a origem do mal, da uniformidade de caráter que impede os indivíduos de serem eles mesmos e de seguirem seus próprios gênios: “incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio” (idem, p.08).

Em consonância com a idéia da “virtude” como uma coisa que emana espontaneamente da natureza, Rousseau enaltece ainda a “feliz ignorância” possuída pelos seres humanos dos prístinos tempos. Deus teria fornecido a estes todo o saber de que necessitariam para se conservar, mas suas condutas transgressivas os levaram a deixar seu ponto de partida e os fizeram cair em dificuldades e depararem com o mal: “eis [...] o castigo dos esforços orgulhosos que fizemos para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a sabedoria eterna” (idem, p.15).

Rousseau, como Sêneca e os outros estóicos, guarda saudades das épocas em que tudo se mostrava subordinado à ação da providência divina e conservava sua beleza e unidade original. Observando a imagem degradante dos costumes, ele, mantendo-se preso ainda à sua forma inicial de compreender a virtude, não pôde deixar de expressar seu sentimento profundo de dor em razão de uma perda que se mostrava irreparável: “não se pode refletir sobre os costumes sem se comprazer com a lembrança da imagem da simplicidade dos primeiros tempos. É uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos da natureza, para a qual incessantemente se voltam os olhos e da qual com tristeza se sente afastar-se”(idem, p.22).

Descendo finalmente ao campo da História, Rousseau faz referência às “virtudes naturais” identificadas entre alguns povos da Antigüidade, como é o caso, por exemplo, dos persas, dos germanos, dos lacedemônios. Esses tomaram a iniciativa de fechar a porta de entrada dos vícios em seus domínios e atingiram, assim, a virtude e, conseqüentemente, a felicidade. Embora nestes espaços a virtude se aprendesse, ela resultava como desdobramento do potencial próprio de cada povo. Aí subsistia firmemente a liberdade, a simplicidade de costumes, a clareza dos homens acerca de seus deveres, etc.

No Discurso sobre as ciências e as artes exercem hegemonia as passagens que apreendem a virtude como uma dádiva da natureza que dispensa o homem de abandonar sua conduta pacífica para obtê-la. Entretanto, mais correto é valorizar a alternativa contrária e pensar que este bem moral, tanto para Rousseau como também para Sêneca, depende do empenho, da mobilização de forças, da capacidade de crescer, e da coragem que cada ser humano possui para lutar contra as dificuldades e triunfar.

A semente do valor supremo em questão ou mesmo o pendor inato do homem para seguir o caminho do bem não pode, na concepção do autor genebrino, ser considerado ainda a virtude. A bondade natural revelada pela docilidade de caráter, pela generosidade, e pela inocência, da mesma forma não pode ser julgada como seu indicativo porque tal valor supõe, além do poder de neutralizar os males, a capacidade do homem de avançar espiritualmente, de diferenciar o certo do errado, de agir com autonomia, de estabelecer paralelos, de definir preferências, etc.

Rousseau concebe que se virtude fosse algo intrínseco ao coração do homem, se ela representasse uma dádiva da natureza, não restaria ao ser humano qualquer mérito por possuí-la. Seria justamente para dar-lhe possibilidade, então, de experimentar esse prazer que emana do ato de conquista que a natureza faz este bem supremo emergir de seu esforço, de sua luta para crescer, de seu empenho para tornar-se melhor.

Na busca do homem por essa condição que se define mais propriamente como a “força e o vigor da alma”(idem, p.8), o passo inicial, conforme Rousseau, deve mostrar-se pelo empenho de endurecer seu corpo, de ampliar sua força física, de conservar sua saúde, e de aumentar sua coragem. Seguindo o caminho trilhado por Sêneca e os outros estóicos, nosso autor entende que é a disposição para o combate, própria dos membros das grandes corporações militares, que precisa ser trabalhada inicialmente, sob pena de o indivíduo não poder subsistir diante da dureza da vida:

 

com efeito, de que maneira poderão enfrentar a fome, a sede, as fadigas, os perigos e a morte, homens que a necessidade abate e que a menor pena desanima? Com que coragem os soldados suportarão trabalhos excessivos aos quais não estão habituados? Com que ardor farão marchas forçadas sob o comando de oficiais que não têm sequer força para viajar a cavalo? Que não me objetem com o valor glorificado de todos esses modernos guerreiros tão habilmente disciplinados. Enaltecem sua bravura num dia de batalha, mas não me dizem em absoluto como suportam o excesso de trabalho, como resistem ao rigor das estações e às intempéries do clima. Basta um pouco de sol ou de neve, a privação de algumas coisas supérfluas para, em poucos dias, fundir e destruir o melhor de vossos exércitos (idem, p.23).

 

Esse labor preliminar, conivente com o curso da natureza, molda o homem para curvar-se com sucesso diante dos reclamos de sua alma quando se dirige no momento oportuno ao cultivo de sua dimensão interior. Aproveitando seu tempo como é adequado, o homem ocupa-se com os objetos de seus deveres e atende às necessidades estabelecidas pelo supremo artífice, dispensando os saberes que não possuem serventia. Segundo Rousseau: “quem desejaria passar a vida em contemplações estéreis, se cada um, não consultando senão os deveres do homem e as necessidades da natureza, só desse seu tempo à pátria, aos infelizes e a seus amigos?” (idem, p.17-18).

Rousseau, conduzindo o saber dito superior a um julgamento de cunho moral, indica ser oposto às determinações naturais o ser humano importar-se com “sutilezas metafísicas”(idem, p.3), com “buscas vãs” (idem, p.15), que não podem contribuir verdadeiramente para melhorar nossas vidas. Daí a razão de seu repúdio às disputas inúteis promovidas pela filosofia, daí o sentido de sua negação das lições pouco proveitosas que os filósofos quase sempre nos fornecem: “que é a filosofia? Qual o conteúdo das obras dos filósofos mais conhecidos? Quais são as lições desses amigos da sabedoria? Ouvindo-os, não os tomaríamos por uma turba de charlatões” (idem, p.27). Diante da transgressão que representa o homem mobilizar-se para perseguir conhecimentos supérfluos, é natural que seu olhar recaia sobre as “verdades que importam à felicidade do gênero humano”(idem, p.3), as quais se encontram perfeitamente a seu alcance.

Vejamos, para fechar o presente percurso, o ponto de vista de Sêneca sobre o que seja virtude, conceitualmente falando. O estóico romano, com efeito, trabalha da mesma forma com a idéia de que a intervenção humana é dispensável no início da História porque a natureza garante o ordenamento das coisas, e, além de tantos outros benefícios em razão de sua onipotência, dota cada homem com virtudes específicas, com disposições particulares.

Não obstante, mudando o tom da fala, Sêneca reconhece, entretanto, que a bondade é um atributo natural do homem, e aceita que este nasce munido de uma potencialidade para praticar o bem, carregando consigo, na verdade, a semente da virtude. Escutando os clamores de sua alma, o ser humano haveria de contribuir com seu ingresso no caminho que o conduziria à virtude: “Não é difícil levar um auditor ao desejo do bem; a todos nós a natureza deu, em potência, a semente da virtude. Todos nascemos com aptidão para toda a espécie de bem; a influência desse bom instigador de consciências desperta as capacidades latentes do espírito para a virtude” (idem, T.IV, p.179). 

Avançando seu pensamento, Sêneca ressalta que não há facilidades para se chegar à mencionada alegria suprema. O candidato a obtê-la, seja quem for, está convidado a trabalhar muito sob pena de se manter apenas como um ser potencialmente virtuoso. Mesmo que venha contar com o auxílio de alguém que já esteja avançado nos planos espirituais, o indivíduo que aspira chegar a essa meta precisa se dispor a esforçar-se incansavelmente porque “a virtude não se conquista por procuração”(idem, T.I, p.119). Essa última, em síntese, diferentemente, por exemplo, do dinheiro e dos altos cargos, resulta do esforço, advém do empenho de cada homem para superar suas dificuldades e crescer espiritualmente, ultrapassando sua moleza e frouxidão:

 

o dinheiro pode cair-te em sorte, as honras serem-te oferecidas, os favores e os altos cargos poderão talvez acumular-se sobre ti; a virtude, essa, não virá ter contigo! Não é sem custo, sem grandes esforços, que chegamos a conhecê-la; mas vale bem a pena o esforço, porquanto de uma só vez se obtêm todos os bens possíveis (idem, T.III, p.56-57).

 

Apesar de indicar que a virtude é conseqüência do esforço e do aprendizado, Sêneca condena, ao fim e ao cabo, a noção de se achar que o trabalho intelectual representa a única via para atingi-la. Sendo a virtude uma coisa que emana da sabedoria prática, não haveria problema em o indivíduo não se intelectualizar, mantendo-se desprovido de qualquer conhecimento científico. Pelas suas ações concretas, frutos de seu agir espontâneo, ele teria condições de revelar-se dotado do valor em questão, abdicando de recorrer a suportes externos:

 

é possível chegar à sabedoria sem as artes liberais, pois embora a virtude se aprenda não é através delas que se aprende. Que razão me impede de pensar que pode vir a ser sábio um homem que desconhece o alfabeto, uma vez que a sabedoria não reside no alfabeto? A sabedoria cinge-se às acções, não às palavras; não sei mesmo se não será mais segura a memória que dispensa qualquer auxílio exterior (Sénèque. Lettres a Lucilius, T.III, p.168).

 

Sêneca, como Rousseau, admite o valor que se deve dar ao tempo, o qual não pode ser desperdiçado, e se preocupa também com as etapas da formação moral que trarão como resultado a virtude e a liberdade. É a dimensão corporal do indivíduo que importa considerar inicialmente, e, para tanto, vale que este último seja levado a executar tarefas duras, trabalhos difíceis, que não lhe moldarão, por certo, para triunfar no âmbito teórico, mas o deixarão apto a vencer sua moleza, a superar sua baixa resistência física, e a aumentar sua saúde e sua coragem. O que deve ser exigido no início do crescimento, portanto, são exercícios práticos e não afazeres sedentários, incapazes de fortalecerem os homens: “é preciso um treino rigoroso para que alguém se mantenha firme sob a tortura, para que, em caso de necessidade, fique em pé mesmo ferido, de sentinela ao acampamento, sem encostar-se sequer à lança, pois numa situação destas o mais frágil ponto de apoio torna-se propício ao sono”(idem, T.I, p.153-154).

Sêneca também submete o conhecimento à sua apreciação moral e indica que o indivíduo, ao chegar no ponto de cultivar-se espiritualmente, deve afastar-se das superfluidades, dos saberes inúteis, pois estes não colaboram na busca do crescimento, na conquista do bem-estar e da felicidade. O estóico romano identifica esse problema nas obras dos pensadores clássicos, apesar de não pretender negar a filosofia no sentido absoluto. O indispensável, para ele, se reveste sempre de grande clareza e simplicidade, mas os pretensos sábios desperdiçam tempo dando atenção a sutilezas sem a menor importância: “os filósofos, quanta superfluidade, quanta coisa inútil neles encontramos” (idem, T.III, p.171). Os esforços, em síntese, devem convergir unicamente para “libertar o espírito de tudo quanto é supérfluo”(idem, T.III, p.169) a fim de trazerem como ganho o bem supremo.

Rousseau formula várias teses, no Discurso sobre as ciências e as artes, que aparecem em muitos outros filósofos, desde a Renascença, que se inspiraram também nos clássicos da tradição greco-romano para construírem seus pensamentos. Mas essa nossa rápida leitura, seguida de uma comparação de textos, permite se conservar a idéia de que Sêneca foi importante no estabelecimento de sua doutrina. Diz-se que Rousseau encontrava problemas com o latim e que isso teria dificultado seu acesso às obras do autor romano. Entretanto, acreditamos que ele, valendo-se muitas vezes de traduções, pôde conhecer muito bem suas idéias, as quais são passíveis de serem identificadas no interior de sua vasta obra, a começar pelo Primeiro Discurso.

 

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