Por Que Uma Edição Crítica Dos Romances Oswaldianos?

Ainda não escrevi o melhor. Não me contento plenamente com o que faço. Daí as minhas hesitações e demoras em publicar. E o nosso meio é bem pouco estimulante: ao contrário, age como desanimante. Oswald de Andrade. Gazeta Magazine. 21 set. 1941.

Mesmo depois de decorridos 70 anos de publicado, o romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) perturba em virtude da sua modernidade. É modelo de prosa revolucionária pouco conhecida pelo grande público. Certamente Oswald de Andrade inaugurou no Brasil a prosa de Vanguarda ensinando aos seus contemporâneos como adaptar à narrativa as experiências cubistas, bem-sucedidas na pintura moderna de Picasso e Braque; prefaciando os novos lançamentos da época, apoiou as tentativas de continuar a renovação da ficção brasileira: apresentou, com a "Carta Oceano" (1926), o Pathé Baby de António de Alcântara Machado à moderna literatura da época. O percurso de modernização da prosa brasileira configurou-se por etapas, com tenacidade e pesquisa artesanal séria, embora se afirme, equivocadamente, que a obra de Oswald foi conseqüência apenas da genialidade de improvisação. Na realidade, Oswald levava muito tempo para considerar seus textos maduros, para divulgação. As modificações radicais que sofriam seus projetos resultaram da angustiante e bem-sucedida busca de um ideário autêntico e moderno. Rubens Borba de Moraes lembrava que as inovações concretizadas nos dois primeiros decênios do século modificaram radicalmente a percepção estética. Sendo assim, o homem não tem mais cinco sentidos, tem centenas, milhares. A velocidade da vida moderna obriga o artista a realizar depressa o que ele sentiu depressa, antes da inteligência intervir. Desse estado de coisas nasceu a sintetização da arte moderna.

O autor de Domingo dos Séculos assinalou um fato curioso e que foi ao mesmo tempo uma das grandes peculiaridades do processo construtivo da narrativa miramarina. No romance de Oswald de Andrade, além da sintetização quase que extrema da simultânea multiplicidade de acontecimentos, aconteceram momentos de análise contundente e minuciosa. Um perfeito retrato da burguesia e seus conflitos perante a modernidade que invadia seu pequeno mundo. Miramar foi planejado e redigido em parte por volta de 1915, reescrito várias vezes até atingir a forma sincopada e concisa da sua versão final. Muitas foram as redações não depuradas dos ornamentos supérfluos. Oswald costumava ler seus trabalhos para os amigos bem antes do lançamento, ou pelo menos antes da redação final. Algumas referências esparsas dão conta da trajetória desse romance. Ribeiro Couto (em carta datada de 21 de maio de 1920) pedia notícias de Miramar e de A estrela de absinto; Sérgio Buarque, em O Mundo Literário (9 de janeiro de 1923), anunciava o segundo e o terceiro volumes dA trilogia do exílio e as Memórias de João Miramar. Os diferentes desmontes que sofreu o romance confirmam a prática de um projeto consciente voltado para a pesquisa incessante de um estilo próprio e atual: um interesse novo para tornar a frase diversão pura do espírito. Como definia o romancista: "chapas fotograficamente batidas de estados de espírito e de ação", onde domina o "divertimento estilístico que procura a poesia e realiza o ritmo". Foram diversificados os procedimentos empregados nessa incansável busca da forma adequada deste divertimento estilístico, até alcançar a modernidade. Acredito que somente A revolução melancólica (do Marco Zero) foi redigida em tempo recorde para poder participar do II Concurso Literário Latino-americano, embora, fundamentada em trabalho de pesquisa prévio e demorado Oswald declarava em entrevista (Diário de S.Paulo, 8 jan.1943):

Em dois meses redigi 364 páginas dA revolução melancólica. Mais tarde o romancista explicava o processo de construção desse livro: (...) fiz uma obra de trabalho sereno. Isso me custou muito esforço e paciência"; "Há nele um fabuloso material colhido entre os vários dialetos e línguas que se falam neste tumultuoso aglomerado de raças e de povos tão diferentes que é São Paulo. Colhi material em todos os setores. Não fiquei no Brás, nem no Bexiga.

(O romance terminou abiscoitando o prêmio do concurso, juntamente com Terras do sem fim de Jorge Amado.) Miramar pediu auxílio à linguagem do cinema para criticar de forma precisa e bem-humorada o mundo provinciano e medíocre da pequena burguesia. São sobejamente conhecidos, depois sobretudo das análises de Antonio Cândido, Mário da Silva Brito e da publicação das suas Memórias, os lances autobiográficos desta narrativa crítica. A permanência de Oswald na Europa, em 1912, mudou drasticamente a sua visão de mundo:

Tinha-se aberto um novo front em minha vida (...) A Europa fora sempre para mim uma fascinação (...) Tudo isso vinha confirmar a idéia de liberdade sexual que doirava o meu sonho de viagem longe de pátria estreita e mesquinha, daquele ambiente doméstico, onde tudo era pecado (...) Apenas tinha uma nova dimensão na alma - conhecera a liberdade (Um homem sem profissão. R.J. Civ.Brasileira. 1972).

Os primeiros esboços como bem mostrou Haroldo de Campos ("Estilística miramarina") não tiveram o mesmo grau de ruptura e inovação da versão definitiva. A radicalidade da experimentação da atualidade da prosa miramarina impuseram-se na medida em que o mundo se transformava e com isso mudava a maneira de seu irrequieto autor enxergar as coisas. Oswald pretendia um ritmo mais dinâmico, a fim de aproximar a ordem simultaneísta da técnica do cinema, imprimida antes de maneira comedida em Os Condenados. Acreditava que a obra de arte era a forma encontrada pelo artista com o intuito de fixar a matéria presente em toda parte e desta forma devia estar em consonância com seu tempo e seu ambiente. Do caráter fragmentário, solto, caótico da narrativa miramarina surgiu também a noção de que o romance devia ser uma resposta à abrupta transformação por que passava a civilização ocidental. Apesar de todo aprendizado, o grande impulso à modernização do texto conhecido deste romance foi dado graças à sua permanência, durante o ano de 1923, em Paris. A amizade com Blaise Cendrars facilitou o contato do casal Tarsiwald (apelido carinhoso de Mário de Andrade para Oswald e Tarsila) com as manifestações mais atuais da arte francesa. Em Paris redigiu a versão final do romance, conforme depoimento de Tarsila a Araci Amaral. A novidade da narrativa desconcertou inclusive seus companheiros de luta modernista, até mesmo os mais combatentes. Carlos Drummond de Andrade descreveu a repercussão do livro entre os intelectuais mineiros:

(...) aqui chegaram as Memórias que derreteram a boa ingenuidade mineira em ohs! mais ou menos copiados do dr.Pilatos (...) E o seu livro - permita-me que decalque o nosso Mário de Andrade - é uma cilada. (carta a Oswald 3 jan.1925)

Mas o grande poeta mineiro não escondeu seu entusiasmo:

(...) admirável, é mesmo o único livro de prosa verdadeiramente moderno que até hoje o Brasil produziu.

Os realizadores da revista Estética - Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque - se queixaram da falta de articulação da narrativa, lamentando a dificuldade para classificar o livro: "gênero indeterminado", "esquema ligeiro e pitoresco". Apesar dos elogios, as mesmas ponderações no que diz respeito ao "erro brasileiro", feitas primeiro por Mário e depois por Drummond:

Ninguém fala o brasileiro de Miramar. Sua construção de um raro poder expressivo é personalíssima. De artista. Portanto de exceção.

Mário já havia observado "uma dicção eminentemente artística e personalíssima"; Emílio Moura fez coro e sentenciou ser o romancista nervoso "cheio de vida na sua técnica pessoal". Todavia, foi este poeta mineiro que em A Revista (jul.1925) fez a resenha mais severa. Suas impressões sobre o recém-lançado romance ainda estavam sob o impacto das incontáveis leituras que deve ter feito do último livro de poemas do Mário:

Miramar, como toda a literatura recente do Oswald de Andrade, lembremo-lo em tempo, não vai além de uma tentativa (...) Ele podia colocar, naquele prefácio de Machado Penumbra a sinceridade da Paulicéia Desvairada.

Apesar de todas as restrições dos modernistas, Mário de Andrade foi quem mais se entusiasmou com o Miramar. Na sua costumeira correspondência com Sérgio Milliet anunciava: "Memórias Sentimentais publicadas. É uma delícia" (Carta de 11.08.1924). Plínio Salgado, outro modernista de primeira hora, mais tarde ovelha desgarrada, considerou a forma da narrativa intransigente, intempestiva, ilógica e contraditória. Fez várias ressalvas à realização do romance, mesmo assim admitiu ter encontrado neste livro um grande repertório de orientação e sugestão. E não resta a menor dúvida, o estilo desta narrativa serviu de modelo para o autor de O estrangeiro. Aliás, Miramar fez escola, como bem demonstrou na época do lançamento a resenha de Prudente de Moraes, neto, na Revista do Brasil (30 out. 1926):

Há trechos e trechos de verdadeiros pastiches do autor de Pau brasil. Desde a forma fragmentária até os menores cacoetes (...) a escolha das imagens, o ritmo da frase (...).

Às críticas a esta manipulação desordenada da língua nas suas obras modernistas, Oswald de Andrade respondia:

(...) nossas aparentes impropriedades, nossos possíveis exageros (de que abertamente nos orgulhamos) são voluntários e tendem Paulistano à fixação e instalação de tesouros populares que vem vibrantemente enriquecer o estilo e a língua que falamos (Trecho do comentário de Oswald sobre a polêmica travada no Correio Paulistano entre o arquiteto G.Warchavichic e o engenheiro Dácio de Moraes.)

Ao que parece, a história de Serafim é muito semelhante àquela do Miramar. Oswald de Andrade, depois de escrever o Serafim Ponte Grande entre 1923 e 1926, foi pacientemente condensando e burilando o texto até alcançar a versão definitiva. Dez anos antes do seu lançamento, anunciava em carta ao seu amigo Blaise Cendrars: "Mon roman Serafim Ponte Grande vá être imprimé". Um ano antes, portanto, do lançamento do Miramar. Teria mesmo Oswald, naquela época, concluído o Serafim? Mário de Andrade, escrevendo para Tarsila em Paris (dezembro de 1924), acabou com todas as dúvidas sobre a data de elaboração do Serafim. Mário perguntava a amiga sobre o Oswald:

Que faz ele? Mostrou-te o Serafim Ponte Grande? Ficou (o Oswald) meio corcundo comigo porque eu disse que não gostei.

Em vários artigos de jornais e entrevistas Oswald comentou sobre o livro em preparo:

O meu espírito banha-se numa piscina, inunda-se de repouso e de alegria, quando, por exemplo, chego com um dos personagens prediletos - Serafim Ponte Grande, o burocrata transfigurado - à conclusão urbanista de que "O Largo da Sé" é o ponto de junção das ruas Direita e 15 de Novembro.

Ao crítico Tristão de Athayde (carta publicada em O Jornal), observava:

Deixo ao meu compatriota Serafim Ponte Grande o prazer de lambuzar o cérebro no "tanglefoot" do Harry e a vanglória de cear com as estrelas verticais de Hollywood, na casa da mulata Florence, onde aliás vou por causa da lingüiça com melado.

Ambos os textos (a entrevista e a carta) datam de 1925, o que indica que a esta altura muita gente tinha tomado conhecimento do seu "grande não livro". Como ocorreu com o romance anterior, Serafim foi lido para os amigos, ainda em 1924, Mário deu suas impressões a Sérgio Milliet:

Muito fraco. Muitíssimo inferior às Memórias Sentimentais (Carta de 1924).

E Mário não possuia um exemplar do Serafim na sua biblioteca que hoje está na USP. Será que mesmo brigado com Oswald, não teve interesse em ler o livro ou possuí-lo, uma vez que era também um colecionador? Oswald projetava um romance e o construía aos poucos, embora como acostumava acontecer, já tivesse título e dedicatória (modificada a medida em que as relações com as pessoas homenageadas sofriam abalos). Para o Serafim, a Revista do Brasil (30 nov. 1926) informou sobre um longo prefácio dedicado à sua geração e que de certa forma se constituía numa espécie de profissão de fé modernista, com uma detalhada justificativa em forma de dedicatória a D. Olívia Guedes Penteado, homenagem pelo seu apoio e incentivo à arte moderna no Brasil. A revista Terra Roxa e Outras Terras (17 set. 1925) publicou um fragmento do romance: "Do Meridiano de Greenwich". Comparados os dois textos, o da revista paulista e o de 1933, é surpreendente o progresso do escritor na conquista de um estilo próprio e moderno. Essa discrepância entre os textos evidencia mais uma vez que a modernidade oswaldiana não brotou de relance foi o resultado de um longo processo de aprendizado. É também evidente que este romance foi amadurecendo simultaneamente à proposta da antropofagia. Aliás, as ligações entre os dois projetos são muito claras. Embora a Revista de Antropofagia tenha sido uma produção de grupo e de realização posterior, salta à vista a marca oswaldiana na experimentação da linguagem, apresentando a mesma quebra dos padrões estéticos praticados primeiramente em Miramar e depois em Serafim. Os parentescos entre a ficção oswaldiana e a revista são incontáveis. O emprego da colagem e da paródia tem nesses dois romances e na citada revista o mesmo aspecto zombeteiro e derrisivo; o dicionário de nomes que compõe o capítulo do livro. "No elemento sedativo" e a seção Brasiliana (da primeira fase da revista) são montados dentro do mesmo espírito de colecionar tolices e asneiras que espelhavam de certa forma facetas do ideário nacional (aliás a revista Terra Roxa e Outras Terras manteve também uma seção com o objetivo de reunir as "Manifestações espontâneas de Pau Brasil"); um desfile de alusões dessacralizadoras a fatos literários e a autores consagrados tanto no livro como na revista; glosa do fluxo normal da narrativa no Miramar e no Serafim, bem como da linguagem usual da revista. No espaço de tempo que vai de 1923 até a data da publicação (1933), Serafim ganhou diferentes montagens. Os longos intervalos entre a primeira versão da obra e a data de publicação são sintomáticos de uma metodologia cuidadosa e de um exaustivo trabalho de artesão. Anunciam, antes de mais nada, a paciente e laboriosa tentativa do romancista em aperfeiçoar o seu estilo, transformando-o no retrato das suas idéias estéticas do momento e das suas observações a respeito do desenvolvimento da narrativa moderna. É espantosa a consciência do escritor em torno da importância e do alcance do seu trabalho. Sabia que estava subvertendo os padrões da ficção tradicional, ou pelo menos que estava fazendo algo de novo em relação aquilo que havia no gênero. Várias versões foram concebidas no período de 1923 a 1933. Muitos capítulos apresentaram radical transformação, como no caso da narrativa que tomou a forma de poema. As versões não datadas podem ser classificadas comparando-se a estrutura e as alterações entre as diferentes redações e o texto final. Neste confronto e na classificação preliminar pretende-se considerar as modificações acontecidas tanto na macro como na micro-estrutura do texto. Com vistas à uma edição crítica vai-se determinar as montagens pelas quais passaram os romances ao longo de seu processo de concepção, até alcançar o estágio final; como foi constituído cada capítulo e quais as modificações no processo narrativo dos pequenos quadros. A tarefa de realizar a edição crítica de Serafim é uma atividade complexa e exaustiva que demanda tempo. Implica uma série de iniciativas de ordem intelectual que complementam o trabalho de preparação propriamente dita do documento. Refiro-me ao processo de conhecimento aprofundado da escritura serafiniana, de familiarização com particularidades estilisticas, e com o projeto de concepção da obra - sua estrutura, personagens, etc. Some-se ainda toda a fundamentação teórica em torno da crítica textual que vem sendo adquirida simultaneamente e será comentada adiante. Para enfrentar os desafios de interpretação que a prosa oswaldiana sempre oferece - pelo seu caráter radical de experimentação e por seus lances autobiográficos -, na minha atividade docente tenho ministrado cursos quer sobre o modernismo de modo geral, quer sobre tópicos específicos da narrativa contemporânea. Por exemplo, trabalhei com ficção/autobiografia, tomando como modelos textos brasileiros modernos com forte marca de autobiografias ficcionalizadas. Garimpamos e começamos a leitura da bibliografia teórica sobre o assunto, por sinal um campo em largo desenvolvimento nos ultimos tempos. Esta experiência do curso mostrou-se particularmente interessante no que diz respeito à confirmação da interferência dos romances Miramar e Serafim na formação da moderna narrativa nacional. Fato que já havia comentado em alguns artigos mais explicitamente num texto sobre a assimilação do projeto "pau brasil" por parte dos nossos poetas modernistas, mesmo a contragosto (cf. "O projeto Pau brasil: nacionalismo e inventividade". Remate de Males. Campinas, DTL-UNICAMP, 1986. p. 45-52.). Tomando aqui apenas como parâmetro o João Ternura, lido pelos alunos pela primeira vez e após terem conhecido os dois romances de Oswald, ficou fácil para eles estabelecerem a linha da construção deste tipo de narrativa. No tocante ao Serafim Ponte Grande, rastreamos os trechos publicados separadamente em jornais e revistas da época e efetuamos a análise comparativa com a versão publicada em livro. Estamos repetindo o mesmo método em relação às redações manuscritas. Mesmo no início do nosso trabalho confirma-se a idéia que se tinha de negligência na impressão da obra oswaldiana tanto pela Civilização Brasileira como pela Editora Globo. Aliás, para os textos conhecidos a Globo não se mobilizou no sentido de rever o trabalho da editora anterior, simplesmente reproduziu o que estava descuidadosamente impresso. O trabalho de crítica textual, mesmo sem se considerar todo o aparato de uma edição crítica (notas e comentários, por exemplo), mostra o caminho adequado para se montar um texto fidedigno e correto.