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O papel da educação na formação do indivíduo: Origem do Estado de Rousseau

 

Angélica Aparecida Ferreira

Universidade São Judas Tadeu

 

O objetivo deste trabalho é traçar algumas considerações acerca do papel do indivíduo na formação do Estado de Rousseau, mas, principalmente, demonstrar a importância da formação deste indivíduo, fornecida por uma educação adequada.

O texto se divide em duas partes. Na primeira, faz-se um breve resumo sem a pretensão de abarcar todas as especificidades da filosofia de Rousseau, comparando-o algumas vezes com outro filósofo de esteira contratualista, Thomas Hobbes, para que se possa identificar algumas das peculiaridades do sistema filosófico rousseaniano em relação aos demais. Isso é necessário também para que consigamos identificar a necessidade de fundar seu indivíduo com base em um sistema educacional. Em segundo lugar, farei alguns apontamentos sobre o primeiro livro de seu tratado Emílio ou da Educação, para exemplificar a relação entre seu sistema político e a necessidade de uma educação que lhe corrobore e dê base ao cidadão.

Sabe-se que Jean-Jacques Rousseau como um pensador político participante de seu tempo, bastante contestador, pode ser inserido dentro de um modelo intitulado contratualismo, do qual fazem parte também Thomas Hobbes e John Locke. Nesse sentido, pode-se comparar de algum modo suas filosofias bem como seus sistemas de formação do cidadão, que se no caso de Rousseau, se dá a partir da educação, por outros essa formação se dará de outra maneira, porém com objetivos semelhantes. Deve-se ter em mente que se tratando de filosofia política, uma das características fundamentais que temos é a intervenção, ou seja, o filósofo parte de problemas contextualizados em sua época, problemas da prática humana e tenta propor soluções para a resolução desses problemas.

Uma das características comuns a esses filósofos é a diferenciação entre o estado de natureza e o estado civil, e para que ocorra a passagem de um para o outro é necessária uma escolha por parte da maioria dos homens que de alguma maneira já se constituem em uma comunidade, mas somente tornam-se parte de uma sociedade civil quando é instituído o que chamamos de pacto ou contrato. Ademais, nas filosofias contratualistas sempre partimos do homem, em seu estado de natureza, numa condição de liberdade, sem associação com os demais e com igualdade e individualidade extremas. A passagem do estado de natureza para o estado civil não ocorre por uma espécie de evolução ou força natural das coisas é, antes de tudo, uma escolha, uma convenção, a qual se pode até mesmo denominar posteriormente de cultura.

Considerando, entretanto, tais teorias, importantes diferenças podem ser apontadas. O sistema rousseauniano é aquele que mais precisa ser analisado em termos de sistema, já que a tomada de algumas obras independentes sem considerar essa totalidade pode levar a inúmeras discrepâncias de interpretação.

É justamente por isso que nos permitimos considerar algumas obras de Rousseau para o estudo de seu Emílio, ou da educação e é pelo mesmo motivo que faremos um pouco mais do que isso considerando também o modelo teórico-político no qual se insere e fazendo algumas comparações com outros que compartilham desse mesmo modelo.

Rousseau, como os demais, faz um estudo do homem em seu estado natural, o estado de isolamento do ser humano, diferente daquele apontado por Hobbes, a “guerra de todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 1973, p. 79), e mais ainda do modelo aristotélico de natureza humana, que afirma ser este um animal político. A definição desse primeiro estado do ser humano é dada no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, no qual Rousseau caracteriza o homem em tal estágio como aquele em liberdade e isolamento, considerando uma não sociabilidade e possuidor apenas de necessidades físicas (besoin). É claro que se trata aqui de um estado hipotético, pois bem afirma o filósofo: “... mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se tenham encontrado no estado puro de natureza” (ROUSSEAU, 1983, p. 236), assim como também é  hipotético o estado de natureza hobbesiano. Ademais, Rousseau estabelece tal estado, já que afirma ser aquele tratado por Aristóteles e por Hobbes insuficientes, pois eles já consideraram o homem num segundo estágio, aquele no qual já há o contato entre os indivíduos e o domínio dos desejos. No caso de Hobbes o desejo é o principal motivo para que ocorra a guerra de todos contra todos, pois se os homens são iguais e desejam as mesmas coisas sem haver nenhum tipo de direito ou dever, nada os impede de se atacarem para obterem aquilo que desejam.

Ademais, a própria dicotomia estabelecida entre o estado de natureza e o estado civil, no caso de Hobbes, constituído apenas de uma passagem que se denomina o pacto ou contrato, em Rousseau aparece como um modelo tripartido no qual, além do estado de natureza e do estado civil, há uma sociedade começada, ou posteriormente poder-se-ia atribuir ao sistema rousseauniano: um estado de natureza, uma sociedade fundada na desigualdade e a sociedade civil fundada no Contrato Social.

Se é no estado de natureza que encontramos o homem mais livre e sem as necessidades criadas ou supérfluas, é através da comparação que ele vai começar a desenvolver, num segundo estágio, a degradação ontológica. Na sociedade começada, então, na qual o homem começa a participar das festas populares (FREITAS, 1997, p. 28) é que começam as comparações e dos desejos suscitados num outro sentido, já que todos querem ser apreciados e para isso há modificação ou “domesticação” do comportamento humano:

 

Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência (ROUSSEAU, 1983, p. 263).

 

Ademais, o que chamamos de degradação moral nada mais é do que a diferença entre o ser e o parecer, que também poderia ser expressa pela diferença entre o perceber (percevoir) e o comparar (apercevoir), já que nossas percepções também são induzidas a trazer aquilo que nos remete a uma relação do “ego narcísico”. Tudo isso significa dizer que a partir de um determinado momento, mais especificamente do que se caracterizaria como o segundo estágio, o homem acaba por considerar mais importante parecer (podemos colocar qualquer adjetivo completando a idéia como: parecer feliz, parecer bonito, parecer rico etc) do que ser. Essa degradação ontológica é refletida naquilo que até então chamaríamos do instinto de conservação que o homem possui desde seu estado de natureza, o amor-de-si, e culminaria no narcísico amor-próprio. Isso também significa dizer que em Rousseau enquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes, os homens são essencialmente bons, o que não o coloca como um defensor do “irracionalismo”, mas somente da idéia de que quanto maior o progresso intelectual, maior a degradação moral, o que se constitui a partir de uma análise empírica de Rousseau da sociedade francesa do século XVIII.

Não obstante toda a constatação de uma formação social pessimista que Rousseau coloca, há o modelo do Contrato Social a ser seguido. Este se difere daquela sociedade civil do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, em que a única fundamentação social era a propriedade, sendo que todos os que acreditaram no indivíduo que primeiro cercou a propriedade e disse “c’est moi”, fariam parte de uma sociedade civil, iniciada pela constituição desigual. Nesse momento se instaura o conflito, ou a “guerra”, semelhante aos termos hobbesianos, pois os que detêm o poder das técnicas e meios de produção vão querer também se apropriar do trabalho e dos frutos do trabalho. É nesse sentido que se deve instituir o pacto, conhecido em Rousseau como contrato social, semelhante ao motivo de criação do Estado em Hobbes, criado justamente para evitar as desavenças e garantir a segurança dos seres humanos e cuja função é estar acima dos interesses antagônicos, impondo normas a serem obedecidas por todos. Troca-se, portanto, a guerra pela paz social. Para que isso ocorra são necessárias duas etapas: a criação das leis e, posteriormente, a criação do governo. Teríamos, assim, um governo constituído a partir do consenso entre todas as partes singulares (os indivíduos) que não mais seriam unidades em si mesmas, mas se tornariam uma espécie de fração dentro de uma unidade maior que é o Estado.

É interessante perceber, como afirma Cassirer (CASSIRER, 1999, p. 47), que não é possível atribuir a Rousseau nenhuma perspectiva ou pensamento único, pois se em um determinado momento ele elogia o indivíduo em seu estado de natureza ou de isolamento, dizendo ser este o estado mais meigo do indivíduo, não se poderia afirmar no contexto rousseauniano esta como uma postura individualista. Quando tratamos da mesma forma da sua idéia de degradação moral quase inversamente proporcional às luzes da razão,  poder-se-ia considerar o filósofo um “irracionalista”, mas isso não pode ser feito porque em Rousseau vemos um movimento constante das idéias, que é justamente o que mantém suas características e traços quase de uma “evolução” no pensamento.

É nesse sentido que Rousseau escreve seu tratado sobre a educação, tendo em vista essa sociedade do Contrato Social, ou seja, a formação com a qual o filósofo se preocupa é aquela individual, mas, sobretudo, a formação do cidadão que dará prosseguimento adequado a esse modelo político, pois se a sociedade se funda justamente para combater as desigualdades e conflitos gerados pelos desejos e paixões humanas, de que nos adiantaria uma educação que não formasse os homens para esse tipo de sociedade, ou ainda, uma educação em que estes homens não conseguissem sequer controlar suas paixões?

O cidadão, nesse sentido, mostra-se diferente do homem, tanto no que diz respeito a seu estado de natureza, quanto ao daquele ego narcísico do homem da sociedade começada. É por isso que:

 

As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade, e só seja perceptível no todo (ROUSSEAU, 1995, p. 11).

 

Nota-se nesse excerto a mesma idéia presente em Hobbes, que em seu Leviatã, de 1651, propõe uma pessoa artificial, o Estado, composto por milhares de partes, os cidadãos, que deixam de alguma maneira sua individualidade justamente para haver o comum e não mais os interesses antagônicos.

É interessante comparar nesse sentido também os métodos utilizados por Hobbes e Rousseau, já que no Emílio seu suposto educando é uma espécie de ser imaginário (como aquele estado de natureza hipotético que vimos anteriormente).

Isso significa dizer que, enquanto Rousseau baseia todo seu sistema filosófico num método de hipóteses, de prováveis, Hobbes propõe um método matemático, que mantenha um rigor científico.

No entanto, é interessante notar algumas metáforas presentes nos dois métodos, porque se Hobbes em determinado momento compara o Estado a um corpo:

 

Não sei a que doença do corpo natural do homem posso comparar exatamente esta irregularidade de um Estado. Mas uma vez vi um homem que tinha outro homem ligado a um de seus lados, com cabeça, braço, tronco e estômago próprios: se tivesse outro homem do outro lado, a comparação podia então ser exata (HOBBES, 1973, p. 201),

 

por outro lado Rousseau traz a idéia de uma educação que deve ser dada para que cada cidadão cumpra seu determinado posto na sociedade, ou seja, também refere-se ao corpo, quando afirma serem nocivos os tratos para com uma criança pequena. Tal criança, que desde cedo é colocada em cueiros, não poderá ser um bom cidadão quando adulto já que, deformando o corpo desde muito jovem, terá características efeminadas quando amadurecer:

 

A criança recém-nascida precisa esticar e mover os membros para tirá-los do entorpecimento [...] os impedimos de se moverem; chegamos até a prender-lhe a cabeça a testeiras: até parece que temos medo de que ela pareça estar viva. [...] Temendo que os corpos se deformem com os movimentos livres, apressam-se em deformá-los pondo-os entre prensas. De bom grado os tornariam paralíticos para impedi-los de se estropiarem (ROUSSEAU, 1995, p. 16-17).

 

O papel da educação é justamente este da hipótese, já que Rousseau se considera numa sociedade decadente, é obrigado então a criar uma criança que não existe e lhe propor outras posturas, para uma sociedade também hipotética é claro. É por isso necessário que as instituições, de outrora boas, desnaturassem o homem, tirassem dele o caráter das paixões e desejos individuais, suscitados a partir do mau convívio social.

Além disso, o único papel da educação é sustentar esse plano ideal e conservar os indivíduos dentro de leis e governo com caráter de justiça. Os pais têm uma obrigação para com o estado: “Um pai, quando gera e sustenta seus filhos, só realiza com isso um terço de sua tarefa. Ele deve homens à sua espécie, deve à sociedade homens sociáveis, deve cidadãos ao Estado.” (ROUSSEAU, 1995, p. 25). O cidadão torna-se diferente do homem, pois o primeiro é parte integrante da engrenagem do corpo político. Trata-se daquilo que chama educação dos homens, a única na qual se pode interferir. E é essa educação que forma o cidadão.

A própria teoria da sensibilidade presente no plano educacional rousseauniano é diferenciada. Na verdade, não se pode tratar de uma teoria da sensibilidade em Hobbes, mas as leis e o Estado existiriam para suprimir as paixões individuais. Em Rousseau, as paixões não aparecem como um problema simplesmente por serem paixões, mas apenas quando implicam na necessidade de comparação, nas necessidades supérfluas (necessités), advindas da degradação no plano ontológico. É por isso que a educação deve servir inicialmente ou tão somente a famílias abastadas (como a do próprio Emílio), pois só corre o risco de se degradar, no sentido do parecer, aquele que tem suas necessidades básicas supridas a ponto de conseguir desejar além: “O pobre não precisa de educação; a de sua condição é obrigatória, não poderia ter outra” (ROUSSEAU, 1995, p. 30). O único poder da educação dos homens é a condução das paixões, trazendo um verdadeiro estado de bem estar para o homem.

A sensibilidade, além disso, adquire papel importante em Rousseau, pois: “...a educação do homem começa com o nascimento; antes de falar, antes de ouvir, ele já se instrui. A experiência antecipa as lições; no momento em que conhece sua ama-de-leite, ele já descobriu muitas coisas” (ROUSSEAU, 1995, p. 45). Tais sensações, contudo, devem ser conduzidas dentro do sistema estabelecido pelo Contrato Social. O papel da educação não é a formação do homem, mas do cidadão.

Nota-se que se tal sistema nos parece tão distante é por sua preocupação com a busca da virtude nos homens. Segundo Rousseau, os mais bem educados eram aqueles que suportariam os bens ou males da vida. Além disso, a noção de viver bem, do sumo bem aristotélico, que se baseava na justa medida e que era adquirida por hábito, ou exercício, não pode deixar de ser referência, já que o próprio Rousseau resgata a educação privilegiando o exercício, em detrimento do preceito, pois é o desenvolvimento da práxis humana:

 

Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana, está acorrentado por nossas instituições (ROUSSEAU, 1995, p. 16).

 

Portanto, essa educação de Rousseau, de alguma maneira, propõe a alienação do indivíduo enquanto papel social. É de uma existência relativa, como o próprio Rousseau afirma, que parte a sociedade. O homem deixa de ser tudo para si e se torna relativo ao todo, alienado no denominador, o Estado. o homem assumindo o pacto da sociedade, imediatamente se aliena nessa outra pessoa, o Estado, da qual agora é somente um membro, abandonando seus desejos e apetites em função da segurança e da virtude.

Os exemplos dados por Rousseau demonstram com bastante propriedade tal alienação: quando, por exemplo, uma mãe que perde todos os cinco filhos na guerra sente-se feliz pela vitória de seu Estado.

É preciso o distanciamento necessário para notar como o patriotismo considerado por Rousseau pode ser uma demonstração de virtude ou como a educação proposta poderia ser aplicada. Tal educação torna-se base da teoria de Estado de Rousseau, não somente no que tange o âmbito político, mas o ético e o moral, é por isso que seu sistema educacional é estudado até hoje nas universidades e que inspira tantas reflexões contra ou a favor mas nunca indiferentes. É o que diz Lévi-Strauss ao considerá-lo o pai da antropologia:

 

A revolução rousseauniana, formando e atraindo a revolução etnológica, consiste em negar as identificações forçadas, seja de uma cultura a outra, ou de um indivíduo que é parte de uma cultura ao personagem ou a função social que essa cultura trate de lhe impor (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 12).

 

 

Referências Bibliográficas:

 

BOBBIO, N. Thomas Hobbes, Trad. Carlos Nélson Coutinho, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1991.

CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau, Trad. Erlon José Paschoal, Ed. Unesp, São Paulo, 1999.

FORTES, L.R.S. Rousseau, o bom selvagem, Ed. FTD, São Paulo, 1989.

FREITAS, J. Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação, Ed. Humanitas, Fapesp, São Paulo, 1997.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Col. Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1973.

LÉVI-STRAUSS, C. Jean-Jacques Rousseau, fundador de las ciencias el hombre, Ed. de la Baconnière, Neuchâtel, 1962.

ROUSSEAU, J.J.  Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Trad. Lourdes Santos Machado, Col. Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1983.

_____________, Emílio ou da Educação, Trad. Roberto Leal Ferreira, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1995.

 

 

 

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