locke e o problema da indução[1]

 

Silvio Seno Chibeni

 

Departamento de Filosofia - IFCH

Universidade Estadual de Campinas

13081-970 - Campinas - SP - Brasil

chibeni@obelix.unicamp.br

 

 

Resumo

Neste artigo procura-se mostrar que Locke percebeu e expôs claramente o problema da indução. Inicialmente, os conceitos e teses mais relevantes da teoria epistemológica empirista de Locke são brevemente revistos. Depois, a questão do estatuto epistemológico das proposições universais nessa teoria é abordada, expondo-se cuidadosamente as razões para o virtual bloqueio do conhecimento universal acerca das substâncias que se poderia obter pela via da análise das idéias. Por fim, o papel da experiência como fornecedora direta de conhecimento é examinado, mostrando-se que, para Locke, ela só alcança os casos já observados.

 

1. Introdução

Para o homem comum e o filósofo empirista, nosso conhecimento acerca do mundo exterior provém da experiência. Em geral, o primeiro também assume que, em determinadas circunstâncias, esse conhecimento pode ser estendido para fatos não observados. Assim, mesmo proposições gerais sobre o mundo poderiam ser conhecidas. Um caso importante é o das leis científicas, que, nessa visão ordinária, expressariam um conhecimento particularmente seguro obtido por generalização a partir de fatos experimentais.

Constitui opinião corrente entre os filósofos que a extensão do conhecimento empírico direto, no processo de inferência denominado indução, recebeu sua primeira crítica profunda no século 18, com David Hume. Esse filósofo teria mostrado, para muitos de forma conclusiva, que as inferências indutivas não podem ter sua validade estabelecida nem pela razão nem pela experiência, apoiando-se em um mero hábito, adquirido da observação da conjunção constante de certos fenômenos.[2]

Neste artigo pretendemos indicar que, antes de Hume, John Locke percebeu, e expôs claramente em seu Essay Concerning Human Understanding, a existência do problema da indução, ou melhor, de um problema da indução, já que as dificuldades envolvendo o conhecimento das proposições universais sobre o mundo assumem contornos próprios em cada sistema epistemológico. O principal objetivo de Locke no Essay é o de determinar os limites do conhecimento, e tais proposições ocupam um lugar de destaque nessa investigação, pois “as verdades gerais são as mais procuradas pela mente, como sendo aquelas que mais ampliam o nosso conhecimento.” (IV v 10) [3]

Embora usualmente se reconheça que Locke lançou as bases do empirismo moderno, sua obra é pouco estudada e, freqüentemente, mal compreendida. A importância de suas contribuições para a epistemologia não tem, conseqüentemente, sido adequadamente reconhecida. A ausência do nome de Locke na volumosa literatura sobre a indução é apenas um dos exemplos dessa falha.[4]

 

2. Idéias e conhecimento

No livro I do Essay, Locke apresenta uma argumentação cerrada contra a doutrina do conhecimento inato. Sua teoria positiva sobre as origens e a extensão do conhecimento é desenvolvida a partir do livro II. Locke começa defendendo que todas as nossas idéias, i.e., “o que quer que constitua o objeto do entendimento quando um homem pensa” (I i 8), provêm, em última instância, da experiência, em suas modalidades de sensação e reflexão.[5] Sendo as idéias o “material” do conhecimento, Locke acredita estabelecer assim que todo o conhecimento provém, em última instância, da experiência.

Locke traça a distinção entre idéias simples e complexas. As primeiras são aquelas que representam “uma aparência, ou concepção, uniforme na mente, e não [são] analisáveis em idéias diferentes. A mente não as pode criar ou destruir” (II ii 1 e 2). A partir das idéias simples, o entendimento pode livremente fazer novas idéias, as idéias complexas (II ii 2). Estas são formadas por combinação, comparação e abstração (II xii 1), podendo ser idéias de modos, de substâncias e de relações (II xii 3). As idéias de modos “são as idéias complexas tais que, não importa como sejam compostas, não contêm em si a suposição de subsistirem por si próprias, mas são consideradas como dependências, ou afecções de substâncias. Tais são as idéias significadas pelas palavras triângulo, gratidão, assassinato, etc.” (II xii 4). As idéias de substâncias “são as combinações de idéias simples formadas para representar coisas particulares distintas que subsistem por si mesmas, nas quais a idéia imaginada [supposed] ou confusa de substância [...] é sempre a primeira e a principal” (II xii 6; ver também II xxiii 1). As idéias de mesa, água, homem, Deus, alma são exemplos de idéias de substâncias. Finalmente, as idéias de relações “consistem na consideração e comparação de uma idéia com outra” (II xii 7). Assim, temos as idéias de causa e efeito, igualdade, proporcionalidade, das relações de espaço e de tempo, etc.[6]

As idéias de modos e de relações não causam problemas significativos para Locke, à parte a grande variabilidade de seus múltiplos e intricados esquemas de classificação, ao longo das edições do Essay, e mesmo nas diferentes partes de uma mesma edição. Já as idéias de substâncias envolvem dificuldades, segundo Locke. Ao mesmo tempo em que ele reconhece que não temos qualquer idéia clara e distinta de substância em geral, não consegue desvencilhar-se completamente dessa noção metafísica. Ao longo do livro, fica evidente que Locke necessita da idéia de substância, apesar de obscura, para manter sua posição realista metafísica.Vejamos alguns trechos do capítulo xxiii do livro II, que trata especialmente dessa idéia (parágrafos 2 e 3):

De modo que se alguém se examinar acerca da noção que possui de substância em geral, descobrirá que não tem outra idéia dela, senão a suposição de um não-sei-o-que que suporta as qualidades capazes de produzir idéias simples em nós, comumente chamadas acidentes. [...]

Uma idéia obscura e relativa de substância em geral sendo assim formada, vimos a ter idéias dos tipos particulares de substâncias, por meio da coleção das combinações de idéias simples que são, pela experiência e observação dos sentidos dos homens, observadas coexistir juntas, e portanto supostas fluir da constituição interna particular, ou essência desconhecida daquela substância. Desse modo, vimos a ter as idéias de um homem, de um cavalo, do ouro, da água, etc. Apelo à experiência própria de cada um para ver se alguém possui qualquer idéia clara de tais substâncias, além das de certas idéias simples coexistindo juntas.

Para o estudo que faremos na seção seguinte do estatuto epistemológico das proposições universais na filosofia de Locke, é importante ver brevemente como ele entendia as idéias gerais, ou abstratas. Embora esse assunto delicado seja tratado em diversos lugares no Essay, para os nossos propósitos basta notar o que se encontra em III iii 6:

Palavras tornam-se gerais quando são tomadas como signos de idéias gerais; e idéias tornam-se gerais quando separamos delas as circunstâncias de tempo e lugar, bem como quaisquer outras idéias que possam determiná-las para esta ou aquela existência particular. Por essa via de abstração tornam-se capazes de representar mais do que um indivíduo.

O nominalismo que transparece nesse trecho é enfatizado logo em seguida. No parágrafo 11, por exemplo, Locke afirma que “o geral e o universal não pertencem à existência real das coisas, mas são invenções e criações do entendimento, feitas por ele para seu próprio uso, e dizem respeito apenas a signos, quer palavras, quer idéias.” (Ver também IV xvii 8.)

Ainda nesse mesmo capítulo iii, Locke introduz a distinção entre essência real e essência nominal,[7] importante, entre outras coisas, para a determinação da extensão do conhecimento das proposições universais sobre substâncias, conforme veremos mais adiante. A noção de essência real corresponde à noção tradicional de essência, tal qual considerada até Locke, ou seja, “o ser de qualquer coisa pelo qual ela é o que é” (15). Por essência nominal Locke entende uma idéia abstrata referida por um termo geral (III iii 15; IV iv 17, vi 4), “a medida e fronteira de cada tipo ou espécie, pela qual um tipo particular é constituído, e distinguido dos outros, [...] que não é nada além da idéia abstrata à qual o nome [do tipo] é anexado, de modo que tudo contido nessa idéia é essencial para o tipo” (III vi 2). As essências nominais são, pois, criações da mente.

No caso de idéias simples e de modos, as essências reais e nominais coincidem (III iii 18). Já no caso das substâncias, as essências nominais não coincidem com as reais (III iii 18; vi 2, 3, 6 e 9), embora o desideratum da mente ao criá-las seja o de “copiar a Natureza” tão fielmente quanto possível (III vi 19 a 32). Uma cópia completa e perfeita é, porém, inatingível, já que isso exigiria o conhecimento das essências reais, ou seja, das constituições reais das coisas, que são o fundamento de todas as propriedades que se combinam para formar sua essência nominal (III vi 6). Mas as essências reais das substâncias nos são completamente desconhecidas (ver e.g. III iii 17; vi 6, 9 e 19; IV vi 4, 5 e 8).

Passemos, finalmente, ao livro IV do Essay, intitulado “Conhecimento e Opinião”. Notemos preliminarmente que, para Locke, assim como para todos os filósofos modernos, a certeza é condição necessária para o conhecimento.[8] Logo no segundo parágrafo do primeiro capítulo desse livro encontramos a seguinte definição de conhecimento:

Conhecimento parece-me não ser senão a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e repugnância de quaisquer de nossas idéias. Ele consiste somente nisso. Onde há essa percepção, aí existe conhecimento; e onde não há, embora possamos imaginar [fancy], supor [guess] ou crer, ficaremos sempre aquém do conhecimento.[9]

Se Locke se tivesse atido de modo estrito a essa definição de conhecimento, ele o teria restringido à esfera das idéias. Essa posição idealista incomoda-o, no entanto. Assim, amplia logo em seguida a sua definição (i 3 e 7), para incluir aquilo que chama de “conhecimento de existência real”, que se limita à existência do eu, de Deus e das coisas materiais atualmente presentes aos sentidos. Curiosamente, Locke  procura situar esse tipo de conhecimento ao lado do anterior, quando é patente que, ao contrário daquele, não consiste na percepção de qualquer relação entre idéias.

Desse modo, Locke propõe que há quatro tipos de acordo ou desacordo entre idéias: 1) identidade e diversidade; 2) relação; 3) coexistência, ou conexão necessária; e 4) existência real (ver i 3). No primeiro, “a mente percebe de modo claro e infalível que cada idéia concorda consigo mesma, que ela é o que é, e que todas as idéias distintas discordam, i.e., que uma não é a outra. E isso faz [...] à primeira vista, por seu poder natural de percepção e distinção” (i 4). Exemplos dados por Locke: ‘Branco não é vermelho’, ‘Redondo não é quadrado’. O segundo consiste na “percepção da relação entre duas idéias quaisquer, de qualquer tipo, seja de substâncias, de modos ou qualquer outro” (i 5). Na verdade, Locke reconhece logo abaixo (i 7) que esse tipo de acordo ou desacordo entre idéias de fato inclui o primeiro e o terceiro, e diz que os separou explicitamente porque são particularmente importantes. O terceiro tipo de acordo ou desacordo ¾ coexistência, ou conexão necessária ¾ “pertence particularmente a substâncias” (i 6): a ligação de uma idéia à idéia de uma determinada substância. A natureza dessa ligação não é inicialmente clara, o que se reflete no próprio modo ambíguo  pelo qual Locke a denomina: ‘conexão necessária’ sugere que se trata de uma ligação a priori entre as idéias, enquanto que ‘coexistência’ não carrega essa conotação. (A expressão ‘coexistência necessária’ também aparece umas poucas vezes ao longo do livro.) O exemplo favorito de Locke de (putativo) conhecimento de coexistência é a proposição ‘O ouro é fixo’ [i.e. não se consome no fogo] (i 6), ao qual retornaremos mais adiante.

 

3. Conhecimento de proposições universais.

Passemos agora ao caso específico do conhecimento das proposições universais. Como vimos, excetuando-se o problemático conhecimento de existência real, conhecimento é, para Locke, a percepção do acordo ou desacordo de idéias. Ele será universal se e somente se as idéias forem abstratas. “Pois aquilo que for conhecido acerca de tais idéias gerais será verdadeiro com relação a toda coisa particular na qual aquela essência, i.e. idéia abstrata, for encontrada. [...] De modo que todo conhecimento geral terá de ser procurado e encontrado apenas em nossas próprias mentes.” (iii 31;  ver também  vi 13  e  xii 7.)

Além disso, no capítulo vi, que trata das proposições universais, sua verdade e certeza, Locke assevera, já no parágrafo 4, que “não podemos estar certos da verdade de nenhuma proposição geral, a menos que conheçamos os limites e a extensão precisos das espécies designadas por seus termos.” Tal conhecimento pressupõe o conhecimento das essências dessas espécies.

No caso das idéias simples e dos modos, em que as essências reais coincidem com as nominais, como já notamos, as espécies podem ser conhecidas de maneira precisa e completa. A verdade das proposições universais a seu respeito poderá então ser claramente determinada, se houver percepção de seu acordo ou desacordo. Enquadram-se nessa categoria as proposições gerais de identidade e diversidade de idéias simples, como por exemplo ‘Tudo que é branco é branco’, ‘Nada que é quadrado é redondo’, bem como as que se baseiam nas demais relações entre idéias, que não as de coexistência. Segundo Locke, estas últimas formam “o campo mais amplo de nosso conhecimento” (iii 18), e incluem, paradigmaticamente, as proposições da matemática. A extensão do conhecimento depende aqui de “nossa capacidade de encontrar idéias intermediárias”(ibid.), que possam tornar percebida a relação das idéias em questão.

Dificuldades aparecem, no entanto, quando consideramos as idéias de substâncias, “onde uma essência real distinta da nominal é suposta constituir, determinar e limitar as espécies” (vi 4). Nenhuma proposição universal sobre uma substância poderá ser conhecida se uma referência à sua essência real for subentendida, “porque não conhecendo essa essência real, não podemos saber o que é, ou não é, daquela espécie e, conseqüentemente, o que pode ou não ser afirmado com certeza a seu respeito.” (vi 4; ver também o parágrafo seguinte.) Em outros termos, como não temos acesso às essências reais das substâncias, nunca poderemos perceber a conexão necessária ou coexistência de uma idéia com uma dada idéia de substância, quando estas se refram às essências reais. Locke conclui: “Os nomes de substâncias, então, sempre que tomados para representar espécies que se supõe constituídas por essências reais [...] não são capazes de trazer certeza ao entendimento” (vi 5; ver também vi 15).

Assim, para obtermos algum conhecimento geral sobre as substâncias temos que nos referir exclusivamente às suas essências nominais, i.e., determinadas coleções de idéias que decidimos (motivados por observações) tomar como constituindo tais essências. Mas surge aqui outra dificuldade não menos séria:

Por outro lado, quando os nomes das substâncias forem usados como devem ser, para [designar] as idéias que os homens têm em suas mentes, não nos servirão para fazer muitas proposições universais de cuja verdade possamos estar certos, embora [neste caso] possuam significação clara e determinada. Não porque nesse seu uso estejamos incertos acerca de que coisas significam, mas porque as idéias complexas que eles designam são combinações de idéias simples tais que não trazem em si nenhuma conexão ou repugnância que possa ser descoberta a não ser com muito poucas outras idéias. (vi 6)

Vejamos agora como Locke fundamenta essa tese de que “a conexão entre a maioria das idéias simples é desconhecida” (iii 10). Há três casos a considerar:

a) Conexões entre idéias de qualidades primárias.[10] Essas são as únicas conexões de idéias simples que Locke considera concebíveis pela mente humana. Mas em todo o Essay só fornece dois exemplos concretos de conexões conhecidas desse tipo: “Na verdade, algumas poucas qualidades primárias têm uma dependência necessária e conexão visível umas com as outras, como forma necessariamente supõe extensão; [e a capacidade de] receber ou comunicar movimento supõe solidez”.[11]

b) Conexões entre idéias de qualidades primárias e secundárias. Sobre estas, Locke não apenas as considera desconhecidas, mas também incognoscíveis e inconcebíveis (ver e.g. iii 12 e vi 14). Mas como na concepção de mundo adotada por Locke todas as qualidades secundárias são supostas decorrer “das qualidades primárias das partes diminutas e imperceptíveis” dos corpos (iii 11; ver também II viii), ele tem que admitir que essas conexões de fato existem, e as atribui “à determinação arbitrária daquele Agente Todo-Sábio que as fez ser tais quais são [...] de um modo totalmente acima da concepção de nossos fracos entendimentos” (iii 28; ver também 29).

c) Conexões entre idéias de qualidades secundárias. Estas são a fortiori desconhecidas, incognoscíveis e inconcebíveis. Há aqui dois obstáculos intransponíveis para o conhecimento: 1) nossa falta de sentidos suficientemente agudos para descobrir as propriedades primárias particulares das partes diminutas de cada tipo de corpo, que são “a raiz de onde brotam” suas qualidades secundárias (iii 11 e 25); e 2) nossa referida incapacidade de descobrir, e mesmo de conceber, as conexões entre qualidades primárias e secundárias, o que constitui um fator “ainda mais irremediável de ignorância” (iii 12 e 28). Portanto “em todas as qualidades secundárias não podemos descobrir nenhuma conexão” (vi 7), “exceto naquelas referentes a um mesmo sentido, que necessariamente se excluem umas às outras” (vi 10).

Ilustremos a posição de Locke recorrendo ao seu exemplo favorito: a proposição ‘O ouro é fixo’.[12] Nunca podemos obter certeza sobre sua verdade, pois se a palavra ‘ouro’ denotar uma espécie definida pela Natureza por meio de uma essência real, é evidente que, não conhecendo quais substâncias particulares são dessa espécie (pois não temos qualquer idéia clara dessa essência real), não poderemos afirmar nada universalmente com certeza acerca do ouro. E se, por outro lado, ‘ouro’ denotar uma espécie determinada por sua essência nominal, e.g. a idéia complexa de um corpo de uma deteminada cor amarela, maleável, fusível e pesado, as únicas qualidades que com certeza poderemos atribuir ao ouro são aquelas cujas idéias tenham conexão necessária (que possa ser descoberta) com as que formam essa essência nominal. Mas pelo que foi visto acima, isso só ocorre com as referentes a um mesmo sentido. Saberemos com certeza que a proposição ‘Nenhum ouro é azul’ é verdadeira, por exemplo. Mas não sendo capazes de descobrir qualquer conexão necessária da idéia de fixidez com aquelas idéias, ou com o seu conjunto, nunca teremos certeza se o ouro é ou não fixo, a menos que modifiquemos a essência nominal do ouro, de modo a incluir a idéia de fixidez. Porém nesse caso a proposição ‘O ouro é fixo’ expressará uma verdade puramente verbal, que nada instrui sobre o mundo. E o problema continuará se colocando com relação às demais qualidades, como a solubilidade em aqua regia, a ductilidade, etc., e nunca poderá ser eliminado.

Concluímos que nosso conhecimento universal sobre substâncias é extremamente reduzido[13],  incluindo apenas:  1) as proposições referentes aos poucos casos de conexão entre idéias de qualidades primárias que podem ser descobertas; 2) as proposições do tipo ‘Nenhum ouro é azul’; e 3) aquelas a que Locke chama trifling, que nada acrescentam ao conhecimento das coisas, mas “apenas ensinam a significação das palavras” (viii 7). Alguns exemplos fornecidos por ele são: ‘O chumbo é um metal’, ‘Todo ouro é fusível’, ‘Todo homem é um animal’ (viii 4, 5 e 6), subentendendo-se que o que está sendo predicado dos sujeitos faz parte de suas essências nominais.

Ficam assim excluídas do âmbito do conhecimento praticamente todas as proposições universais instrutivas sobre o mundo exterior, tais como: ‘Todo homem será envenenado pela cicuta’; ‘Nenhum homem pode se nutrir de madeira ou de pedras’ (vi 15), e as leis científicas de tipo fenomenológico em geral. Essa conseqüência importante do empirismo de Locke conflita com a visão epistemológica do homem comum e do cientista, que assumem que dispomos de meios para elevar a nossa crença em proposições dessa classe ao estatuto de conhecimento, fornecendo-lhes alguma justificação segura.

 

4. Indução

Ao mostrar que, em sua teoria epistemológica, a via para o conhecimento universal acerca de substâncias é uma via bloqueada, Locke trouxe à tona o problema da indução. Dada a importância das proposições gerais sobre o mundo na vida prática e na ciência, colocou-se a questão de que posição ocupariam na escala epistêmica, destronadas que foram do estatuto de conhecimento certo. Notemos que, aparentemente, Hume beneficiou-se aqui da análise de Locke, assumindo de partida que o conhecimento dessas proposições não cai no âmbito das relações de idéias, para dedicar-se a mostrar que, enquanto expressão de questões de fato, também não são seguras. O próprio Locke, porém, iniciou as investigações desse ponto. Embora o papel primordial atribuído por ele à experiência seja o de fonte das idéias, admite que ela pode fornecer conhecimento direto de proposições particulares sobre substâncias, a saber, a coexistência de uma determinada idéia com uma idéia particular de substância. “A experiência tem de me ensinar aqui o que a razão não pode” (xii 9). Mas essa experiência não fornece certeza senão sobre o que já foi experimentado; jamais redunda em conhecimento universal, ou mesmo acerca de instâncias não observadas. Saberemos, por exemplo, que este determinado pedaço de ouro mostrou-se fixo em tais e tais testes a que foi submetido. Não podemos, porém afirmar que se mostrará fixo em outros testes, e muito menos que todo ouro é fixo. Vejamos algumas passagens importantes sobre esse assunto. No parágrafo 14 do capítulo iii, após repetir que o conhecimento das substâncias oferecido pelo acordo ou desacordo entre as idéias é muitíssimo reduzido, Locke acrescenta:

Em todas essas investigações o nosso conhecimento vai muito pouco além de nossa experiência. [...] Ficamos apenas com a assistência de nossos sentidos para conhecer que qualidades [as substâncias] contêm. [...] Pois essa coexistência não pode ser conhecida além do que é percebida; e ela não pode ser percebida a não ser em objetos particulares, pela observação de nossos sentidos, ou, em [objetos] gerais [i.e. idéias abstratas], pela conexão necessária das próprias idéias.

E no parágrafo 28 desse mesmo capítulo lemos:

Pois onde [a conexão entre as idéias] nos falte, somos cabalmente incapazes de conhecimento universal e certo; e ficamos [...] apenas com a observação e o experimento que, quão estreitos e confinados são, quão distantes estão do conhecimento geral, não precisa ser dito.

A incerteza sobre a próxima ocorrência de um fenômeno que vem se repetindo é exposta explicitamente em iii 25:

Não podemos estar mais seguros sobre [as propriedades e modos de operação dos corpos] do que alcançam uns poucos testes que fazemos. Mas se eles darão certo de novo, não podemos ter certeza. Isso impede nosso conhecimento certo de verdades universais sobre os corpos naturais.

A conseqüência, que Locke expõe com clareza, é a impossibilidade daquilo que chama de  “filosofia científica” (iii 26), ou “uma ciência perfeita dos corpos”:

As coisas que ¾ tão longe quanto vá a nossa observação ¾ observamos de maneira constante ocorrer regularmente, podemos concluir que agem por uma lei que as determina; porém por uma lei que desconhecemos. Embora causas funcionem de modo estável, e efeitos fluam delas de modo constante, suas conexões e dependências não podendo ser descobertas em nossas idéias, só podemos ter um conhecimento experimental a seu respeito. [...] Mas quanto a uma ciência perfeita dos corpos naturais [...] concluo ser esforço vão procurá-la. (iii 29)

No esquadrinhamento das razões da incerteza da extrapolação indutiva do conhecimento  Hume vai mais longe que Locke, argumentando, como se sabe, que todas as inferências sobre questões de fato fundam-se na relação de causa e efeito; que todas as inferências sobre essa relação fundam-se, a seu turno, na experiência;  que em todos os raciocínios experimentais há um passo que não encontra suporte em nenhum argumento ou processo do entendimento ¾ a suposição de que o curso da Natureza continuará sempre o mesmo; e, finalmente, que a mente dá esse passo em virtude de um mero hábito.

No capítulo xii, sobre “a melhoria de nosso conhecimento”, após expressar a “suspeita” de que “não se pode fazer da filosofia natural uma ciência” (10), Locke tenta tranqüilizar o homem comum e o cientista, esclarecendo que não pretende “desprezar ou desencorajar o estudo da Natureza” (12), mas apenas advertir que não devemos esperar conhecimento onde ele não pode ser obtido. Não desejando que a falta de conhecimento propriamente considerado signifique ignorância plena, onde observações sistemáticas possam ser realizadas, Locke irá desenvolver, nos capítulos xiv, xv e xvi, estudos pioneiros sobre os “graus do assentimento” inferiores à certeza. Em sua análise das “bases do assentimento”, procura assegurar a certas leis naturais uma posição alta na escala da confiabilidade epistêmica. No caso que nos interessa mais de perto aqui, do “funcionamento regular de causas e efeitos no curso ordinário da Natureza”, por exemplo, se o assentimento geral de todos os homens em todas as épocas concordar com a nossa experiência constante e sem falhas, as “probabilidades se elevam tão próximo da certeza, que passam a governar os nossos pensamentos de modo tão absoluto, e a influenciar tão plenamente nossas ações como a demonstração mais evidente” (xvi 6).

É justo reconhecer que a proposta específica de Locke para o estabelecimento dos graus de probabilidade e assentimento padece de  várias deficiências, aos olhos privilegiados do filósofo de hoje. Em especial, é difícil discernir claramente se, para Locke, o conceito de probabilidade é inteiramente subjetivo ou se reflete, em alguma medida, propriedades objetivas do mundo. De qualquer forma, o que pretendemos apontar aqui é somente que pelo menos quanto ao “governo de nossos pensamentos”, à formação de nossas crenças, a experiência de regularidades tem, segundo Locke, uma influência determinante. No desenvolvimento da filosofia empirista por ele (re)inaugurada , caberá a Hume a análise detalhada dessa influência e da própria noção de crença.

Outro assunto que não adentraremos aqui, e que seria pertinente numa análise mais extensa das teses de Locke quanto ao estatuto epistemológico das ciências naturais, é seu reconhecimento de que nem todas as leis dessas ciências devem ser entendidas como generalizações indutivas. Acreditamos que aqui também Locke tenha antecipado algumas concepções recentes da filosofia da ciência. Para ele, o domínio das proposições que são apenas  prováveis divide-se naquelas sobre “questões de fato, que, caindo sob a observação, são capazes de serem testemunhadas pelos homens; [e naquelas] sobre coisas que, escapando à descoberta de nossos sentidos, não são capazes de tal testemunho” (xvi 5). Neste último caso, teremos que formular hipóteses, em geral motivados por analogias (xvi 12). Vejamos, apenas a título ilustrativo, estas interessantes considerações do parágrafo 13 do capítulo xii sobre o “verdadeiro uso de hipóteses”. Após haver alertado, no parágrafo anterior, que “devemos tomar cuidado com hipóteses e princípios errados”, ele adita:

Não que não possamos, para explicar os fenômenos da Natureza, fazer uso de nenhuma hipótese provável qualquer que seja; hipóteses, se forem bem feitas, são pelo menos grandes auxiliares da memória, e freqüentemente direcionam-nos para novas descobertas. O que quero dizer, porém, é que não devemos adotar qualquer uma com demasiada pressa, [...] antes que tenhamos examinado muito bem os detalhes, feito vários experimentos com a coisa que queremos explicar com nossa hipótese, e verificado que ela concorda com todos eles; que os nossos princípios [i.e., hipóteses] nos hajam conduzido bem ao longo desses experi­mentos, e que não são inconsistentes com um fenômeno natural quando parecem acomodar e explicar outro. E que pelo menos tomemos cuidado para que o nome princípios não nos engane, nem se imponha sobre nós, fazendo-nos aceitar por uma verdade inquestionável o que na realidade é, quando muito, uma conjetura muito duvidosa, como é o caso da maioria das (e quase diria de todas as) hipó­teses da filosofia natural.

Assim, Locke adverte contra a atribuição de um grau epistêmico demasiadamente elevado às hipóteses, ressalta sua função heurística,  põe como condições de sua aceitação a sujeição a testes e a sua abrangên­cia, destacando, por fim, a natureza conjetural das hipóteses da filosofia natural. Não podemos deixar de notar que em nosso século idéias muito semelhantes a essas encontrariam um ardente defensor em  Karl Popper. Popper divergirá de Locke, no entanto, ao considerar hipotéticas todas as proposições da ciência, crendo haver assim dissolvido o problema da indução.

 

Referências Bibliográficas

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HUME, D. A Treatise of Human Nature. Glasgow, Fontana, 1962.

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LOCKE, J. An Essay concerning Human Undestanding. Edited with an Introduction, Critical Apparatus and Glossary by Peter H. Nidditch. (Texto baseado na quarta edição, de 1700, com indicação de todas as diferenças com relação às demais edições.) Oxford, Clarendon Press, 1975.

POPPER, K.R. Conjectures and Refutations. 4 ed., London, Routledge and Kegan Paul, 1972a.

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RUSSELL, B. A History of Western Philosophy. New York, Simon and Schuster, 1945.

SMART, J.J.C.  Between Science and Philosophy. New York, Ramdom House, 1968.

SWINBURNE, R. (ed.) The Justification of Induction. Oxrford, Oxford University Press, 1974.

 



[1] Trabalho apresentado no III Encontro de Filosofia Analítica, realizado em Florianópolis de 18 a 21 de setembro de 1995, pela Sociedade Brasileira de Análise Filosófica.

[2] Ver A Treatise of Human Nature e An Enquiry concerning Human Understanding.

[3] Adotamos aqui a forma-padrão de referência para o Essay: livro e capítulo em algarismos romanos maiúsculos e minúsculos, respectivamente, seguidos do parágrafo, em algarismos arábicos. Nas citações, o emprego idiossincrático de itálicos feito por Locke não será reproduzido.

[4] Ver e.g. Russell 1945, Smart 1968, Goodman 1983, Popper 1972a e 1972b, e os artigos reunidos em Swinburne 1974.

[5] “Nossa observação, empregada sobre os objetos sensíveis externos ou sobre as operações internas de nossas mentes, percebidas e reflexionadas por nós próprios, é o que fornece ao nosso entendimento todos os materiais do pensamento. Essas duas são as fontes do conhecimento, de onde nascem todas as idéias que temos ou podemos ter naturalmente” (II i 2).

[6] Locke trata mais amplamente desse tipo de idéia nos capítulos xxv a xxviii do livro II. Vejamos um caso importante, o das idéias de causa e efeito (II xxvi 1): “Na observação que nossos sentidos fazem da vicissitude constante das coisas, não podemos de deixar de notar que vários particulares, quer qualidades, quer substâncias, começam a existir, e que recebem essa sua existência da aplicação e operação de algum outro ser. A partir dessa observação obtemos nossas idéias de causa e efeito.”

[7] Em II xxxi 6 e seguintes essa distinção é apresentada de forma preliminar.

[8] Veja-se, por exemplo, esta declaração explícita em IV vi 12: “Mas isto [...] não possui aquela certeza que é requerida para o conhecimento”. Ver também IV iii 6 e 14.

[9]  IV i 2. Daqui em diante todas as referências de capítulo serão relativas ao livro IV, salvo indicação em contrário.

[10] A importante distinção lockeana entre qualidades primárias e secundárias, que permeia todo o pano de fundo metafísico do Essay e de toda a ciência moderna, é introduzida no capítulo viii do livro II. As qualidades primárias são aquelas “totalmente inseparáveis dos corpos, em qualquer estado que estejam” (9): solidez, extensão, forma, movimento ou repouso, número, tamanho e textura (9, 10 e 23). As qualidades secundárias são aquelas que “na verdade não são nada nos próprios objetos senão poderes de produzir várias sensações em nós, como cores, sons, gostos etc, por meio das qualidades primárias [...] de suas partes imperceptíveis.” (10)

[11] IV iii 14. Deve-se estar atento para que a noção de solidez adotada por Locke é mais ampla que a usual: no capítulo iv do livro II, “Da solidez”, lemos, no primeiro parágrafo: “[Solidez] é aquilo que [...] impede a aproximação de dois corpos quando um é movido na direção do outro”. No capítulo sobre as máximas, IV vii, parágrafo 5, encontramos uma proposição que Locke aparentemente considera conhecida por um outro caso de percepção da “repugnância” entre idéias de qualidades primárias: ‘Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar [ao mesmo tempo]’.

[12] Esse exemplo aparece inúmeras vezes ao longo do Essay; ver e.g. IV vi  8 e 9.

[13] “This [...] is yet very narrow, and scarce any at all” (IV iii 10). No parágrafo 13 do capítulo vi, Locke diz que o “julgamento [judgment] pode ir mais longe; mas isso não é conhecimento. [...] Homens inquisitivos e observadores possivelmente podem, por esforço de julgamento [strength of judgment], penetrar além; e, com base em probabilidades tomadas de observações cuidadosas, e sugestões [hints] bem dispostas, podem freqüentemente supor acertadamente [guess right] acerca do que a experiência ainda não lhes descobriu. Mas isso ainda será suposição [guessing]; importa apenas em opinião, e não possui aquela certeza que é necessária ao conhecimento.”