A ARISTOCRACIA DOS CURRAIS     

Wilson Lins

O poeta Eurico Alves Boaventura, depois de uns vinte anos de pacientes pesquisas e cansativas buscas na vasta bibliografia existente sobre a matéria, meteu mãos a uma obra que, iniciada em 1952, só em l963 foi concluída. E há sete anos está ela sendo retocada. São mil e tantas páginas datilografadas, em tamanho ofício e espaço dois, que, impressas, darão um livro de novecentas e muitas páginas. Pois todo esse calhamaço está comigo, que o estou devorando com avidez, não só pela prosa em que é escrito, mas, sobretudo, pelo assunto, que é dos mais fascinantes, e com ele será enriquecido por verdadeira massa de observações e descobertas da maior importância. Trata-se nem mais nem menos de um estudo sobre a formação e o desenvolvimento da aristocracia rural, nos adustos sertões da Bahia, que, embora não tenha sido esta a intenção do seu autor, representa uma réplica ao fabuloso e sempre atual Casa grande e senzala, de mestre Gilberto Freyre. Enquanto a obra do grande pernambucano retrata os nédios e fartos fidalgos, que, não obstante machos duros nos momentos em que as circunstâncias exigiam machidão e dureza, comumente viviam nas costas dos negros, que não só suavam por eles nas plantações de cana e nas caldeiras dos engenhos, como ainda os carregavam nas redes e cadeirinhas de arruar, o volumoso trabalho do poeta baiano mostra uma aristocracia suarenta, requeimada de sol que, em vez de se deixar transportar pelos escravos, nas padiolas, rasgava as roupas no cerrado, correndo atrás de boi bravo, nos seus cavalos de campo. E são numerosos os perfis que ele traça de fidalgos de gibão e chapéu de couro, que não viviam da fazenda como parasitas, mas viviam a fazenda como autênticos vaqueiros, experimentando todos os riscos que os seus camaradas e agregados enfrentavam na faina campeira. Eram ricos senhores de muitas terras, como o Barão de Sincorá que, podendo viver vida de lordes, na Corte ou na capital da Província, preferiam morar na fazenda, dirigindo seus vaqueiros e negros de lavoura, comandando-os nas vaquejadas, estimulando-os com sua presença nas limpas dos pastos ou nas plantas e colheitas do feijão, do milho, da mandioca. Eram homens de fino trato, letrados como o padre José Peixoto Viegas, a viverem, como salienta o autor, "na comunhão integral com o seu domínio e a sua gente". Antípoda do senhor de engenho, que, segundo Gilberto Freyre, tinha vergonha de usar as pernas e só usava as mãos para comer, beber e apalpar as molecas novas da senzala, o senhor da zona do pastoreio, "apesar de fidalgo", - e aqui recorro a Eurico Alves - "não sentia repúdio pelo trabalho, sobretudo pelo áspero e belo trabalho do vaqueiro". Mostrando, com abundância de exemplos, o papel civilizador do aristocrata dos currais, concorda com Oliveira Viana, quando reconhece a extraordinária influência da nobreza do pastoreio na conquista da Independência. Reagindo, desde os primórdios da Colônia, contra a má vontade da Coroa, que chegou a proibir que fossem abertos caminhos que se entrecruzassem, no interior das Capitanias, o criador de gado foi sempre um inconformado com o domínio alienígena, o que não ocorria com o potentado do litoral, e não foi o acaso que fez os primeiros movimentos nativistas eclodirem no remoto interior do País. Nem foi por mera coincidência que o príncipe regente, ao dar o brado de independência ou morte, se encontrava às margens de um modesto riacho matuto, tendo como testemunha um carreiro com seu lerdo carro-de-boi, imortalizados ambos, mais tarde, pelo pincel de Pedro Américo. Outro aspecto da vida sertaneja, profundamente revelador do caráter do homem daquele mundo de asperezas geradoras de sentimentos generosos, é o da solidariedade, que, nascida dos perigos que a cercavam, tem no jagunço sua expressão mais pura. A solidariedade que envolveu os primeiros barões da caatinga, nas labutas dos currais e na resistência dos índios, não faltou aos seus descendentes ao longo da conquista da Independência, e faria nascer, entre o acaso do Império e o alvorecer da República, tanto o jagunço como o coronel. Dela, o livro de Eurico Alves trata com requintes de ternura, mostrando a sua natureza e a amplitude de suas manifestações, que abrangem todos os momentos do viver sertanejo, já que, numa sociedade que em tudo depende da capacidade do homem, e este não é rico, a solidariedade se converte em moeda corrente. São mil e tantas páginas que merecem ser lidas e que eu gostaria de ter escrito. Mas, já que não tive o privilégio de escrevê-las recomendo sua leitura, fazendo votos para que elas não demorem a encontrar um editor. E quase me esquecia de dizer o título do livro, que é só o que nele é fraco, pois Fidalgos e vaqueiros diz muito pouco. Creio que A aristocracia dos currais lhe cairia bem melhor. Fica a sugestão.

A Tarde. Salvador, 15 fev. 1971