(© S. S. Chibeni. Notas de aula elaboradas em 1990 e revisadas em 2004 e 2020.)

 

Kuhn e a estrutura das revoluções científicas

 

SILVIO SENO CHIBENI

Departamento de Filosofia - IFCH

Universidade Estadual de Campinas

www.unicamp.br/~chibeni

 

ÍNDICE

 

1. Introdução........................................................................................................................................ 1

2. Paradigmas e ciência normal............................................................................................................. 2

3. Irracionalismo e incomensurabilidade............................................................................................... 3

4. Esboço de críticas à incomensurabilidade......................................................................................... 3

5. Referências....................................................................................................................................... 3

 

 

1. Introdução

 

As presentes notas primeiramente recapitulam e reconstroem racionalmente de maneira breve os elementos centrais mais originais da visão de ciência proposta por Thomas Kuhn nas Seções 1 a 7 de The Structure of Scientific Revolutions. As seções restantes, nas quais a controversa tese da incomensurabilidade dos paradigmas é apresentada e defendida, são então objeto de uma análise em nível introdutório. Após o isolamento de algumas passagens nas quais a visão de Kuhn parece enquadrar-se na concepção usual, que não contempla a existência da incomensurabilidade, procura-se extrair do texto complexo as três razões principais que Kuhn apresenta a favor daquela tese. Por fim esboça-se um esquema das objeções que se poderiam levantar contra a argumentação de Kuhn.

O objetivo aqui é primordialmente pedagógico; estas anotações poderiam servir para uma discussão, em um curso de graduação, que se seguiria a uma primeira leitura do livro de Kuhn. Não se fará qualquer tentativa de acompanhar o (problemático) desenvolvimento do pensamento de Kuhn em seus escritos filosóficos posteriores, incluindo-se aí o perturbador “Posfácio”, de 1969. Também foge completamente ao escopo destas notas a avaliação geral da filosofia da ciência de Kuhn, bem como o exame de seus antecessores e de seus numerosos críticos e seguidores.[1]

 

2. Paradigmas e ciência normal

 

No Prefácio de seu livro, Kuhn aponta dois fatores decisivos na gênese de suas idéias acerca da ciência. Primeiro, seu contato profissional com a história da ciência revelou-lhe a inadequação da visão corrente de ciência. Depois, seu estágio no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences da Universidade de Stanford possibilitou-lhe comparar os problemas, métodos, valores e atividades dos cientistas sociais com os dos cientistas naturais, que lhe eram familiares. Esse confronto forneceu-lhe a chave para a compreensão da natureza da ciência: Uma disciplina ingressa na fase científica com a aquisição de um paradigma.[2]

A noção de paradigma recebe, ao longo do livro, caracterizações múltiplas e nem sempre precisas, conforme o próprio Kuhn irá conceder depois.[3] Aqui nos contentaremos em observar que o que Kuhn tem em mente é que uma disciplina científica não se caracteriza, conforme usualmente se assumia, apenas por uma dada teoria específica; ao lado dela encontra-se uma plêiade de teorias auxiliares, técnicas matemáticas e experimentais, realizações concretas que servem de modelo, valores, crenças variadas (inclusive de ordem metafísica), etc.[4]

Às atividades desenvolvidas pelos cientistas sob a diretriz de um determinado paradigma Kuhn denomina ciência normal. Em oposição, os episódios nos quais um paradigma é substituído por outro constituem as revoluções científicas. Indubitavelmente, uma das mais importantes contribuições de Kuhn à filosofia da ciência foi haver “descoberto” (nas palavras de Popper, 1970) a existência da ciência normal, ou seja, ter notado que há períodos do desenvolvimento de uma dada especialidade científica em que os cientistas dedicam-se a resolver os problemas deixados em aberto pelo paradigma.[5] A estes problemas Kuhn denomina quebra-cabeças [puzzles] (Seção 4). Como a partilha de um paradigma tem o efeito de eliminar as discussões sobre os fundamentos, e de fixar as regras, padrões e objetivos de sua disciplina, os cientistas normais podem centralizar seus esforços na articulação interna do paradigma, na extensão do conhecimento dos fatos selecionados como importantes pelo paradigma e no incremento do ajuste desses fatos com as previsões teóricas do paradigma.

 Kuhn defende que essa atividade do cientista normal não visa a confirmar ou refutar o paradigma sob o qual se desenvolve. A postura não-crítica do cientista normal diante do paradigma que adota é essencial, segundo ele, para que o estudo da Natureza possa ser aprofundado.

A descrição detalhada que Kuhn fornece da ciência normal contém elementos originais importantes. Kuhn defende que grande parte do conhecimento do cientista normal é, na expressão de Polanyi, tácito, i.e., adquirido pela inspeção e imitação de problemas-soluções exemplares, e não através de regras e proposições explicitáveis (Seções 4 e 5). Isto leva Kuhn a investigar o processo de aprendizado de ciência (Seção 11). Expende a tal respeito interessantes considerações sobre o papel dos livros-texto na educação científica, ressaltando sua eficácia na formação do cientista normal.[6] Associada a esse assunto, está a crítica de Kuhn à doutrina positivista do significado dos termos teóricos, segundo a qual tais termos adquirem significado através de sua conexão aos termos observacionais através de regras de correspondência.[7] Propõe que embora certas regras explícitas possam em determinadas ocasiões contribuir para a especificação dos significados dos termos, uma parte importante desse significado é adquirida pela exposição a exemplares. Ademais, sustenta [8] que qualquer reconstrução racional do conhecimento científico que procure reduzir os significados dos termos a regras de correspondência distorcerá de modo grave a nossa compreensão da natureza daquele conhecimento.

As investigações da ciência normal acabam levando, não intencionalmente, à acumulação de quebra-cabeças particularmente resistentes às tentativas de resolução. Essas dificuldades de ajuste do paradigma à Natureza não são vistas como falseadoras do paradigma, mas como meras anomalias (Seções 6 e 7). Quando incidem sobre partes vitais do paradigma, ou estão ligadas a algum fator externo premente, ou acumulam-se em grande número, ou resistem por muito tempo, essas anomalias levam a estados de crise (Seções 7 e 8). Somente então inicia-se a busca deliberada de alternativas para o paradigma vigente.

Fatores variados e não necessariamente racionais podem levar um indivíduo, ou um pequeno grupo de indivíduos, a se interessar por uma dessas alternativas, por embrionárias que sejam, e tomar para si a tarefa de desenvolvê-la, e, posteriormente, de convencer o restante da comunidade científica a que pertencem. Apenas nessas condições a comunidade científica pode se dispor a abandonar o seu paradigma; um paradigma nunca é rejeitado sem que concomitantemente um outro seja aceito. Esta é outra tese importante de Kuhn (Seção 8), que foi também defendida, de forma independente, por outros filósofos da ciência seus contemporâneos.

 

3. Irracionalismo e incomensurabilidade

 

Nada do que foi visto até aqui conflita com a visão realista e não irracionalista ordinária. Ou, pelo menos, pode-se afirmar que é possível uma leitura realista não irracionalista das primeiras sete seções do livro de Kuhn. Quando, porém, adentramos as seções nas quais Kuhn trata das revoluções científicas, e expõe as razões que acredita determinarem a mudança de paradigma, uma reconstrução realista não irracionalista começa a parecer implausível.

Em seus artigos posteriores, Kuhn explicitamente admite, e reitera, a sua posição anti-realista. Enfatiza que a visão realista usual, segundo a qual o objetivo da ciência é a busca da verdade, entendida no sentido clássico, é insustentável.[9] Nas presentes notas essa questão não será abordada de maneira explícita.

Já a acusação de irracionalismo é repudiada veementemente por Kuhn.[10] Paradoxalmente, ao mesmo tempo reforça seus argumentos a favor da tese da incomensurabilidade dos paradigmas, que dá margem àquela acusação. Essa tensão já está presente no texto original de 1962, e é exclusivamente dele que nos ocuparemos a seguir.

Inicialmente, isolemos algumas passagens compatíveis com uma visão não irracionalista do processo de substituição de paradigmas.

Há três tipos de saída para uma crise (p. 84): i) A articulação ulterior do paradigma acaba resolvendo as anomalias que geraram a crise; ii) as anomalias resistem, mas são postas de lado, aguardando solução futura; ou iii) um novo paradigma é adotado, à luz do qual as anomalias se resolvem ou deixam de ser consideradas importantes.

 

A decisão de se rejeitar um paradigma é sempre simultaneamente a decisão de se aceitar um outro, e o julgamento que leva à decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a Natureza e a comparação de um paradigma com o outro. (p. 77)

A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma, a partir do qual uma nova tradição de ciência normal possa emergir, está longe de ser um processo cumulativo, alcançado através de uma articulação ou extensão do paradigma anterior. É, ao invés, uma reconstrução do campo a partir de fundamentos novos, que muda algumas de suas mais elementares generalizações teóricas, bem como muitos dos métodos e aplicações de seu paradigma. Durante o período de transição haverá uma sobreposição [overlap] ampla, porém nunca completa, entre os problemas que podem ser resolvidos pelo velho e pelo novo paradigma. (pp. 84-5)

 

Kuhn defende aqui a tese anti-positivista, já defendida por Popper, de que uma nova teoria (ou, mais amplamente, um novo paradigma) não pode ser interpretada como um caso particular da teoria anterior.

As revoluções científicas são aqui tomadas como sendo aqueles episódios não-cumulativos nos quais um paradigma mais velho é substituído total ou parcialmente por um paradigma incompatível. [11]

 

Sendo os paradigmas constelações tão amplas de teorias, métodos, técnicas e valores, com contornos parcialmente difusos, “a competição entre paradigmas não é o tipo de batalha que possa ser resolvida por provas” (p. 148); “[...] não pode ser forçada pela lógica e pela experiência neutra” (p. 150). No entanto, “faz muito sentido perguntar-se qual dentre duas teorias atuais em competição se ajusta melhor aos fatos” (p. 147).

 

Ademais, dizer que a resistência [à mudança de paradigma] é inevitável e legítima, que a mudança de paradigma não pode ser justificada por provas, não é dizer que nenhum argumento é relevante, ou que os cientistas não possam ser persuadidos a mudar de opinião. [...] A questão da natureza dos argumentos científicos [nas fases revolucionárias] não possui uma resposta única e uniforme. Provavelmente, a mais determinante alegação isolada da parte dos proponentes de um novo paradigma é que eles podem resolver as dificuldades que levaram à crise. [...] Alegações desse tipo são particularmente propensas a alcançar êxito se o novo paradigma exibe uma precisão quantitativa flagrantemente melhor do que o seu competidor mais velho. [...] Argumentos particularmente persuasivos podem ser desenvolvidos se o novo paradigma permite a predição de fenômenos de que de nenhum modo se suspeitava enquanto o velho paradigma prevalecia. (pp. 152-4)

Todos os argumentos a favor de um novo paradigma discutidos até aqui baseiam-se na capacidade comparada dos competidores resolverem problemas. Para os cientistas, esses argumentos são os mais significativos e persuasivos. Os exemplos precedentes não deixam dúvida sobre a fonte de seu imenso apelo. (p. 155)

Embora os paradigmas novos raramente, ou nunca, possuam todas as capacidades de seus predecessores, eles usualmente preservam muito das partes mais concretas das realizações [achievements] passadas, e sempre permitem problemas-soluções concretos adicionais. (p. 169)

 

Passemos agora a algumas das afirmações de Kuhn que deram lugar às críticas de irracionalismo. Muitas passagens do livro indicam que Kuhn concebe o processo de substituição de paradigmas como não sendo passível de efetuar-se com base em critérios objetivos.[12] Central nesta questão é a afirmação de que diferentes paradigmas são incomensuráveis.

Como a noção de paradigma, a noção de incomensurabilidade é de caracterização problemática, nos escritos de Kuhn. Grosso modo, liga-se a uma alegada dificuldade de comunicação entre os profitentes de paradigmas diferentes. [13] Para efeito de análise, é conveniente separar em três as razões de Kuhn para essa tese: mudança do referencial, mudança dos dados e mudança dos significados.

 

(i) A primeira razão, a mudança do referencial, é exposta pela primeira vez de modo mais ou menos extenso no início da Seção 9. Kuhn traça um paralelo entre as revoluções científicas e as revoluções políticas. Vejamos estes trechos:

 

As revoluções políticas objetivam a mudar as instituições políticas de maneiras que essas próprias instituições proíbem. O seu sucesso requer, pois, o parcial abandono de um conjunto de instituições em favor de outro e, no ínterim, a sociedade não é completamente governada por nenhuma instituição. [...] Então, à medida que a crise se aprofunda, muitos desses indivíduos se comprometem com alguma proposta concreta de reconstrução da sociedade segundo um novo referencial institucional. [...] E uma vez ocorrida a polarização, recursos políticos falham. Por diferirem sobre a matriz institucional dentro da qual a mudança política deve ser alcançada e avaliada, e por não reconhecerem nenhum referencial supra-institucional para a arbitragem das diferenças revolucionárias, as partes de um conflito revolucionário têm, em última instância, de apelar para técnicas de persuasão de massa, e freqüentemente ao uso da força. Embora as revoluções tenham tido um papel vital na evolução das instituições políticas, esse papel depende de serem eventos parcialmente extra-políticos ou extra-institucionais.

O restante deste ensaio objetiva a demonstrar que o estudo histórico das mudanças de paradigma revela, na evolução da ciência, características muito semelhantes às que vimos de descrever. Como a escolha entre instituições políticas em competição, a escolha entre paradigmas em competição mostra-se ser uma escolha entre modos de vida comunitária incompatíveis. [...] Quando paradigmas comparecem, como têm de comparecer, no debate sobre a escolha de paradigmas, seu papel é necessariamente circular. Cada grupo usa o seu próprio paradigma para argumentar na defesa desse mesmo paradigma. (pp. 93-4)

[A argumentação] não pode ser tornada lógica, ou mesmo probabilisticamente determinante para aqueles que se recusam a entrar no círculo. As premissas e valores partilhados pelas duas partes de um debate sobre paradigmas não são suficientemente extensas para tal. Como nas revoluções políticas, também na escolha entre paradigmas não existe padrão superior ao assentimento da comunidade relevante. (p. 94)

 

Essa opinião de Kuhn recebe plausibilidade por sua referência, não a teorias, mas a paradigmas, que são muito mais abrangentes, conforme fica explícito nesta passagem:

 

Paradigmas sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre a população do Universo e sobre o comportamento dessa população. [...] Mas paradigmas diferem mais do que [nisto], [...] pois se dirigem não apenas à Natureza, mas também, reflexivamente, sobre a ciência que os produziu. São a fonte dos métodos, campo de problemas e padrões de solução aceitos por toda comunidade científica madura, em qualquer tempo. Como conseqüência, a aceitação de um novo paradigma freqüentemente requer uma redefinição da ciência correspondente. Alguns dos velhos problemas podem ser relegados a uma outra ciência, ou declarados completamente “não-científicos”. Outros, que previamente eram não-existentes ou triviais, podem, com um novo paradigma, tornar-se os arquétipos mesmos da realização científica importante. E com a mudança dos problemas, freqüentemente também mudam os padrões que distinguem soluções científicas reais de meras especulações metafísicas, jogos de palavras, ou brincadeiras matemáticas. A tradição de ciência normal que emerge de uma revolução científica não é apenas incompatível, mas freqüentemente incomensurável com a tradição anterior. (p. 103)

 

E um pouco mais adiante Kuhn comenta:

 

Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria, métodos e padrões conjuntamente, usualmente em uma mistura inextricável. Portanto, quando os paradigmas mudam, usualmente há deslocamentos significantes nos critérios que determinam a legitimidade tanto dos problemas como das soluções propostas.

Essa observação [...] fornece nossa primeira indicação explícita de porque a escolha entre paradigmas em competição via de regra suscita questões que não podem ser resolvidas pelos critérios da ciência normal. Na medida [...] em que duas escolas científicas discordam sobre o que é um problema e sobre o que é uma solução, elas irão inevitavelmente engajar-se em um diálogo de surdos [talk through each other] quando debaterem os méritos relativos de seus respectivos paradigmas. Nos argumentos parcialmente circulares que via de regra resultam de tal situação, mostrar-se-á que cada paradigma satisfaz mais ou menos os critérios que ele dita para si mesmo, e não satisfaz alguns daqueles ditados por seu oponente. Há ainda outras razões para a incompletude do contato lógico que caracteriza os debates de paradigmas. Por exemplo, visto que nenhum paradigma jamais resolve todos os problemas que ele define, e visto que nenhum par de paradigmas deixam sem solução exatamente os mesmos problemas, os debates de paradigma sempre envolvem a questão: Quais problemas é mais importante ter resolvido? Como a questão dos padrões em competição, essa questão de valores pode ser respondida apenas em termos de critérios que ficam completamente fora da ciência normal, e é tal recurso a critérios externos que de modo mais óbvio torna o debate de paradigmas revolucionário. (pp. 109-10)

 

 

(ii) Uma segunda razão para a incomensurabilidade surge, porém, com a argumentação filosófica direta que Kuhn apresenta contra a existência de uma base empírica mínima comum que poderia servir de referência nas disputas entre paradigmas rivais. Trata-se do que acima denominamos tese da mudança dos dados: Kuhn defende que os próprios dados empíricos dependem de modo tão estreito do paradigma adotado que quando este muda aqueles também mudam. Kuhn rejeita a opinião ordinária segundo a qual os dados são de algum modo neutros, podendo ser interpretados desta ou daquela maneira dependendo do paradigma que se adote.

Kuhn inicia a defesa dessa tese na Seção 8, onde aproveita, e radicaliza, a idéia de Hanson, de que a mudança de paradigma pode ser comparada a uma mudança de gestalt. Comenta então que

 

Esse paralelo pode ser enganoso. Os cientistas não vêem algo como alguma outra coisa; eles simplesmente o vêem. (p. 85)

 

O assunto é retomado explicitamente na Seção 10, na qual Kuhn expõe mais extensamente os motivos pelos quais a comparação com as gestalt switches são por um lado adequadas e por outro não. As razões da inadequação são basicamente duas: no caso das mudanças de “gestalt” que acompanham as mudanças de paradigma, não dispomos de um “padrão externo com relação ao qual a comutação de visão possa ser demonstrada” (p. 114), e a mudança é em geral irreversível. Tais pontos ficarão evidenciados nas citações abaixo, que também exibem o caráter radical da posição de Kuhn:

 

Guiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e olham para novos lugares. Mais importante ainda: durante as revoluções os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando olham com instrumentos familiares para os lugares que haviam olhado anteriormente. [...] Na medida em que o seu único acesso ao mundo é através do que vêem e fazem, podemos desejar dizer que após a revolução os cientistas estão respondendo a um mundo diferente. [...] (p. 111)

 

O que eram patos no mundo do cientista antes da revolução são coelhos após ela. [...] Transformações como essas, embora mais graduais e quase sempre irreversíveis, são concomitantes comuns do treinamento científico. [...] Olhando para uma câmara de bolhas, o estudante vê linhas entrecortadas e confusas, enquanto que o físico vê um registro de eventos sub-nucleares [sic] familiares. [...] O mundo no qual o estudante então adentra não é, porém, fixado de uma vez por todas pela natureza do meio [environment], de um lado, e da ciência, de outro. É, ao invés, determinado conjuntamente pelo meio e pela tradição de ciência normal particular que o estudante foi treinado para seguir. Portanto, nos momentos de uma revolução, quando a tradição de ciência normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio tem de ser reeducada – em algumas situações familiares, ele tem de aprender a ver uma nova gestalt. Uma vez que o faça, o mundo de sua pesquisa parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava antes. Esta é outra razão pela qual escolas guiadas por diferentes paradigmas estão sempre ligeiramente at cross-purposes. (pp. 111-2)

 

Considerando então os experimentos psicológicos dos óculos inversores e das cartas de baralho anômalas, Kuhn acrescenta:

 

A revisão da rica literatura experimental da qual esses exemplos foram tirados nos faz suspeitar que algo parecido com um paradigma é pré-requisito para a própria percepção. O que um homem vê depende tanto daquilo para que olha como daquilo que sua experiência visual-perceptual prévia o ensinou a ver. (p. 113)

 

Ainda comentando os tais experimentos psicológicos, Kuhn continua:

 

O sujeito de um experimento de cartas anômalas sabe [...] que sua percepção há de ter mudado, porque uma autoridade externa, o experimentador, assegura-lhe que independentemente do que ele viu, estava o tempo todo olhando para um cinco de copas preto. [...] A menos que haja um padrão externo com respeito ao qual uma comutação de visão possa ser demonstrada, nenhuma conclusão sobre possibilidades perceptuais alternativas poderia ser extraída.

Com a observação científica, porém, a situação é exatamente oposta. O cientista não pode ter outro recurso além ou acima do que ele vê com seus olhos e instrumentos. [...] Nas ciências, portanto, se comutações perceptuais acompanham as mudanças de paradigma, não podemos esperar que os cientistas atestem tais comutações diretamente. (pp. 114-5)

 

Kuhn passa então a fornecer vários exemplos de mudança perceptual que teriam ocorrido na astronomia: olhando para a Lua, antes via-se um planeta, depois um satélite; olhando-se para um certo ponto luminoso nos céus, antes via-se uma estrela, depois um cometa, e por fim o planeta Urano; etc. Como já mencionamos, Kuhn rejeita explicitamente a explicação interpretativa destes casos, segundo a qual se diz, por exemplo, que via-se a Lua como um planeta e depois como um satélite.

Nisso consiste, pois, a tese da mudança dos dados, sobre a qual Kuhn continuará insistindo até o final do livro. Um pouco mais adiante nesta mesma Seção 10, por exemplo, Kuhn considerará extensamente o famoso caso do pêndulo: “Até que aquele paradigma escolástico [a teoria do impetus] fosse inventado, não havia pêndulos para os cientistas verem, mas apenas pedras balançantes.” (p. 120)

Feita essa extensão do conceito de percepção para englobar boa parte do conceito de interpretação, Kuhn parece defender, ainda nessa mesma seção, uma radical extensão do conceito de percepção numa segunda direção: este conceito se aplicaria não somente aos objetos macroscópicos ordinários, mas também às entidades usualmente tidas como inobserváveis, postuladas pelas diferentes teorias científicas, como elétrons, campos magnéticos, vírus, etc. Nesse sentido ampliado, Kuhn fala então, por exemplo, que “Lavoisier viu oxigênio onde Pristley tinha visto ar desflogistizado e onde outros não tinham visto absolutamente nada” (p. 118); que onde “Bertholet via um composto [químico] [...] Proust via apenas uma mistura física” (p. 132); e até mesmo que “ao contemplar uma pedra que cai, Aristóteles via uma mudança de estado ao invés de um processo” (p. 124).

 

(iii) A terceira razão para a incomensurabilidade dos paradigmas é introduzida por Kuhn quando ele discute a tese da inclusão lógica das teorias (ver nota 11, acima). Trata-se da mudança dos significados dos termos em que uma teoria se expressa. Isso impede que a teoria antiga seja deduzida como um caso especial da nova teoria.

Conforme já observamos, Kuhn rejeita a doutrina positivista do significado dos termos teóricos. Sua proposta, apresentada brevemente acima, importa em uma concepção holista do significado, segundo a qual os significados dos termos teóricos de uma teoria dependem da totalidade de suas conexões com os demais termos. Assim, se em um novo paradigma um determinado conceito comparece em leis e relações diferentes, o seu significado será ipso facto alterado. Vejamos estas assertivas típicas de Kuhn a páginas 149 e 150:

 

Algo mais do que a incomensurabilidade de padrões é, no entanto, envolvido [nas mudanças de paradigma]. Como os novos paradigmas nascem dos velhos, eles ordinariamente incorporam muito do vocabulário e aparelhos conceptuais e manipulativos que o paradigma tradicional havia anteriormente empregado. Mas eles raramente empregam da maneira tradicional esses elementos emprestados. Dentro do novo paradigma os velhos termos, conceitos e experimentos caem sob novas relações uns com os outros. O resultado inevitável é aquilo que temos de denominar – embora o termo não seja muito correto – um desentendimento [misunderstanding] entre as duas escolas em competição. Os leigos que mofaram da teoria da relatividade geral de Einstein porque o espaço não podia ser “curvo” [...] não estavam simplesmente errados, como também não estavam os matemáticos, físicos e filósofos que tentaram desenvolver uma versão euclidiana da teoria de Einstein. O que anteriormente se havia significado por ‘espaço’ era necessariamente plano, homogêneo, isotrópico e não afetado pela presença da matéria. [...] Para efetuar a transição para o universo de Einstein, a rede conceitual completa [whole conceptual web], cujos fios são espaço, tempo, matéria, força, etc., teve que ser deslocada, e ajustada de novo ao todo da Natureza. Somente os homens que juntos fizeram ou deixaram de fazer essa transformação estariam aptos a descobrir precisamente aquilo sobre o que concordavam ou discordavam. Considere, como um outro exemplo, os homens que chamavam Copérnico de louco porque ele afirmava que a Terra se movia. Parte do que eles significavam por ‘Terra’ era ‘posição fixa’. A sua Terra, pelo menos, não podia ser movida. Correspondentemente, a inovação de Copérnico não foi simplesmente mover a Terra. Ao invés, foi toda uma maneira nova de considerar os problemas da física e da astronomia, que necessariamente mudou o significado de ambos ‘Terra’ e ‘movimento’. Sem tais mudanças o conceito de uma Terra móvel era loucura.

 

Este último exemplo traz à luz um aspecto importante: De forma consentânea com sua rejeição da distinção positivista entre termos teóricos e observacionais (ver pp. 126 et seqs.), Kuhn estende a doutrina holista do significado aos próprios termos tidos como observacionais (como ‘Terra’, ‘movimento’, etc.). Assim, para ele os significados de todos os termos podem se alterar com a mudança de paradigma. Evidentemente, isto implica a incomensurabilidade radical dos paradigmas.

 

4. Esboço de críticas à incomensurabilidade

 

Indicaremos agora, de modo esquemático, alguns pontos sobre os quais críticas às teses de Kuhn acerca da incomensurabilidade podem ser desenvolvidas.

Iniciaremos pela última razão apontada, ou seja, pela tese da mudança radical dos significados. Parece razoável seguir Kuhn e Quine na rejeição da teoria positivista do significado dos termos teóricos, dada a carga de argumentos que já se produziu contra ela. Também temos que reconhecer que a própria proposta positivista de dividir de maneira objetiva e definitiva os termos não-lógicos da linguagem da ciência em termos teóricos e termos observacionais puros encontrou objeções aparentemente insuperáveis.

No entanto, não está claro que tais concessões nos empurrem para as posições extremas defendidas por Kuhn. Primeiramente, Kuhn não forneceu nenhum argumento para mostrar que a mudança de uma teoria altamente “teórica” – sobre a estrutura do núcleo, ou sobre o mecanismo molecular das mutações genéticas, por exemplo – acarreta alterações substanciais nos significados de termos que designam itens empíricos, como ‘chapa fotográfica’, ‘ponteiro’, ‘clicks por minuto’, ‘círculo’, ‘verde’, ‘ervilha’, etc. Essa é uma omissão grave de Kuhn, pois o holismo radical do significado que invoca contra a comensurabilidade dos paradigmas contraria o bom senso filosófico (como o exemplo que acabamos de dar evidencia), e portanto não poderia ter sido proposto sem maiores justificações, como o foi.

Ademais, mesmo com relação à interdependência de significados entre termos relativamente “próximos” entre si, e distantes do nível empírico, na malha teórica de um paradigma, há pelo menos uma teoria filosófica relativamente bem articulada – a teoria dos law-cluster concepts, desenvolvida por Hilary Putnam – cuja exploração poderia ser usada para atenuar a tese da variação do significado adotada por Kuhn.[14]

Passando agora à idéias de Kuhn acerca da percepção, notamos inicialmente que o próprio Kuhn reconhece que está afrontando um tradicional “paradigma filosófico [...] que serviu bem tanto à ciência como à filosofia”, e para o qual ainda não se “forneceu uma alternativa viável.” (p. 121) “Na ausência de uma alternativa desenvolvida”, diz Kuhn, “ acho impossível abandonar inteiramente esse ponto de vista.” (p. 126) “Estou agudamente consciente”, confessa, “das dificuldades criadas ao se dizer, por exemplo, que quando Aristóteles e Galileo olhavam para pedras balançantes, o primeiro via uma queda dificultada e o segundo um pêndulo. [...] Estou convencido, apesar disso, que temos de aprender a fazer sentido de proposições que pelo menos se pareçam com essas.” (p. 121)

Como no caso da tese da mudança radical dos significados, estamos aqui diante de uma posição filosófica extrema, a favor da qual o próprio autor reconhece não dispor de argumentos cuja força seja proporcional à sua radicalidade. Kuhn não mostrou que experiências perceptuais como a visão de um pêndulo não podem ser analisadas em partes mais elementares. Aliás, o próprio Kuhn não consegue manter consistentemente sua posição ao longo do livro, como é óbvio de sua constante menção à “pedra balançante” para a qual tanto os aristotélicos como os cientistas modernos olhariam. Sua afirmação, citada acima, de que a situação na ciência é “exatamente oposta” (p. 114) à do experimento de cartas anômalas e das figuras de gestalt, porque em um caso haveria “padrões externos” e no outro não, é claramente arbitrária. E o realismo metafísico que subjaz à afirmação de que no caso das figuras de gestalt a pessoa sabe que “nada mudou” no mundo porque ela “segura o mesmo pedaço de papel nas mãos” (p. 114) é, em diversas passagens, estendido ao mundo que o cientista investiga.[15]

A posição kuhniana sobre as percepções atinge a implausibilidade máxima quando Kuhn a aplica à “visão” do oxigênio, do condensador, dos compostos químicos e mesmo dos átomos e elétrons. No final de suas críticas à tentativa do estabelecimento de uma linguagem observacional pura, Kuhn acrescenta:

 

Sob tais circunstâncias, podemos ao menos suspeitar que os cientistas estão certos, tanto em princípio como na prática, quando tratam oxigênio e pêndulos (e talvez átomos e elétrons também) como os ingredientes fundamentais de sua experiência imediata. [...] Isto [...] é sugerir que o cientista que olha para uma pedra balançante não pode ter nenhuma experiência que seja em princípio mais elementar do que a visão de um pêndulo. (pp. 127-8)

 

Deixando para o nosso leitor a avaliação final de semelhantes afirmações,[16] passemos, para concluir, à primeira razão para a incomensurabilidade apontada por Kuhn, ou seja, a que acima denominamos de tese da mudança do referencial.

A inexistência de um corpo mínimo de premissas comuns sobre as quais argumentos a favor e contra os paradigmas em debate poderiam se apoiar está em oposição aparente com várias afirmações do próprio Kuhn, que já citamos anteriormente na Seção 3: os cientistas partilham, como valores, o objetivo de explicar a Natureza e resolver problemas, a abrangência, coerência interna e precisão quantitativa das teorias, sua capacidade de antecipar fatos; além disso, há um “sobreposição ampla” entre os problemas que podem ser resolvidos pelos paradigmas sucessivos; os paradigmas “preservam muito das partes mais concretas das realizações passadas”. Essas últimas asserções fazem pouco sentido se não se assumir que há fatos empíricos comuns a diferentes paradigmas. Dado que estas afirmações de Kuhn são claramente mais conformes ao senso comum, à tradição filosófica e à observação do desenvolvimento histórico da ciência do que as afirmações anteriores, a favor da incomensurabilidade, parece legítimo e natural aceitá-las, e então usá-las para criticar aquelas.

Notemos, por fim, que ainda que rejeitemos a tese da incomensurabilidade forte, a análise da ciência empreendida por Kuhn contém elementos originais e importantes, que podem ser mantidos independentemente. Esses elementos, mencionados brevemente na Seção 2 destas notas, indubitavelmente devem ser levados em consideração em qualquer esforço ulterior de compreensão da natureza da ciência.[17]

 

5. Referências

 

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MASTERMAN, M. (1970). The nature of a paradigm. In: Lakatos & Musgrave 1970, pp. 59-89.

NEWTON-SMITH, W. H. (1981). The Rationality of Science. London and New York, Routledge and Kegan Paul.

Oberheim, Eric and Hoyningen-Huene, Paul, “The Incommensurability of Scientific Theories”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/incommensurability/ .

PEARCE WILLIAMS, L. (1970). Normal science, scientific revolutions and the history of science. In: Lakatos & Musgrave 1970, pp. 49-50.

POPPER, K. R. (1970). Normal science and its dangers. In: Lakatos & Musgrave 1970, pp. 51-8.

PUTNAM, H. (1975). Mind, Language and Reality. (Philosophical Papers, vol. 2.) Cambridge, Cambridge University Press.

SUPPE, F. (1977). (ed.) The Structure of Scientific Theories. 2nd. ed. Urbana, Chicago and London, University of Illinois Press.

TOULMIN, S. (1970). Does the distinction between normal and revolutionary science hold water? In: Lakatos & Musgrave, 1970, pp. 39-47.

WATKINS, J. W. N. (1970). Against ‘normal science’. In Lakatos & Musgrave 1970, pp. 25-37.

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Ó S. S. Chibeni



[1] Para um texto recente e acessível sobre Thomas Kuhn, ver, por exemplo, Bird 2018.

[2] Kuhn 1970a, Seção 2, especialmente pp. 13, 19 e 22. Daqui em diante, salvo indicação em contrário, todas as referências de páginas se referirão a essa obra, ou seja, à segunda edição de The Structure of Scientific Theories; exceto pelo acréscimo do Posfácio, o texto corresponde ao da primeira edição, com alterações mínimas. Mais tarde Kuhn dirá que a transição para a fase científica só se dá com a aquisição de um tipo especial de paradigma; ver Kuhn 1970a, Posfácio, pp. 178-9. Sobre o critério de demarcação kuhniano, e sua comparação ao de Popper, ver Kuhn 1970b, Seção 1.

[3] Ver Kuhn 1970a, Posfácio, pp. 181-2; Kuhn 1977, passim; Masterman 1970.

[4] Em textos posteriores (Kuhn 1970a, Posfácio, pp. 174-5; 1977, Seção II) Kuhn irá distinguir o sentido amplo do termo ‘paradigma’, tal qual acabamos de descrever, e ao qual denomina matriz disciplinar, de um sentido mais restrito, e, segundo ele, filosoficamente mais profundo: “as soluções de quebra-cabeças concretas que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como uma base para a solução dos quebra-cabeças restantes da ciência normal” (1970a, p 175); a estes Kuhn denomina exemplares. Abaixo, continuaremos usando o termo geral ‘paradigma’, a não ser quando uma maior precisão se fizer necessária.

[5] Alguns críticos (e.g. Pearce Williams 1970 e Toulmin 1970) negam ou põem em dúvida a existência da ciência normal descrita por Kuhn. Outros (e.g. Popper 1970, Watkins 1970 e Feyerabend 1970) admitem-na, mas por motivos variados consideram a ciência normal nociva à ciência.

[6] Kuhn nota, porém, que esse tipo de obra introduz graves distorções na visão do desenvolvimento histórico da ciência, tornando “invisíveis” as revoluções científicas.

[7] Além disso, a própria distinção entre termos teóricos e observacionais é rejeitada por Kuhn.

[8] Isto é tornado explícito apenas em Kuhn 1977, Seções 4, 5 e 6.

[9] Ver e.g. 1970a, Posfácio, Subseção 6, p. 206; 1970c, Seção 5, pp. 264-5.

[10] Ver e.g. 1970c, Seção 5; 1970a, Posfácio, Subseção 5.

[11] P. 92. Mais abaixo consideraremos com alguma extensão a razão filosófica principal pela qual Kuhn rejeita a tese da “inclusão lógica” das teorias sucessivas. Fornece, também, razões históricas e metodológicas. Embora admita que a tese é logicamente possível, observa que não corresponde ao que de fato ocorreu no desenvolvimento da ciência. E diz que há motivos para isto. Primeiro, o único motivo para a introdução de novas teorias é o desejo de dar conta de anomalias de uma teoria anterior; e neste caso é evidente que deve existir um conflito entre a velha e a nova teoria. Depois, se a tese da inclusão lógica das teorias for defendida pela usual restrição das teorias a um certo domínio de fenômenos – aqueles para os quais a teoria fornece previsões corretas –, torna-se qualquer teoria já aplicada com sucesso a algum grupo de fenômenos imune a ataques; ademais, o cientista estaria, neste caso, impedido de falar cientificamente de fenômenos ainda não observados, o que representaria o fim do avanço da ciência.

[12] Na penúltima seção do livro, por exemplo, encontramos esta afirmação forte: “Ordinariamente, é apenas muito mais tarde, após o novo paradigma haver sido desenvolvido, aceito, e explorado que argumentos aparentemente decisivos [...] são desenvolvidos.” (P. 156; o grifo é nosso.)

[13] “Já vimos várias razões pelas quais os proponentes de paradigmas em competição hão de fracassar no estabelecimento de um contato completo com o ponto de vista uns dos outros. Coletivamente, essas razões foram descritas como a incomensurabilidade das tradições de ciência normal pré e pós-paradigmáticas.” (p. 148) Uma análise acessível do conceito de incomensurabilidade pode ser encontrada em Oberheim & Hoyningen-Huene, 2018.

[14] O texto mais antigo de Putnam que trata desse assunto, “The analytic and the synthetic”, foi publicado no mesmo ano que o livro de Kuhn, no volume III dos Minnesota Studies in the Philosophy of Science. (Reimpresso em Putnam 1975, pp. 33-69.) É interessante notar que Putnam diz que a idéia dos law-cluster concepts lhe foi sugerida pelas Philosophical Investigations de Wittgenstein, e que Kuhn também declara que esta obra também teve uma influência no desenvolvimento de suas concepções acerca do significado. Para uma defesa interessante da idéia de evadir à incomensurabilidade através da rejeição da doutrina do significado adotada por Kuhn, ver Newton-Smith 1981.

[15] Na página 122, por exemplo, Kuhn afirma, a respeito do cientista que mudou de paradigma: “Confrontando a mesma constelação de objetos como antes, e sabendo que o faz [...]” Na página 150, Kuhn diz, sobre os cientistas de diferentes paradigmas: “Ambos estão olhando para o mundo, e aquilo para que olham não mudou.”

[16] Na Subseção 4 do Posfácio, Kuhn recua parcialmente, explicando que essas afirmações devem, nos casos extremos, ser entendidas metaforicamente: “De modo algum vemos correntes elétricas, mas apenas a agulha de um amperímetro ou galvanômetro. Porém, nas páginas que precedem, particularmente na Seção 10, repetidamente agi como se de fato percebêssemos entidades teóricas como correntes, elétrons e campos, como se aprendêssemos a fazê-lo a partir do exame de exemplares, e como se também nesses casos fosse errado substituir a fala de visão pela fala de critérios e interpretações. A metáfora que transfere ‘ver’ para contextos como esses dificilmente constitui base suficiente para aquelas afirmações. A longo prazo, elas precisarão ser eliminadas em favor de um modo de discurso mais literal.” (pp. 196-7) No entanto, as objeções que esboçamos acima continuam em boa parte se aplicando, pois Kuhn continuará sempre insistindo em que nos casos menos extremos “o que foi dito sobre sensação é para ser entendido literalmente” (p. 196), e que “o que a percepção deixa para a interpretação depende drasticamente da natureza e quantidade da experiência e treinamento prévios.” (P. 198, grifo nosso.) Em seu 1970c, Kuhn volta à carga: “Essas relações de semelhança-dessemelhança aprendidas ... são anteriores ... a uma lista de critérios ... que nos possibilitem definir nossos termos. ... Até que as tenhamos aprendido, de modo algum vemos um mundo.” (p. 274) Um pouco mais abaixo, em um contexto em que discutia uma quebra de comunicação (communication breakdown) envolvendo ‘elementos químicos’, ‘planetas’ e ‘pêndulos’, Kuhn afirma: “Não podemos dizer com segurança nem mesmo que os dois homens vêem a mesma coisa, possuem os mesmos dados, mas os interpretam de modo diferente.” (p. 276)

[17] Pode-se talvez argumentar que é precisamente isto o que Imre Lakatos procurou fazer.