Introdução à filosofia da ciência

Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni

Departamento de Filosofia, Unicamp

www.unicamp.br/~chibeni

 

 

Tópico 3. A fundamentação das teorias científicas

 

3.1. Teorias fenomenológicas e teorias explicativas

3.2. A avaliação das teorias fenomenológicas

3.3. A avaliação das teorias explicativas

3.4. Sites e livros recomendados

 

3.1. Teorias fenomenológicas e teorias explicativas

Neste tópico estudaremos com mais detalhes um assunto mencionado de passagem no tópico anterior, a avaliação das teorias científicas. É conveniente, para tanto, dividir as teorias científicas em duas grandes classes, 1) teorias fenomenológicas e 2) teorias explicativas.

1) Teorias fenomenológicas. São as teorias cujas proposições se referem exclusivamente a propriedades e relações empiricamente acessíveis entre os fenômenos. Na física, exemplos importantes de teorias fenomenológicas são a termodinâmica, a óptica geométrica e a teoria da relatividade especial. Embora as teorias fenomenológicas contribuam para a consecução do primeiro dos dois objetivos centrais da ciência – predizer fenômenos –, falham inteiramente quanto ao segundo, que é explicar esses fenômenos, entendendo-se por explicação a identificação dos mecanismos causais subjacentes aos fenômenos.

2) Teorias explicativas. Em contraste com as teorias fenomenológicas, tais teorias introduzem hipóteses sobre a existência de objetos e processos inacessíveis à observação direta, que seriam as causas dos fenômenos. Por esse meio, tais teorias procuram explicar a ocorrência dos fenômenos. A grande maioria das teorias científicas modernas são explicativas, nesse sentido. Na física, poderíamos citar os exemplos da mecânica estatística, do eletromagnetismo, da mecânica quântica, entre tantos outros.

Veremos agora como as teorias de cada um desses tipos podem ser avaliadas.

 

3.2. A avaliação das teorias fenomenológicas

Por envolver leis puramente empíricas, as teorias fenomenológicas podem ser avaliadas de forma mais ou menos direta, pela observação cuidadosa e controlada das correlações entre fenômenos. Para que a teoria seja aceita, essa observação não pode contrariar nenhuma de suas leis.

Além disso, quando uma teoria proposta cumpre essa condição básica, precisa ainda satisfazer  outros requisitos, como abranger em seu escopo todos os principais fenômenos relevantes de sua área, formular suas leis da maneira mais simples possível, exibir concatenação teórica (de forma que as leis se ajustem e apóiem umas às outras), etc.

Mas mesmo em condições ideais de satisfação de todas essas exigências uma teoria nunca deve ser considerada como estritamente provada pelos fenômenos, da mesma forma em que, na matemática, podem-se provar teoremas a partir de conjuntos de proposições básicas. A razão principal para isso, no caso das teorias fenomenológicas, é que qualquer teoria envolve generalizações. As proposições que registram fenômenos são sempre particulares, enquanto que as leis da teoria são proposições gerais (i.e. referem-se a um número em princípio infinito de fenômenos). Tais proposições gerais nunca são absolutamente seguras, pois não há como garantir que cedo ou tarde não se observará um fenômeno que viole as regularidades que elas expressam.

Essa é uma importante conclusão epistemológica. Mas em muitos casos a dúvida sobre a generalização pode, para fins práticos, ser desprezada. Efetivamente, as boas teorias fenomenológicas têm exibido uma notável estabilidade ao longo da evolução da ciência. Veja-se, por exemplo, o caso da termodinâmica. Na primeira metade do século XIX, principalmente pelos esforços de R. J. Mayer, J. P. Joule, S. Carnot, R. Clausius e do Lorde Kelvin, a termodinâmica alcançou desenvolvimento pleno, constituindo desde então a teoria fenomenológica básica dos fenômenos térmicos. Ela atravessou incólume as transformações sofridas pela física nas primeiras décadas do século XX, que alteraram de modo radical as teorias acerca da estrutura da matéria (que são teorias de tipo explicativo). Foi exatamente por ser do tipo fenomenológico que a termodinâmica não teve que ser reformulada quando essas teorias mudaram.

 

3.3. A avaliação das teorias explicativas

Os critérios de avaliação usados para as teorias fenomenológicas precisam ser adaptados e complementados para que se apliquem às teorias explicativas, dado que elas envolvem leis de outro tipo, de mais difícil acesso cognitivo, envolvendo hipóteses sobre causas inobserváveis.

Tais hipóteses são criadas livremente pela inventividade dos cientistas. Embora possam ser sugeridas pelos fenômenos, não decorrem deles de maneira lógica. Tanto assim que, dada uma classe de fenômenos a serem explicados, frequentemente são propostas diversas hipóteses ou teorias explicativas incompatíveis entre si. Cabe pois aos cientistas escolher entre elas.

Nessa escolha, o requisito da adequação empírica, usado na avaliação das teorias fenomenológicas, deve ser mantido como fundamental: ou seja, todas as implicações experimentais da teoria têm de ser verificadas na realidade.

Como o arcabouço teórico de uma teoria explicativa é, tipicamente, bastante complexo, a extração de predições experimentais é um processo gradual e difícil, que frequentemente leva a surpresas, algumas boas, outras ruins, para a sorte da teoria. Isso torna as teorias explicativas muito mais vulneráveis a refutações do que as teorias fenomenológicas.

Quando teorias explicativas diferentes e igualmente adequadas quanto a suas implicações empíricas se apresentam para um mesmo conjunto de fenômenos, a escolha teórica torna-se complexa. Critérios adicionais semelhantes aos apontados no caso das teorias fenomenológicas assumem crucial importância. Aqui estão alguns que têm sido efetivamente usados ao longo da história da ciência:

·       Abrangência: número e diversidade de fenômenos explicados;

·       Capacidade de levar a predições de fenômenos de tipos novos, favorecendo o avanço do próprio conhecimento experimental (ao invés de a teoria vir a reboque dele);

·       Consistência: compatibilidade lógica entre os princípios da teoria;

·       Coerência: conexão e suporte mútuo entre os princípios da teoria;

·       Precisão;

·       Simplicidade.

·       Compatibilidade com teorias bem estabelecidas em domínios conexos de fenômenos;

A caracterização precisa, relevância e peso relativo de cada um desses critérios têm sido objeto de muita discussão entre filósofos da ciência e cientistas. Duas coisas, porém, parecem certas:

Primeiro, embora cada um deles seja individualmente insuficiente, em seu conjunto têm efetivamente permitido uma avaliação bastante razoável das teorias propostas ao longo do tempo, principalmente nos ramos mais maduros da ciência, como a física.

Depois, mesmo as teorias que satisfaçam exemplarmente todos esses critérios não devem nunca ser consideradas como verdades definitivas. Essa conclusão é a mesma que a que encontramos no caso das teorias fenomenológicas. Mas no presente caso ela decorre não apenas da dúvida sobre as generalizações da teoria, mas também da presença nela de hipóteses cuja verdade não pode se estabelecida por nenhum meio direto.

O estudo da história da ciência reforça as análises epistemológicas que levam a essa conclusão, de que o conhecimento científico enfeixado em teorias explicativas nunca é absolutamente seguro, estabelecido de uma vez por todas. Veja-se, por exemplo, o caso da mecânica newtoniana, que por mais de dois séculos exibiu notável adequação empírica, cobrindo uma variedade impressionante de fenômenos de forma cada vez mais precisa, levou a inúmeras predições novas, etc., e que, mesmo assim, acabou tendo de ser substituída pelas mecânicas relativista e quântica, nas primeiras décadas do século XX.

Mas a constatação de que o conhecimento científico de tipo teórico não é infalível não deve levar à desqualificação da ciência, igualando-a a formas menos sistemáticas e cuidadosas de obtenção de conhecimento.

A ciência oferece garantias bastante razoáveis, que permitem que, em cada momento da história da ciência, o conhecimento científico se apresente como entre os melhores (ou o melhor) de que dispomos para nos guiar tanto na predição como na explicação dos fenômenos naturais.

O que caracteriza o conhecimento científico não é sua infalibilidade, mas o cuidado permanente que há (ou deve haver), na ciência, em explorar ao máximo as implicações empíricas das teorias, em busca quer de confirmação, quer de refutação; e, quanto às teorias até o momento não refutadas, a disposição permanente de formular e considerar seriamente alternativas teóricas que se mostrem melhores, no que respeita aos requisitos teóricos complementares enumerados acima.

 

3.4. Sites e livros recomendados:

Notas de aula “Tipos de teorias: construtivas e fenomenológicas”, Prof. Silvio S. Chibeni, http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/textosdidaticos.htm

Hempel, C. G. Filosofia das Ciências Naturais. Trad. P. S. Rocha. Rio, Zahar, 1974. (The Philosophy of Natural Science. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1966.)

Notas de aula sobre os capítulos 3 e 4 (sobre teste de hipóteses) de Philosophy of Natural Science, de Carl Hempel. Prof. Silvio S. Chibeni. http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/hempel-3e4-notas.htm