Livro involuntário

Nunca me passou pela idéia ser autor ..
João Salomé Queiroga

A julgar pela obra publicado em livro, Alexandre Eulalio compartilhava da modéstia de Queiroga. Mesmo no único volume que traz o nome dele estampado na capa - A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars - esse autor involuntário descreve-se como pseudo-autor", cuja função mais se assemelharia a um 'guia de museu, boné emprestado e tudo'.

Essa abstenção de livro - apenas de livro, bem entendido, porque Alexandre publicou muito na imprensa, em revistas especializadas e deixou inúmeros prefácios posfácios e apresentações para obras de amigos - talvez se explique pela dificuldade que o nosso escritor encontrava em concluir seus textos. Eles precisavam permanecer abertos para receber uma nova achega, que revelaria uma outra insuspeita relação, geralmente de natureza interdisciplinar.

Alex era mestre em articular o visual e o literário e não dispensava o mergulho no contexto histórico para melhor situar seu olhar. Por esse motivo, a respiração ofegante de Alexandre Eulalio buscava uma sincronia com o tempo total, que lhe permitisse atingir a "consciência do fato literário» Ainda segundo suas próprias palavras, no prefácio que involuntariamente preparou para este livro póstumo, "a crítica literária só existirá de maneira não-episódica quando decorrer de um pensamento ensaístico englobante, essencialmente interpretativo".

À dificuldade de ver o seu texto acabado, cristalizado na letra-de-forma das páginas de um livro, Alexandre adicionou o exercício da exigência - que ele invejava em julio Torri-tributário de um conhecimento sólido e variado, que se espalhava por inúmeros canais entrelaçados, os caminhos cruzados 'dele. Eis a provável receita do ineditismo.

Esse autor quase secreto, para quem os interesses do mundo intelectual brasileiro, e principalmente paulista, dirigem uma interrogação sobre a modalidade do nacional que dialoga com o planetário e o moderno, seguindo a trilha luminosa de Mário de Andrade, deixou afinal uma herança rica em sugestões para a abordagem e a interpretação do papel da inteligência entre nós.

O Livro Involuntário se apropria de uma dessas sugestões.- o tema da identidade cultural. A demarcação do território da memória, da nossa identidade, quer compreender esse Brasil que somos nós, através de um movimento que examine - sem conformismo - a tradição. Aceitemos ou não, somos a resultante dos defeitos e qualidades do nosso passado.

No sistema de Alexandre Eulalio (que ninguém sorria; havia sistema no turbilhão de suas idéias), avultam a sobriedade, o cenário brasileiro, o ritmo, o olhar desarmado de preconceito, mesmo que, às vezes, o equilíbrio seja comprometido pela paixão que o especialista devota ao pormenor - o seu impulso criador, que alimenta também uma enorme dispersão. Nesse sistema tem lugar privilegiado a projeção sentimental identificadora ' Aliada a uma poderosa intuição, ela é responsável pela melhor obra eulaliana.

Desprezando hierarquias ("os autores secundários importam quase tanto como os de ponta), Alexandre irá percorrer um dos itinerários mais originais entre os intelectuais de sua geração. Sem hesitação ou recuo fato, que ficou comprovado pela extraordinária coerência dos seus objetivos, definidos quando o artista era ainda muito jovem, Alexandre estará quase sempre aprimorando, desdobrando uma ou outra vertente do seu pensamento. Esta sua característica seria confundida com mania obsessão; na verdade, tal atitude revela uma recusa discreta de compartir das suas fidelidades sentimentais: à causa do Império, a Diamantina, ao mestre Brito Broca, ao Modernismo, ao encontro da contingência histórica com o campo estreito da realização individual.

O Tiradentes, Gonzaga, Joaquim Felício, Nava, Gide, Machado, Bocage, Sérgio Buarque, Cruz e Sousa, Glauber, Oswáld etc.. etc..., todos os heróis de Alexandre mereceram um olhar amoroso, que os pretende integrar, mesmo se à revelia, ao tempo em que viveram.

O Livro Involuntário é por isso mesmo uma coletânea de proezas do tempo, anotadas por um furioso cronista, que jamais afasta a escrita do seu objeto; antes, nela revive intensamente as sete vidas reencarnadas o intelecto lhe faculta. Dilatando o tempo através da escrita, Alexandre Eulalio se apossa de uma dimensão existencial negada pela mesquinha temporalidade que lhe foi dada viver.

Este livro reúne contribuição de diversa origem: imprensa (campo atuação onde Alexandre identificava expressiva contribuição, especialmente antes da expansão da Universidade), ensaio, conferência, participa em simpósio, apresentação de livro ou pesquisa, celebração de efeméride resenha, comentário. Daí a oscilação do tom e, como seria inevitável nesse caso, de estilo ao longo do volume.

A escolha recaiu sobre aqueles textos - não importa se desiguais n ambição e na envergadura - cujo acesso fosse mais difícil, seja porque perdidos em algum jornal de época, seja porque divulgados em versão reduzida, ou mutilada "por erros pastéis, pela restrição de espaço.

Alguns dos melhores textos da lavra diamantina de Alexandre Eulalio foram deliberadamente excluídos, embora pertencessem à família ideológica que ganha voz e coerência neste volume. 'A literatura em Minas Gerais no Século XIX", 'Aureliano revisitado", 'Uma educação mineira travessia de Joaquim de Sales " e "Carranquínhas " mereciam integra ao capítulo 'O amor da província ',- as 'Cartas de Abdir a Irzerumo' e as cartas de Eça a Eduardo Prado poderiam figurar no bloco 'Desejo de História "As obras e os andaimes" de Jorge de Lima estariam bem abrigados sob rubrica 'Talento maior'. No entanto sua publicação em recente antologia que reuniu arbitrariamente alguns escritos do autor com a chancela uma editora universitária, desestimulou o seu aproveitamento.

Todo o esforço dos organizadores, além de visar ao estabelecimento uma estrutura funcional e orgânica, esteve dedicado à pesquisa do originais de Alexandre Eulalio, espalhados em coleções públicas e privadas. A partir deles, procurou-se recriar a primitiva e mais completa versão cada texto, aquela que transmitisse o frescor e a espontaneidade primeiro gesto da escrita.

Nesse processo foi necessário adotar um método. Alexandre, que também foi "editor literário", deixou-nos felizmente receita para dois - aqueles que empregou para organizar os escritos avulsos de Brito Broca e de Joaquim de Sales. Na obra do primeiro, usou um processo de aproximações temáticas, sem intervir profundamente no interior do texto, na do segundo, para evitar repetições, muniu-se de tesoura e cola e agiu como o montador de filmes, que constrói o discurso a partir de fragmentos. Os organizadores voluntariosos deste Livro Involuntário ora se serviram de um método, ora de outro. E assinam o seu trabalho 'pela apara' muito conscientes da fragilidade inevitável (senão inerente) ao oficio de compilador'

Inútil querer dissimular o corte quando ele foi adotado para dirigir o olhar do leitor, que de outra feita não distinguiria uma determinada passagem ou um consistente amálgama de idéias, capaz de explicitar o projeto intelectual do autor. Já sabem, refiro-me à intervenção feita pelos organizadores no "Comentário sobre a comunicação de Wilton Cardoso", que resultou no prefácio 'A imaginação do passado' Despojado do pretexto que o motivou, converteu-se numa candente profissão de fé da religião eulaliana. Cuidadosamente escondida num aparente contexto neutro, ela apenas aguardava a oportunidade para descobrir os truques fabulosos do Armazém Eulalio & Cia.

Carlos Augusto Calil