APRESENTAÇÃO

Este livro procurou analisar um aspecto específico de uma das correntes mais atuantes no Modernismo brasileiro: a programática da Antropofagia, através dos textos teóricos de seus líderes e, em particular, das páginas da Revista de Antropofagia. Privilegiou-se o procedimento adorado pelos antropófagos para transmitir o seu projeto, sobretudo a linguagem. Não se pensou em aplicar ou seguir à risca um método teórico na análise do pensamento antropofágico. O objetivo era reler as páginas da RA (RA: abreviatura usada para Revista de Antropofagia), selecionando textos que constituíssem um esboço das idéias teóricas do grupo, e, a partir daí, estudar os dois recursos de linguagem mais característicos: a colagem e a paródia.

No capítulo "A Vanguarda histórica" foram reunidos e comentados ensaios publicados dispersamente em periódicos estrangeiros. Estes textos são tentativas de definição e análise da Vanguarda literária e poderão auxiliar bastante o pesquisador brasileiro, fornecendo-lhe parâmetros teórico-metodológicos. A confrontação de métodos e técnicas de trabalho aplicada às análises das revistas estrangeiras proporcionou novos subsídios para o estudo de um periódico literário. De modo geral, as teorias a respeito da Vanguarda interessaram na medida em que se constatou a semelhança entre a posição das várias correntes européias e a Antropofagia. Ficou evidente a importância da Vanguarda brasileira pela maneira de apresentar e discutir os problemas nacionais, chamando atenção para um novo modo de vida, para novos instrumentos literários e artísticos. Esta coincidência com a Vanguarda de fora foí mais bem explicitada na análise da Revista de Antropofagia.

Em outro capítulo, estudou-se o processo de montagem no discurso da Antropofagia: uma verdadeira bricolage construída com elementos da tradição cultural brasileira e européia, em especial da Vanguarda histórica. Em seguida, analisou-se na revista o procedimento paródico enquanto instrumental crítico, resultado de um processo de descolonização, de uma tentativa de rebelião contra a simples cópia dos modismos vindos de fora. Nesta análise, ensaiaram-se comparações entre as atitudes do grupo brasileiro e as posições da Vanguarda histórica, sem adorar rigorosamente uma abordagem comparatista. Ao se tentar empreender uma análise detalhada do material brasileiro, apesar dos paralelos realizados, preferiu-se deixar um espaço aberto, para que sobressaia antes de tudo a sua peculiaridade. O objetivo foi ressaltar que, embora apoderando-se das conquistas e inovações da Vanguarda européia no âmbito da linguagem, o grupo brasileiro tratou de problemas pertinentes à sua realidade. É inoportuno (e nunca é demais repetir) levantar a questão da mimetização quando a Antropofagia maneja material alheio de forma diferente, inovadora: a colagem, por exemplo, trouxe a discussão da dizimarão do índio, do racismo, da marginalizarão da mulher na sociedade. Problemas locais e palpitantes discutidos com as técnicas mais avançadas do momento, próprias de uma literatura de Vanguarda.

No rastreamento da fortuna crítica, tentou-se reunir e analisar, de um lado, o material recente e ainda disperso sobre a Antropofagia, e, de outro, a reflexão crítica dos participantes do movimento, grande parte inédita ou difusa nos periódicos e suplementos literários 2. Este levantamento geral propiciou um panorama exclusivo da fortuna crítica da "barulhenta" Antropofagia. Nesta seleção arrolaram-se os textos críticos e teóricos, que foram organizados em dois grupos: primeiro, aqueles do período de 1928-29 e os mais recentes, de autoria dos participantes ativos e colaboradores da Revista de Antropofagia; segundo, os mais atuais, de autores não ligados ao grupo. No primeiro conjunto não se separou, propositadamente, o material da época daquele mais recente. A bibliografia da década de 20 sobre o assunto não é muito rica. As reflexões posteriores, de modo geral, não perdem a carga emocional que marcou os primeiros textos é os depoimentos. Da mesma forma procedeu-se em relação à bibliografia de debate. Apenas um texto documentou a repercussão da Antropofagia na crítica literária da época: "Neo-indianismo", de Tristão de Athayde 3. Foi muito mais tarde, nas décadas de 50-60, que os críticos voltaram a pensar sobre a movimentação antropofágica.

No Apêndice, esta a este estudo o "Índice Geral" 4 da Revista de Antropofagia, que corresponde a uma sinopse classificada de todo o material, realizada com dois objetivos: primeiro, atear com fonte primária para o leitor que não dispõe de um exemplar do periódico à mão; segundo, sugerir uma das metodologias possíveis na leitura de uma revista literária. Lutou-se, na medida do possível, para contornar as dificuldades decorrentes da diferença que separa as duas etapas da RA. Perseguiu-se, antes de tudo, uma classificação que pudesse dar unidade ao "Índice Geral" e adaptar a metodologia de elaboração dos índices às características da RA, inovadoras - da ponto de vista da sua estrutura se comparadas com as de outras revistas congêneres do Modernismo brasileiro. Sempre que se fez referência a um texto da revista, recorreu-se à classificação do "Índice Geral". Ainda no Apêndice, transcreveu-se a entrevista realizada em abril de 1977 com o escritor Geraldo Ferraz, secretário da segunda fase do periódico. Trata-se do depoimento de um dos escritores que presenciaram o desenrolar de um período mercante na história do Modernismo. Nessa transcrição, procurou-se obedecer à linguagem informal que marcou o "bate-papo".

Falta ainda esclarecer dois problemas: os conceitos de movimento e de grupo utilizados 5 e a questão das influências dos ismos europeus. Em relação ao primeiro, considerando que a função do grupo varia de acordo com o contexto social, a organização da Antropofagia diferiu radicalmente daquela adorada pelo Futurismo: semelhante à sistemática de um partido político ou de uma empresa 6. Enquanto o Futurismo lançava mão de todos os meios de comunicação e persuasão para ampliar o seu público, a Antropofagia funcionava precariamente numa página de jornal, zombando de toda a tentativa de organização (açougueiro em vez de secretário ou redator, dentição por fase ou período etc.). É constrangedor comparar-se a frágil estruturação do agrupamento antropofágico aos bem planejados recitais Dadá e surrealistas 7. Haja vista a bem montada organização das produções dadaístas urdida nos mínimos detalhes. Ao pensar na difusão da revista Dada 3, por exemplo, Tzara elaborou duas edições: uma comum a 1,50 F e outra de luxo a 20 F, visando aos bibliófilos (com duas gravuras originais de Janco e uma gravação em madeira de H. Arp). Mandou imprimir papel oficial do movimento, colar panfletos coloridos nos muros. Em relação ao termo movimento, existe quase que um consenso, quando a crítica o emprega para definir fenômenos culturais de caráter geral: Romantismo, Realismo, Modernismo etc. Todavia, é uma palavra aplicada também para manifestações de âmbito mais reduzido, como é o caso específico da Antropofagia. Na crítica romântica, movimento era considerado um fenômeno que se estendia a toda esfera da vida cultural e civil. Atualmente, usa-se o termo para designar um agrupamento literário 9.

Quanto ao segundo problema - a questão das influências dos ismos europeus -, é evidente que o movimento futurista pioneiramente conquistou e recolocou em uso diversos recursos e procedimentos artístico-literários, manipulados pelas demais manifestações da Vanguarda. Muitos historiadores já empreenderam a tarefa de esmiuçar os pontos em que o Futurismo avançou em relação a outras movimentos 10. Ao que parece, o movimento italiano mexeu em quase tudo aquilo que as outras vanguardas propuseram de forma mais radical, como foi o caso do Dadaísmo (a desorganização das formas estéticas estabelecidos) e do Surrealismo (o passo à frente da estrutura automática, confrontada com as palavras em liberdade e a imaginação sem fio de Marinetti). As eventuais analogias esboçados neste trabalho enfatizaram a contribuição do Dadá e do Surrealismo à renovação estética, acontecido no Brasil depois do Modernismo. Dois foram os motivos: primeiro, o Dadaísmo e o Surrealismo ampliaram as. propostas futuristas, transformando-as; segundo, maior proximidade cronológica entre esses dois grupos e a Antropofagia. Mas não se perdeu de vista o pioneirismo do Futurismo, nem a sua dimensão abrangente. Também não se descartou a possibilidade de que os eventuais empréstimos e inspirações da Antropofagia tenham advindo dos movimentos franceses, ainda por duas razões. A primeira por preconceito político: no auge da atuação da Vanguarda brasileira, as colorações fascistas marcavam o movimento italiano, contribuindo para que fosse esquecida a grande revolução estético-literária futurista das duas primeiras décadas do século; outro motivo é que, na década de 20, os brasileiros mantiveram um contato mais estreito com os artistas franceses.

A pesquisa (originalmente apresentada como Tese de Doutoramento, USP, 1980) foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São. Paulo (FAPESP), pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e realizada nas seguintes instituições: Instituto de Estudos Brasileiros da USP (São Paulo), Instituto de Filologia Moderna da Universidade de Nápoles (Itália), Universidade de Bochum (Alemanha), Universidade de Bristol (Inglaterra), Biblioteca Nacional (França), Biblioteca Literária Jacques Doucet (França). A autora expressa seus agradecimentos a seu orientador (Prof. Dr. José Aderaldo Castello), à banca examinadora da Tese e a todas as pessoas que contribuíram para a concretização deste trabalho ou para que o texto final se transformasse em livro.

São Paulo, setembro de 1980.

Notas:

2 Pesquisa realizada nos Acervos Oswald de Andrade e Mário de Andrade, no IEB-USP.
3 ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo. O Jornal. Rio de Janeiro, xerox s. n. t. Recorte. Acervo Mário de Andrade, IEB-USP.

4. A sua elaboração obedeceu aos parâmetros usados na técnica de fichamento dos periódicos literários, idealizada pelo Prof. José Aderaldo Castello (ver exposição de método e técnica de pesquisa em NAPOLI, Rosélia 0. de. Lanterna verde. São Paulo, IEB-USP, 1970) e sofreu as adaptações necessárias, impostas pela estrutura da revista.
5. Consultar, a propósito da discussão do papel dos grupos nos movimentos de renovação: ATHAYDE, Tristão de. Gente de amanhã. O Jornal. Rio de Janeiro, 22 jan. 1928 e Piscopo, Ugo. Signification et fonction du groupe dans le Futurisme. Europe. Paris, 551, 31 mars 1975.
6. Viazzi, Glauco. Il futurismo come organizzazione técnica e strumenti di gruppo. ES. Napoli, 5: 36-60, set./dic. 1976.
7. A pesquisa sobre Vanguarda européia foi realizada nas seguintes instituições: Biblioteca Literária Jacques Doucet, Paris; Biblioteca do Arsenal, Paris; Biblioteca Nacional, Paris; Biblioteca do Instituto Cultural Italiano, Paris; Biblioteca do Instituto de Filosofia Moderna da Universidade de Nápoles (Itália); Biblioteca Central da Universidade de Bochum (Alemanha). Foi possível consultar na Biblioteca Jacques Doucet (Paris) convites, prospectos-programas, cartazes-propagandas das reuniões promovidas pelo Dadá e pelo Surrealismo.
8. ANTONIO CANDIDO & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. São Paulo, Difel, 1964. v. 3.
9. POGGIOLI, Renato. Teoria dell'arte d'avanguárdia. Milano, Mulino, 1962.
10. BLUMENKRANZ-ONIMUS, Nöemi. Du futurismo italien aux mouvements dada e surréaliste; Ia survivance des manifestes futuristas. Europe. Paris, 4751476: 206-16, 1978.