Acerto de Contas

O pintor Oswald de Andrade Filho, nascido em 1914, filho mais velho de Oswald, acompanhou de perto a participação de seu pai na vida literária brasileira. Educado na Suíça, Nonê como era conhecido por amigos e famíliares, desde jovem conviveu com nomes importantes da arte moderna ocidental e de alguns deles tornou-se amigo: Satie, Brancusi, Delaunay, Camus e muitos outros. De volta ao Brasil (1929), em virtude da crise financeira, depois de passar por uma fase de adaptação à nova vida, resolveu estudar pintura, primeiro no Rio de Janeiro sob a orientação de Cândido Portinari e mais tarde em São Paulo com Anita Malfatti e Lasar Segall. Começou cedo sua participação no cenário artístico do país: nos Salões que marcaram os anos 30 e 40 e também nas Bienais, sem contar, é claro, a realização de inúmeras exposições individuais, intensificada a partir de 1954. Artista plástico, o instrumento de expressão preferido de Nonê eram as cores e as formas, mas à maneira oswaldiana (Um homem sem profissão), usou as palavras para montar o quadro intricado de suas raízes e de sua experiência passada. Queria entender a atitude esquisita da mãe ao ocultar a existência dos irmãos franceses e ao mesmo tempo pretendia homenagear estes parentes próximos jamais conhecidos; tentava desvendar as contradições e as artimanhas de uma vida conturbada, sobretudo a irrequieta personalidade de um pai que tão bem conhecera e por quem tinha um carinho imenso, transformando-o na personagem principal, ou melhor na grande estrela de Dias Seguintes e Outros Dias, título do manuscrito agora recuperado. Instalado modestamente num camarote de segunda classe do pequeno Augustus, embarca para Europa em 1965, coordenando uma viagem de estudos para suas alunas completarem o curso de História da Arte. Passados mais de dez anos da morte do pai, seu grande parceiro e amigo, Nonê aproveita para desenhar com pinceladas de emoção e espontaneidade um roteiro paralelo. Este tão rico quanto aquele, embora mais difícil e muito doído, uma vez que se trata de um percurso interior, em cuja rota vários mitos são arranhados. Aqui importa muito pouco a viagem física, trata-se de um itinerário pessoal, portanto, deflagrado por imagens e recordações provisoriamente esmaecidas e reavivadas a medida em que o homem maduro revisita lugares por onde esteve adolescente, quando era passageiro cativo da primeira classe de luxuosos navios. Excursões de estudo ou de férias pela Europa e pelo Oriente foram uma constante para o autor, quando jovem, sempre acompanhado do pai e da pintora Tarsila do Amaral. Viajar na vida e na obra do modernista Oswald de Andrade representava uma forma de sonhar, um meio de libertação. Os personagens dos seus romances, Miramar e Serafim, alter-ego do escritor, transformaram-se e amadureceram graças às aventuras vividas mundo a fora. O comandante do navio El Durasno, que transportava Serafim, seu secretário e "a humanidade liberada", não pretendia atracar temendo interromper a desejada "revolução puramente moral" explodida a bordo: El Durasno só pára para comprar abacates nos cais tropicais. Dias seguintes e outros dias, da mesma forma, gira em torno de excursões imaginadas e realizadas no passado: paixões desses dois Oswald. Nesta seqüência de aventuras a principal delas vivida interiormente, o artista tenta libertar-se dos conflitos pessoais e familiares, acerta as contas com o pai famoso e com muitas personalidades hoje legendárias com quem conviveu: começando por Pagu (Patricia Galvão 1910-1962), passando pelos políticos comunistas companheiros de luta - João Mendonça Falcão, Jorge Amado, Luís Carlos Prestes, etc. Numa espécie de autobiografia fragmentária Nonê parece querer tomar posse de si mesmo. Isto porque até 1954, esteve inteiramente por conta de seu pai que o absorvia com seus negócios eternamente intricados para os quais o convocava como sócio ou avalista. A vida profissional e pessoal desorganizada do velho Oswald atingia sobremaneira o filho mais velho que quase não tinha tempo para si. O título do manuscrito, por sinal muito bem escolhido, sintetiza a ciranda interminável em que estava envolvido. A forte relação entre os dois levou Nonê a adotar o nome Oswald de Andrade Filho, para assinar suas obras. Era como se verdadeiramente assim o fosse, pois o autor do Serafim tentou repetir o gesto do pai (José Oswald Nogueira de Andrade), que, em 1890, o registrara também como José Oswald. Apenas encompridou o nome do seu primeiro filho acrescentando-lhe mais um prenome, Antônio. E assim ficou oficialmente sendo José Oswald Antônio de Andrade, sem o sobrenome francês da mãe, Henriette Denise Boufleurs. Não contente com isso, o velho antropófago deu-lhe também o mesmo apelido - Nonê - pelo qual seus pais e companheiros de infância o chamavam. Morto Oswald (1954), livre da pesada herança - dívidas e mais dívidas - é o momento da consolidação definitiva da liberdade ensaiada antes várias vezes (a ida para o Rio sozinho, em 1931, foi a primeira delas). Desligados dos compromissos com o pai, livre dos credores, poderia ter tempo para produzir seus quadros e investir na profissão. A incursão memorialística significa mais um gesto de libertação, tentativa de encerramento de uma etapa de vida. Por coincidência Dias Seguintes acaba de forma abrupta ao registrar o desencontro com a irmã francesa Simone, de cuja existência ficou sabendo quando tomou conhecimento do testamento da mãe. Conclui, por assim dizer, o ciclo de ligações afetivas conturbadas, incluindo a relação com a mãe com quem pouco conviveu. A matéria narrada desse manuscrito substancialmente são as lembranças das experiências que o escritor foi levado a viver. Ou seja, ele não escolheu atuar em todas essas peripécias, alegres e tristes, rememoradas no momento em que realizava uma viagem educativa, acompanhando jovens alunas, algumas delas possivelmente com a mesma idade que a do escritor em muitas passagens desse texto. O presente, a mulher, os filhos funcionam como pano de fundo, e não estão em questão, pois o acerto de contas é com o passado. Talvez seja por isso que a sua vida adulta e profissional não esteja contemplada aqui. Nesta viagem introspectiva o narrador não tem olhos para o novo que a paisagem visitada naquele momento lhe oferecia. Não se preocupa em narrar o que viu e sim aquilo que o liga ao passado ou a emoção de recordar. A câmera, através da qual enquadra paisagens, monumentos, museus, está aparelhada com a lente da saudade, com alguns filtros nostálgicos. E não poderia deixar de ser assim no que diz respeito às lembranças boas e fortes. As sequelas de um passado nada tranqüilo não lhe tiraram o bom humor. A epígrafe, Horas non numero nisi serena, encontrada pelo pintor gravada num relógio solar de uma velha mansão da Avenida Paulista, prenuncia o tom do relato. Os leitores, que embarcam nessa jornada fascinante, montada através duma ciranda de lembranças, com atores e datas misturando-se entre a Europa, o Oriente e o Brasil, vivenciam melhor personagens e fatos de um rico período da história de nossa cultura: tem acesso às divertidas excursões, às noitadas e aos debates modernistas, desvendam os bastidores da política nacional nas conturbadas décadas de 30 e 40 e além disso conhecem a vida e redescobrem a obra de um artista brasileiro importante que teve uma atuação bastante dinâmica. O livro de Nonê proporciona aos leitores jovens um contato humano mais direto com a figura controvertida e estranha de Oswald de Andrade: o cidadão comum com defeitos e qualidades; o pai carinhoso e desleixado; o político romântico; o intelectual engajado. Enfim, um depoimento importante em que mais uma vez se delineia a impressionante solidariedade de obra e de vida do líder modernista, recuperando fatos curiosos que interessam muito de perto ao historiador da literatura brasileira. É justamente esta fusão de traços da história cultural contemporânea com empenho memorialístico que torna sua escrita sedutora. Outros méritos Dias seguintes e outros dias coleciona. Oscila entre crônica de viagem, diário e autobiografia. É um relato envolvente, na sua maior parte estruturado em versos, intercalados com pequenos trechos em prosa e quatro cartas (uma delas em prosa). A linguagem comum pareceu imprópria a Nonê para exprimir sentimentos tão fortes e contrastantes e sintetizar uma existência única de vida. Na aparente confusão espaço-temporal, onde se alternam os períodos de fartura e a época de pobreza - o cenário aristocrático da Alameda Barão de Piracicaba e o infecto mundo boêmio da Rua da Lapa - o pintor busca angustiado o tom da escrita que devia ser maleável e variada como a sua experiência. Num estilo bastante despojado e agradável, manipula elementos e dados sofisticados com a técnica de um quadro da sua fase primitivista. Como é um texto inacabado, a linguagem adotada tem um ritmo desigual. Isto porque Nonê entrega-se à lembrança ou à emoção que a rememoração da experiência vivida ou experiência frustada proporciona-lhe. Algumas vezes tenta experimentar e brincar com a linguagem numa estratégia de camuflar ou amenizar o impacto do narrado, como o versinho de sabor joyciano de abertura do livro. O trabalho gráfico de ilustração, na realidade, funciona como uma espécie de segunda linguagem, enriquecendo bastante estas memórias. Diante da quantidade de textos espalhados em inúmeros cadernos, e como Nonê não conseguiu completar este livro de viagens, um só princípio presidiu a montagem final dessa obra: seguir à risca as anotações do seu autor para preservar a espontaneidade e singeleza de expressão. Procurou-se chegar a esta estrutura, fixando-se apenas no conjunto em que, ao que parece, foi elaborado por último. Desse bloco, a carta à Simone e os epitáfios aos dois irmãos tiveram uma única redação. A correspondência para sua mulher - núcleo gerador do livro -, as diferentes versões trabalhadas e retrabalhadas, inclusive as primeiras anotações feitas apressadamente nas viagens, até os últimos cadernos, tudo foi lido e relido, na intenção de se familiarizar com o espírito da obra, com o estilo do autor e buscar pistas para resolver vários problemas no texto inconcluso. No processo de fixação do texto, foi mantida quase que integralmente aquela redação final revista por Nonê. Em algumas passagens, optou-se por interferir no manuscrito. E esta intromissão dos organizadores aconteceu nos seguintes casos: correção dos trechos e frases citadas, como por exemplo as citações de textos de Oswald, no Corazon Nuevo de Lorca, no "Coco de Pagu" de Raul Bopp, e ainda nas citações em língua estrangeira; nos descuidos de grafia ou de linguagem mais graves. A pontuação foi corrigida apenas por exigência da clareza e com intuito de rever algum erro. Obdeceu-se ainda a indicação de final de estrofe e de página assinalada pelo autor. Foram recuperadas também as ilustrações dentre as infinitas sugestões deixadas e esboçadas por Nonê, ampliou-se a pesquisa visando à coleta de novos documentos de época relacionados com o trabalho gráfico idealizado por Oswald de Andrade Filho. A cronologia e a extensa bibliografia traçadas detalharão a sua trajetória no contexto cultural do país, informando sobre suas inúmeras atividades de pintor, crítico, professor de História da Arte e militante comunista nos anos 30; as notas servirão de mapa para o leitor situar personagens e fatos de época.