TRAJETORIA
DE OSWALD ANDRADE

"O que importa para o artista moderno é traduzir nossa época e a sua personalidade. O resto é literatura" (Rubens Borba de Moraes)

Mesmo depois de decorridos 60 anos de publicado, o romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) perturba pela sua modernidade. E modelo de prosa revolucionária pouco conhecida pelo grande público. Certamente Oswald de Andrade inaugurou no Brasil a prosa de Vanguarda, ensinando aos seus contemporâneos como adaptar à narrativa as experiências cubistas, bem-sucedidas na pintura moderna de Picasso e Braque; prefaciando os novos lançamentos da época, apoiou as tentativas subsequentes de renovação da ficção brasileira: apresentou, com a "Carta Oceano" (l926), o Pathé Baby de Antônio de Alcântara Machado à moderna literatura da época.

Este percurso de modernização da prosa brasileira configurou-se por etapas, com tenacidade e pesquisa artesanal séria, embora se afirme, equivocadamente, que a obra de Oswald foi conseqüência apenas da genialidade de improvisação. Na realidade, Oswald levava muito tempo para considerar seus textos maduros, para divulgação. As modificações radicais que sofriam seus projetos resultaram da angustiante e bem-sucedida busca de um ideário autêntico e moderno. Rubens Borba de Moraes lembrava que as invenções concretizadas nos dois primeiros decênios do século modificaram radicalmente a percepção estética. Sendo assim, "0 homem não tem mais cinco sentidos, tem centenas, milhares. A velocidade da vida moderna obriga o artista a realizar depressa o que ele sentiu depressa, antes da inteligência intervir. Desse estado de coisas nasceu a sintetizarão da arte moderna". O autor de Domingo dos Séculos assinalou um fato curioso e que foi ao mesmo tempo uma das grandes peculiaridades do processo construtivo da narrativa miramarina. No romance de Oswald de Andrade, além da sintetizarão quase que extrema da simultânea multiplicidade de acontecimentos, aconteceram momentos de análise contundente e minuciosa. Um perfeito retrato da burguesia e seus conflitos perante a modernidade que invadia seu pequeno mundo.

Miramar foi planejado e redigido em parte por volta de 1915, reescrito várias vezes até atingir a forma sincopada e concisa da sua versão final. Muitas foram as redações não depuradas dos ornamentos supérfluos. Oswald costumava ler seus trabalhos para os amigos bem antes do lançamento, ou pelo menos antes da redação final. Algumas referências esparsas dão conta da trajetória desse romance. Ribeiro Couro (em carta datada de 21 de maio de 1920) pedia notícias de Miramar e A Estrela do Absinto; Sérgio Buarque, em O Mundo do Literário, (9 de janeiro de 1923), anunciava o segundo e o terceiro volume do romance A Trilogia do Exílio e as Memórias de João Miramar.

Os diferentes desmontes que sofreu o romance confirma a pratica de um projeto consciente voltado para a pesquisa incessante de estilo próprio e atual: um interesse novo para tornar a frase diversão pura do espírito. Como definia o romancista: "chapas fotograficamente batidas de estados de espírito e de ação", onde domina o "divertimento estilístico que procura a poesia e realiza o ritmo". Foram diversificados os procedimentos empregados nessa incansável busca da forma adequada deste divertimento estilístico, até alcançar a modernidade. Acredito que somente A revolução melancólica ( do Marco Zero) foi redigida em tempo recorde para poder participar do II concurso Literário latino-americano, embora, fundamentada em trabalho de pesquisa prévio e demorado Oswald declarava em entrevista (Diário de S. Paulo, 8 jan. 1943): "Em dois meses redigi 364 páginas d' A revolução melancólica. Mais tarde o romancista explicava o processo de construção desse livro: "( ... ) fiz uma obra de trabalho sereno. Isso me custou muito esforço e paciência"; "Há nele um fabuloso material colhido entre os vários dialetos e línguas que se falam neste tumultuoso aglomerado de raças e de povos tão diferentes que é São Paulo. 'Colhi material em todos os setores. Não fiquei no Brás, nem no Bexiga". (o romance terminou abiscoitando o prêmio do concurso, juntamente com Jubiabá de Jorge Amado.)

Miramar pediu auxílio à linguagem e bem-humorada o mundo provinciano do cinema para criticar de forma precisa e medíocre da pequena burguesia. São sobejamente conhecidos, depois sobretudo das análises de Antônio Cândido, Mário da Silva Brito e da publicação das suas Memórias, os lances autobiográficos desta narrativa crítica. A permanência de Oswald na Europa, em 1912, mudou drasticamente a sua visão de mundo: "Tinha-se aberto um novo front em minha vida (…) A Europa fora sempre para mim uma fascinação Tudo isso vinha confirmar a idéia de liberdade sexual que doirava o meu sonho de viagem longe da pátria estreita e mesquinha, daquele ambiente doméstico, onde tudo era pecado (... ) Apenas tinha uma nova dimensão na alma conhecera a liberdade" (Um homem sem profissão. R.J., Civ. Brasil. 1972).

Os primeiros esboços como bem mostrou Haroldo de Campos (Estilística miramarina) não tiveram o mesmo grau de ruptura e inovação da versão definitiva. A radicalidade da experimentação da atualidade da prosa miramarina impuseram-se na medida em que o mundo se transformava e com isso mudava a maneira de seu irrequieto autor enxergar as coisas. Oswald pretendia um ritmo mais dinâmico, a fim de aproximar a ordem simultaneísta da técnica do cinema, imprimida antes de maneira comedida em Os Condenados. Acreditava que a obra de arte era a forma encontrada pelo artista com o intuito de fixar a matéria presente em toda parte e esta forma devia estar em consonância com seu tempo e seu ambiente. O caráter fragmentário, solto, caótico da narrativa miramarina surgiu também da noção de que o romance devia ser uma. resposta à abrupta transformação por que passava a civilização ocidental. Apesar de todo aprendizado, o grande impulso à modernização da redação conhecida deste romance foi dado graças a sua permanência, durante o ano de 1923, em Paris. A amizade com Blaise Cendrars facilitou o contato do casal Tarsiwald (apelido carinhoso de Mário de Andrade para Oswald e Tarsila) com as manifestações mais atuais da arte francesa. arte francesa. Em Paris redigiu o texto final do romance, conforme depoimento de Tarsila a Araci Amaral.

A novidade da narrativa desconcertou inclusive seus companheiros de luta modernista, até mesmo os mais combatentes. Carlos Drummond de Andrade descreveu (carta a Oswald 3 jan. 1925) a repercussão do livro entre os intelectuais mineiros:..."aqui chegaram as "Memórias" que derreteram a boa ingenuidade mineira em ohs! e ahs! mais ou menos copiados do dr. Pilatos E o seu livro permita-me que decalque o- nosso Mário de Andrade - é uma cilada". Mas o grande poeta mineiro não escondeu seu entusiasmo:, "(... ) admiráveis é mesmo o único livro de prosa verdadeiramente moderno que até hoje o Brasil produziu". Os realizadores da revista Estética - Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque - se queixaram da falta de articulação da narrativa, lamentando a dificuldade para classificar o livro: "gênero indeterminado", "esquema ligeiro e pitoresco". Apesar dos elogios, as mesmas ponderações no que diz respeito ao "erro brasileiro", feitas primeiro por Mário e depois por Drummond: "Ninguém fala o brasileiro de Miramar. Sua construção de um raro poder expressivo é personalíssima. De artista. Portanto de exceção". Mário já havia observado "uma dicção eminentemente artística e personalíssima"; Drummond lembrou que "a linguagem pau brasil (... ) saiu eminentemente artística e personalíssima"; Emílio Moura fez coro e sentenciou romancista nervoso "cheio de vida na sua técnica pessoal". Todavia, foi este poeta mineiro que em A Revista (jul. 1925) fez a resenha mais severa. Suas impressões sobre o recém lançado romance ainda estavam sob o impacto das incontáveis leituras que deve ter feito do último livro de poemas do Mário: "Miramar, como toda a literatura recente do Oswald de Andrade,- lembremo-lo em tempo, não vai além de uma tentativa( ... ) Ele podia colocar, naquele prefácio de Machado Penumbra a sinceridade da Paulicéia Desvairada". Apesar de todas as restrições dos modernistas, Mário de Andrade foi quem mais se entusiasmou com o Miramar. Na sua costumeira correspondência com Sérgio Milliet anunciava: "Memórias Sentimentais publicados. É uma delícia" (Carta de 11.08.1924). Plínio Salgado, outro modernista de primeira hora, mais tarde ovelha desgarrada, considerou a forma da narrativa -intransigente, intempestiva, ilógica e contraditória. Fez várias ressalvas à realização do romance, mesmo assim admitiu ter encontrado neste livro um grande repertório de orientação e sugestão. E não resta a menor dúvida, o estilo desta narrativa serviu de modelo para o autor de O estrangeiro. Aliás, Miramar fez escola, como bem demonstrou na época do lançamento a resenha de Prudente de Moraes, neto, na Revista do Brasil (30, out. 1926): "Há trechos e trechos de verdadeiros pastichos do autor de Pau brasil. Desde a forma fragmentada até os menores cacoetes (... ) a escolha das imagens, o ritmo da frase (... )". Às críticas a esta manipulação desordenada da língua nas suas obras modernistas, Oswald de Andrade respondia: "(…) nossas aparentes impropriedades, nossos possíveis exageros (de que abertamente nos orgulhamos) são voluntários e tenderia à fixação e instalação de tesouros populares que vem vibrantemente enriquecer o estilo e a língua que falamos" (Trecho do comentário de Oswald sobre a polêmica travada no Correio Paulistano entre o arquiteto G. Warchavichic e o engenheiro Dácio de Moraes.)

Ao que parece, a história de Serafim é muito semelhante àquela do Miramar. Oswald de Andrade, depois de escrever o Serafim Ponte Grande entre 1923 e 1926, foi pacientemente condensando e burilando o texto até alcançar a versão definitiva. Dez anos antes do seu lançamento, anunciava em carta ao seu amigo Blaise Cendrars: Mon roman Serafim Ponte Grande vá être imprimé. Um ano antes, portanto, do lançamento do Miramar. Teria mesmo Oswald, naquela época, concluído o Serafim? Mário de Andrade, escrevendo para Tarsila em Paris (dezembro de 1924), acaba com todas as dúvidas sobre a data de elaboração do Serafim. Mário perguntava a amiga sobre o Oswald: "Que faz ele? Mostrou-te o Serafim Ponte Grande? Ficou (o Oswald) meio corcundo comigo porque eu disse que não gostei". Em vários artigos de jornais c entrevistas Oswald comentou sobre o livro em preparo: "0 meu espírito banha-se numa piscina, inunda-se de repouso e de alegria, quando, por exemplo, chego com um dos personagens prediletos Serafim Ponte Grande, o burocrata transfigurado - à conclusão urbanista de que "0 Largo da Sé" é o ponto de junção das ruas Direita e 15 de Novembro". Ao crítico Tristão de Athayde (carta publicado em O Jornal), observava: "Deixo ao meu compatriota Serafim Ponte Grande o prazer de lambuzar o cérebro no "tanglefoot" do Harry e a vangloria de cear com as estreias verticais de Hollywood, na casa da mulata Florence, onde aliás vou- por causa da lingüiça com melado". Ambos os textos (a entrevista e a carta) datam de 1925, o que indica que a esta altura muita gente tinha tomado conhecimento do seu "grande não livro". Como ocorreu com o romance anterior, Serafim foi li para os amigos, ainda em 1924, e Mário deu suas impressões a Sergio Milliet -"Muito fraco. Muitíssimo inferior à Memórias Sentimentais" (Carta de 1924).

Oswald projetava um romance e construía aos poucos, embora como acostumava acontecer, já tivesse título dedicatória (modificada a medida e que as relações com as pessoas homenageadas sofriam abalos). Para o Serafim a Revista do Brasil (30 nov. 1926) informou sobre um longo prefácio dedicado à sua geração e que de certa for se constituía numa espécie de profissão de fé modernista, com uma detalha justificativa - dedicatória a D. Olívia Guedes Penteado, homenagem pelo s apoio e incentivo à arte moderna Brasil. A revista Terra Roxa e Outras Terras (l7 set. 1925) publicou um fragmento do romance: "Do Meridiano Greenwich". Comparados os dois te tos, o da revista paulista e o de 1933, surpreendente o progresso do escritor na conquista de um estilo próprio e moderno. Essa discrepância entre. os textos evidencia mais uma vez que a modernidade oswaldiana não brotou de relance foi o resultado de um longo Processo aprendizado.

É também evidente que este romance foi amadurecido simultaneamente proposta da antropofagia. Aliás as ligações entre os dois projetos são mui claras. Embora a Revista de Antropofagia tenha sido uma produção de grupo de realização posterior, salta à vista marca oswaldiana na experimentar da linguagem, apresentando a mesma quebra dos padrões estéticos praticados primeiramente em Miramar e depois e Serafim. Os parentescos entre a ficção oswaldiana e a revista são incontáveis. O emprego da colagem e da paródia nesses dois romances e na citada revista o mesmo aspecto zombeteiro e derrisivo; o dicionário de nomes que compõe capítulo do livro "No elemento sedativo" e a seção Brasiliana (da primei fase da revista) são montados dentro mesmo espírito de colecionar tolices asneiras que espalhavam de certa forma facetas do ideário nacional (aliás a revista Terra Roxa e outras Terras manteve também uma seção com o objetivo reunir as "Manifestações espontâneas de Pau Brasil"); um desfile de alusões dessacralizadoras a fatos literários e autores consagrados tanto no livro c mo na revista; glosa do fluxo normal narrativa no Miramar e no Serafim, como da linguagem usual da revista.

No espaço de tempo que vai 1923 até a data da publicação (l933), Serafim ganhou diferentes montagens. Estes intervalos demorados entre a primeira versão da obra e sua data publicação são sintomáticos de uma metodologia cuidadosa e de um exaustivo trabalho de artesão. Anunciam, an de mais nada, a paciente e laboriosa tentativa do romancista em aperfeiçoar o seu estilo, transformando-o no retrato das suas idéias estéticas do momento das suas observações a respeito do desenvolvimento da narrativa moderna. espantosa a consciência oswaldiana torno da importância e do alcance seu trabalho. Sabia que estava subvertendo os padrões da ficção tradicional ou pelo menos que estava fazendo ai de novo em relação ao que havia gênero.