HG 304 Teoria do Conhecimento

Graduação, 1o Semestre de 2011

Prof. Silvio Seno Chibeni

Departamento de Filosofia - Unicamp

 

Prova 1 (14/4/2011)

·       Esta prova versa sobre temas epistemológicos discutidos por Bertrand Russell nos capítulos 1 e 2 de The Problems of Philosophy. Nas questões as referências aos trechos relevantes são feitas segundo numeração seqüencial dos parágrafos, iniciando-se do número 1 em cada capítulo. Idêntico critério de referência deverá ser adotado nas respostas, não sendo aceitável a indicação por número de página, ou referências sem localização precisa.

 

1.     Nas letras de duas canções populares comentadas nas aulas e transcritas na página do curso, diz-se, em um caso, que “as aparências enganam” e, no outro, que “as aparências não enganam”. Esqueça os contextos das canções e comente, no contexto filosófico dos dois capítulos do livro de Russell analisados no curso, em que sentido a afirmação de que as aparências enganam está certa, e em que sentido está errada.

2.     Duas questões centrais da epistemologia são a da fundamentação do conhecimento e a de sua extensão, ou seja, até onde, em princípio, ele alcança. Nos capítulos que estudamos de The Problems of Philosophy, Russell faz uma opção quanto à primeira dessas questões, aderindo à posição usualmente chamada de empirismo. Cite frases dos capítulos 1 e 2 em que ele expressa sua adesão a essa posição, e explique-as brevemente, usando a terminologia filosófica adotada por Russell.

3.     Feita essa opção quanto à fundamentação do conhecimento, Russell passa a investigar um dos mais importantes casos da questão da extensão do conhecimento: saber se podemos em princípio conhecer a existência da matéria. Responda: a) Como Russell entende a noção de matéria?  (Localize e cite as frases do texto em que a noção é definida.) b) Mostre, em termos gerais, como o exemplo da mesa é usado por Russell para mostrar que o problema da existência da matéria surge tão logo seja adotada a posição empirista.

4.     Apresente, em termos concisos, o argumento filosófico oferecido por Russell, no cap. 2, para a existência da matéria, no sentido explicitado na resposta à questão 3a, acima. (Embora os elementos iniciais mais importantes dessa argumentação estejam no parágrafo 11, sua resposta não deve limitar-se exclusivamente a explicar o que está neste parágrafo.)

5.     a) Embora Russell ofereça esse argumento e o leve a sério, por que ele mantém, a partir do parágrafo 14, que não é por meio desse argumento que o homem comum acredita na existência dos corpos? b) Como, segundo Russell, essa crença ordinariamente se estabelece?

 

Correção do professor

 

1. A análise desenvolvida por Russell (seguindo uma longa e preponderante tradição na filosofia moderna) mostra que as aparências nunca enganam quando consideradas em si mesmas: cores, sons, formas, movimentos, etc. que aparecem, existem enquanto tais (ou seja, enquanto aparências, ou fenômenos) de modo patente e indubitável. Elas só poderão nos “enganar” se forem consideradas em relação com alguma outra coisa. Por exemplo, se tomarmos as aparências como representações ou efeitos da presença de objetos físicos, quase certamente não servirão como indicadores seguros e estáveis das propriedades desses objetos, como mostra a discussão feita por Russell acerca da mesa: A mesa aparece como tendo arestas não paralelas, ao passo que a mesa física, “real”, pode (embora não saibamos ao certo!) ser retangular; a mesa aparece com tamanho variável, mas (presumivelmente!) tem tamanho fixo, e assim por diante.

 

2. As frases mais importantes para demarcar a opção de Russell pelo empirismo são:

1.2: “Na busca da certeza é natural começar pelas nossas experiências presentes e, num certo sentido, não há dúvida de que o conhecimento deriva delas.”

1.10: “É evidente que se viermos a conhecer algo acerca da mesa, terá de ser por meio dos dados sensoriais – a cor marrom, a forma retangular, a lisura, etc.”

2.6: “Assim, são nossos pensamentos e sentimentos particulares que têm certeza primitiva. ... [Neles] temos, portanto ... uma base sólida a partir da qual devemos começar nossa busca de conhecimento.”

Tais afirmações indicam a adesão de Russell ao empirismo, pois essa é a doutrina segundo a qual o conhecimento se funda, em última instância, na experiência. No presente caso, a primeira frase fala explicitamente de “nossas experiências”; a segunda, dos “dados sensoriais”, que são os elementos mentais fornecidos pela experiência; e a terceira menciona “nossos pensamentos e sentimentos”, que são, igualmente, elementos mentais dos quais temos experiência imediata e indubitável.

 

3. a) Em 1.11 Russell propõe explicitamente: “A coleção de todos os objetos físicos é chamada de ‘matéria’”; sendo que nesse mesmo parágrafo define ‘objeto físico’ pelo exemplo da mesa: um objeto físico, nesse caso, seria “a mesa real”, isto é, a mesa entendida como algo que existe independentemente de ser percebido por alguma mente (ver também o parágrafo 1.13, em que confronta essa noção com a noção diferente de objeto físico proposta por Berkeley).

b) Russell mostra que a experiência da mesa – o ponto de partida de qualquer conhecimento sobre a mesa, segundo o empirismo – é, quando considerada atentamente, mais complexa do que comumente supomos. As cores que percebemos são muitas, e variam conforme as circunstâncias. O mesmo vale para as formas, tamanhos, etc. Por outro lado, aquilo que ordinariamente supomos como sendo a mesa real tem um conjunto de propriedades mais simples e estáveis: é marrom, retangular, tem 80 cm de altura, etc. Portanto essas supostas propriedades reais não podem ser identificadas com o que de fato percebemos. Devemos, assim, distinguir esses dois níveis, o da realidade e o da aparência, o do objeto em si e daquilo que existe em nossa mente e que tomamos como sua imagem ou representação. Coloca-se, então, o problema de como podemos determinar, a partir do que aparece, se esse outro nível ontológico, o dos objetos “reais”, de fato existe.

 

4. Russell argumenta que a matéria existe, no sentido indicado na resposta 3a, propondo, no parágrafo 2.11, que consideremos sua existência como uma “hipótese”, cujo objetivo é “dar conta dos fatos de nossa vida”, ou, mais particularmente, do fluxo de nossos dados sensoriais. E ela faria isso de forma mais simples do que a principal hipótese rival que está sendo examinada ao longo do texto, de que somos nós mesmos que criamos, pela imaginação, esses elementos mentais (ou seja, uma forma de solipsismo).  Nos parágrafos 12 e 13, ele considera, por exemplo, os dados sensoriais que temos nas ocasiões em que, como homens comuns, diríamos que presenciamos os movimentos de um gato, ou uma pessoa conversando conosco. Segundo Russell, a melhor maneira de explicar essas experiências é supor que, de fato, o gato e a pessoa existem, enquanto objetos ontologicamente independentes de nós. O argumento é, pois, do tipo que Charles Peirce chamou de “abdutivo”, e que na literatura contemporânea em filosofia da ciência se chama de “argumento da melhor explicação”.

 

5. a) O homem comum não vem a acreditar na existência dos corpos pelo argumento indicado na resposta à questão 4 pelo simples fato de que esse argumento sequer é conhecido por ele (e, além disso, o homem comum sequer distingue os corpos daquilo que aparece, e portanto para ele o problema epistemológico da existência dos corpos nem surge). b) Independentemente do argumento, “encontramos essa crença pronta em nós tão logo comecemos a refletir: é o que poderia ser chamado de uma crença instintiva” (2.14). Russell propõe, pois, que a crença na existência dos corpos se estabelece de modo pré-filosófico, por um mecanismo mental instintivo e automático, sobre o qual não temos nenhum controle, e que faz parte de nossa própria constituição mental. (Como se mencionou nas aulas, essa tese foi originalmente proposta e discutida em detalhe por Hume.)