INTRODUÇÃO

Este livro possivelmente não terá significação alguma para alguns que o lerem. Sobretudo para os que não tiveram o sono de menino ao acalanto das cantigas-de-ninar em que figuram "bois de cara preta" e "vaquinhas de tetas cheias". Para os que se criaram sujando os pés no estrume dos currais, montando em cavalo-de-campo, tomando trompaços em galho de candeia ou de umburana, ou arranhando a pele em galho de jurema ou pau-de-fuso, para os que se cortaram nas espátulas do milharal ou compreenderam as glosas nas casas-de-farinha, ou educaram o ouvido ao aboio, que parece um trecho de cantochão na catedral do sertão, pode este trabalho despertar uma lembrança velha, a saudade dos serenos bois de ossos, ou do papuco de milho seco. Quem fez na malhada um curral de graveto e nele prendeu a sua boiada toda de ossos ou de sabugos de milho isentos de saruga, ou a sinhazinha que bate-bateu os bilros da almofada de rendas na saia-da-frente, no velho solar da fazenda, possivelmente sentirá uma saudade ao ler estas páginas. Somente para mim valerá este livro alguma coisa. Não é livro de história, porque não quis sê-lo. Não quis tornar-se em Interpretação sociológica da nossa vida, desde que não tive esta preocupação. É apenas o meu testemunho. É a minha história do sertão e dos seus tabaréus, que quis contar aos meus filhos, nos serões aqui, neste velho casarão da nossa pequena e modesta fazenda, para lhes esclarecer o engano de alguns estudiosos do nosso passado. Pretendi evocar modestamente a paisagem do nosso sertão. Paisagem viva, onde se movimentou uma humanidade segura e de prol, cujos nomes ainda carregamos envaidecidos. Ortega y Gasset tem uma tírada que pode ser aplicada aqui, nesta evocação das pastagens pastoris: "La Pampa no puede ser vísta sin ser vivida. No basta el aparato ocular con su función abstracta de ver. Todo el ser tiene que servir de órgano y colaborar en la percepción de este paisaje, que parece sin forma porque la tiene sutil. Como yo no lo he vivido no puedo decir que lo he visto y lo subsecuente va dicho como a ciegas" (l). Antes, afirmara: "A la verdad, sólo se ven bien los paisajes cuando han sido fondo y escenario para el dramatismo de nuestro corazón (2) I É isto mesmo. Só os tabaréus como nós sertanejos poderão gostar destas páginas. Certa feita, no Nordeste, quando por lá judicava, ao pesquisar liricamente pelos cartórios, escrevi umas cinco folhas sobre a civilização pastoreio. larguei-as na gaveta. Não se me havia acordado a idéia de escrever este trabalho. Somente depois da morte de meu Pai, quando tornei senhor da nossa fazendola, foi que senti esta necessidade de mostrar a muita gente a vida prístina das nossas fazendas. Enquanto vivo meu passávamos férias aqui, domingos e fins de semana. Era eu um auxiliar dos trabalhos do curral: vacinava, ferrava, castrava bezerros e cortava a ponta do sedenho, assinalando os vacinados. Ia ao pasto pegar cavalos e güentava com o poldro pelo laço, no mourão enquanto os rapazes curavam uma bicheira, tratavam de aplicar um remédio a um talho, a uma estrepada. Levava éguas para o ponto de padreação. Queria bem à paisagem. No entanto, só o sentimento de posse, de domínio faz despertar na gente o verdadeiro sentimento de amor ao campo. Amor diferente do que sentem filhos de fazendeiros. Descobre-se a beleza da propriedade, coisa que o curso jurídico nem de leve aflorou. Quando se tem uma roça e um curral, um tanque, um boi, uma casa-de-fazenda, a vida se apresenta aí de forma diferente. Sente-se, na alma, o reflexo das éclogas que se não escreveram. Pastor e dono-de-fazenda, mesmo que esta seja pequena, são coisas que mudam as cores da nossa paisagem costumeira. Por isso, o amor com que foram escritas estas paginas. E quem não possuir este sentimento há de fechá-las entediado. Escrevi-as para tabaréus como eu, que vivem na área que uma cancela de fazenda circunscreve. Até porque, possivelmente, me acharão apaixonado, parcial no meu julgamento. Hão de entender-me meus vizinhos e outros criadores bem ligados pelo coração ao nosso passado. Os tabaréus e a paisagem. Repito Lope de Vega... "que basta que me escuchen las estrellas" (3). Como história contada em casa, falta a este trabalho muita coisa, e há nele um sem-número de falhas. Talvez com a sua publicação possam muitos tabaréus, catingueiros de hoje, auxiliar-me no estudo que tenho em mira fazer do nosso sertão. Tive de lançar mãos de fatos passados com a velhíssima família Alves de São Boaventura, sem intenção de bosquejar-lhe a biografia. E sim porque tinha de começar por casa a cata de certos defeitozinhos... Exemplos de derriços por negras e mulatas, de analfabetismo em casas-de-fazenda fidalgas, de gente fina amorenada pelo cochicho com uma escrava... e coitos e coiteiros naturais no tempo, de gente que mandava gente para o outro mundo, e resolvi aproveitar a prata de casa, para que não se pensasse em parti pris com certos grupos que se movimentaram por aqui, sobretudo no último século. Na parte referente às relações de famílias, às uniões por casamentos, muito falta para se completar o esboço. Espero que os nossos estudiosos me secundem nestas pesquisas sobre o nosso passado pastoril e fiquem como os verdadeiros biógrafos exatos da nossa gente sertaneja. Ficarei com isto recompensado. lembremo-nos do ensinamento de Camões:

"Vêde, Nymphas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valorosos,
que assi sabem prezar com taes favores
A quem os faz cantando gloriosos!
que exemplos a futuros escriptores.
Para espertar engenhos curiosos
Pera porem as cousas em memories,
Que merecem ter eterna glória!" (4)

Não sei se nossa história se magoará com o meu atrevimento. Todavia, repito o velho Camões:

"Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
nas relíquias da vida que ficaram" (5)

Fica aqui o meu agradecimento aos que me forneceram dados de família, retratos dos seus maiores e documentos dos seus velhos parentes e aos que me animaram a prosseguir neste trabalho, especialmente os que tiveram a paciência de suportar a leitura dos originais. A todos os que me auxiliaram neste trabalho, o meu agradecimento.

EURICO ALVES

Fazenda Fonte Nova, janeiro de 1953.

l Ortega y Casset, José. Obras completas. 2, ed. Madrid, Revista de Occidente, s.d. v. 2, p. 637.
2 lbid., p. 635.
3 Lope de Vega. Sus mejores versos. Madrid, Valverde, 1929. p. 4.
4 Camões, L. V. de. Os lusíadas. Lisboa, Livraria Clássica, 1915. Canto 20, estrofe 82.
5 ld. Sonetos. 3. ed. Lisboa, Imprensa literária, s.d. Soneto 83.