Do capítulo A vida em mi bemol (1890 - 1919)

 

Origem fidalga

Na infância fomos o sol da constelação familiar. Tínhamos todas as beatitudes da vida sorrindo, garantidas pela vigilância materna, pelo apoio paterno, pelo abraço familiar [...] 1

Na metade do dia 11 de janeiro de 1990 nasceu em São Paulo na rua Barão de Itapetininga com a atual D. José de Barros, antiga 11 de junho, o futuro escritor Oswald de Andrade, no mesmo ano do nascimento de outro poeta paulistano, Guilherme de Almeida. Veio ao mundo justamente no início de uma década modelo de dinamismo, de criatividade, de energia em todos os setores do conhecimento humano. Foi registrado como José Oswald de Sousa Andrade. José em homenagem ao avô paterno o fazendeiro mineiro José Hipólito de Andrade casado com D. Antonia Eugenia e ao tio materno José Inglês de Sousa; Oswald por causa do pai José Oswald Nogueira de Andrade. A mãe Ignês Henriqueta de Sousa Andrade descendia de uma tradicional família burguesa, cujo tronco se ramificou na planície amazônica - no porto de Óbidos. Descendiam dos Sousa de Marzagão, os fundadores do Pará. Essa origem nobre era apreciada e alardeada por Oswald, grande admirador do modus vivendis da fidalguia. O desembargador Marcos Antônio de Sousa, dono de muitas terras em São Paulo, preocupado com o destino da filha caçula, arranjou-lhe um casamento com seu dinâmico corretor José Oswald Nogueira de Andrade. Antes D. Ignês teve de sofrer um processo trabalhoso de anulação do primeiro casamento mal sucedido. Dos cinco tios maternos de Oswald apenas o tio José, por desavenças familiares, ficou distante. Os demais Carlota (casada com o Des. Domingos Alves Ribeiro, pai do escritor anarquista Ribeiro Filho), Herculano Inglês (jurista e escritor famoso), Chico e o cacula Marcos Dolzani eram muito próximos da família Andrade. Sobretudo tio Chico e a tia Carlota. Pelo lado paterno Oswald era o sexto neto do bandeirante paulista José Tomé Rodrigues Nogueira do O´, fundador de Baependi, aparecendo na genealogia de Silva Leme. Em menino suas ausências de São Paulo limitaram-se a pequenas excursões com a família no Guarujá, férias na mineira estância hidro-mineral de Lambary (regularmente hóspedes do Hotel Mello e visita às terras do pai em Baependi. Depois da morte de D. Ignês os Andrade elegeram São Vicente como estação de veraneio, alugando casa na rua da Praia n. 23 ou na rua 16, n. 56. Em 1910 com 20 anos ensaiou os primeiros passos sem a companhia dos pais. Conheceu o Rio de Janeiro, a passeio na casa do tio Inglês e presenciou a revolta da armada chefiada pelo marinheiro João Cândido. Em outra escapulida a Santos, o acaso fez com que perdesse o transporte para São Paulo, obrigando-o a passar o primeiro Natal longe dos pais; com pouco dinheiro pernoitou numa hospedaria de carroceiros das docas, deixando-os aflitos. Até os 10 anos de idade aproximadamente, estudou sob a tutela de professores particulares. Em 1900 a família mudou-se para o alto da Ladeira Santo Antônio n. 86, esquina com a rua João Adolfo e Oswald passou a estudar na Escola Caetano de Campos, num prédio muito mais imponente sem o último andar construído posteriromente. A mãe assustou-se com a falta de orientação religiosa da escola e no ano seguinte matriculou o filho no Ginásio N. Sra. do Carmo. Nesta escola Oswald conheceu Pedro Rodrigues de Almeida, o João de Barros um dos componentes do álbum-memória Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo... , de quem se tornou amigo constante nos anos 10s. Dois anos depois (1905) o meninão de calças curtas também conhecido por Pipa transferiu-se para o Ginásio São Bento, onde o esperava outro grande amigo, o futuro poeta Guilherme de Almeida. Precocemente foi recebido na roda literária do boêmio Indalécio Aguiar da qual fazia parte também o poeta Ricardo Gonçalves. Os dois introduziram-no à obra de Eça de Queirós, cujos livros eram devorados com empatia, até os 20 anos ofereciam ao jovem dois ingredientes básicos para seu futuro trabalho de escritor : a ironia e o lirismo. Da ironia do Eça passou à sátira "mais robusta e sanguínea" do Fialho de Almeida, em seguida a Nietzsche e Dostoievski. Sem falar no francês Anatole France, Octave Mirbeau e no admiradíssimo Romain Rolland. Desde então entusiasmou-se pelo jornalismo e pela literatura. Cursando o São Bento - leitor atento de Victor Hugo e Julio Verne, encontrou nos elogios do professor Gervásio de Araújo em torno das redações que fazia um incentivo oportuno para as pretensões literárias do inquieto adolescente. Concluído o curso no São Bento, obrigado pela mãe ingressou na Faculdade de Direito para se tornar um profissional liberal a exemplo do tio Inglês de Sousa. Meio a contragosto, fez o curso no período mais dilatado possível (nove anos) e não fosse a ajuda do amigo Jairo Goes, funcionário da Faculdade, socorrendo-lhe nas costumeiras matrículas e cancelamentos, teria perdido a chance de formar-se em 1919. Mas não ficou com boas lembranças desse tempo que o marcou fortemente. Recordava sexagenário: Já na escola os deveres eram odiosos para mim. O som mesmo da palavra "dever" sempre me inspirou horror e desgosto. O fútil, ao contrário, os prazeres transitórios, a vertigem, as voluptuosidade de curta duração, as poesias revoltadas e grandiloqüentes, as narrativas de viagens reais e imaginárias e tudo que nossos professores em moral apelavam em "vão", nossos professores em teologia as "res fontes do mal" (prazer dos olhos, prazer da carne, variedades da vida) me atraíram irresistivelmente. Assim desde o berço, eu tenho negligenciado meus "deveres" para me entregar as três fontes do mal. Entre eles os prazeres da vida dominavam. "Ver" era minha preocupação primeira. Em 19l2, antes de viajar para Europa trancou a matrícula, retornando à Faculdade apenas em 1916. D. Ignês já havia morrido, mas Oswald não esqueceu a promessa feita a mãe. Nos últimos anos do curso, sentiu-se mais interessado pela Faculdade. Incentivava-o a participação dos estudantes na vida cultural da cidade. Resolveu então integrar-se nesta corrente de civismo. Antes, em 1915, ajudara a organizar o almoço homenagem a Bilac, promovido pelos estudantes de Direito, no conhecido restaurante Progredior. Escolhido orador oficial da turma, na solenidade de formatura, fez um discurso eloqüente de exaltação ao papel da escola na manutenção dos princípios democráticos do país. Paralelo ao curso de Direito, Oswald começou a trabalhar desde cedo como jornalista ainda em 1909. Exerceu o jornalismo durante toda a sua vida com intervalos breves apenas na década de 20, quando a vida de próspero empresário e de escritor famoso lhe ocupava todo o tempo. Essa era uma tarefa a que se entregava com prazer. Estreou como crítico teatral assinando a coluna Teatro e Salões no Diário Popular. Em 1911, era um jornalista conhecido e de prestígio. O escritor Domingos Ribeiro Filho, enteado da tia Carlota, em carta de 26 de dezembro de 1912, apelou para o prestígio da "nova posição no jornalismo e na sociedade" de Oswald no sentido de auxiliar os irmãos Timóteo da Costa, artistas plásticos, que planejavam expor em São Paulo. Este prestígio abriu-lhe as portas das reuniões culturais na Vila Kyrial, comandada pelo poeta Jacques D´Avray. Numa delas conheceu o pintor Lasar Segall, expondo pela primeira vez no Brasil obras expressionistas. Em 1915 o sucesso no jornalismo transformou Oswald membro da prestigiosa Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, um grêmio literário com sede no Ri de Janeiro, na rua Gonçalves Dias, nº 30, destinado a fomentar debates em torno de problemas de ordem intelectual, com filial em São Paulo criada por Olavo Bilac. A revista O Pirralho criação sua teve boa aceitação e ajudou a divulgar o nome do jornalista. O colunismo social, exercido no Jornal do Comércio, a convite de Valente Filho, em 1916, deu-lhe muita fama. Nesse mesmo ano, por indicação de Mario Guastini, tornou-se redator do Jornal do Comércio, seção de São Paulo, com redação instalada à rua Direita nº 20. Trabalhou em A Gazeta por um curto período, em 1918, cedendo lugar ao amigo Leo Vaz, desempregado.

 

SEU ANDRADE

A grande paixão de Oswald por D. Inês ofuscou um pouco a figura do Sr. Andrade e o relacionamento com o filho romanceado em Sob as ordens de mamãe. Mineiro de Baependi, Jose Oswald Nogueira de Andrade, parecia um homem sisudo, de princípios morais rígidos e muito religioso. De uma familia de fazendeiros arruinados veio para Sao Paulo tentar a sorte. Incansável batalhador aumentou consideravelmente a farta herança de terrenos do sogro - Des. Marcos Antonio Rodrigues d Souza - para quem trabalhara como corretor. A fortuna de Oswald advém dessa herança que sua mãe recebera depois da morte do pai e da sorte de viver numa São Paulo em espantosa explosão imobiliária. Apesar da austeridade de comportamento Sr. Andrade à sua maneira mostrava-se carinhoso e muito preocupado com o filho. As cartas enviadas à Europa em 1912 são o retrato de um pai devotado e cuidadoso. Escrevia ao filho aconselhando-o a não poupar dinheiro consigo: alimentar-se, vestir-se bem, aproveitar a viagem e desfrutar com calma do passeio. Insistia em 17 abril: "trate de aproveitar Paris, trate de passear e aproveitar". Não se cansava em recomendar: "Disse pessoa muito conhecedora da Europa que tudo o melhor é Paris. Por conseguinte, goza de Paris. Visita os museus e tudo quanto há de notável ai". Chamava a atenção a propósito das impertinências e ingenuidades de Oswald: "Pelas suas cartas se vê que você não tem feito a vida que te instrua e faça conhecer os homens e as coisas" (25 abril). Na mesma ocasião, comentando um incidente do filho com um colega recriminou Oswald: "Sirva-te de lição. Faça como eu que não tenho particularidades de sentimentos com ninguém. Não tenho amigos e nem inimigos, amo ao próximo como a mim mesmo, estando pronto a servir ou me desviar de quem quer que seja. Que te aproveite a lição". (Carta de 5 de maio). Antes Sr. Andrade avisara ao filho: "Neste mundo não há amigos e não te iludas mais..." Defensor de princípios morais de conduta muito rígidos, queria talhar o filho a sua maneira. A propósito da morte de um cunhado avisara-o: "O Nogueira faleceu 16 deste, não é o caso de sentimento porque foi mau pai e mau marido". (19 maio 1912).

 

A LIBERAÇÃO FAMILIAR

A liberação No fundo das recordações de cada um de nós jaz uma mamãe aflita com os perigos desse abismal mundo moderno que vai roendo o ciclo vencido. Oswald de Andrade ( )

Nos primeiros dias de fevereiro do ano de 1912, o Marta Washington, o mesmo navio de João Miramar, levou Oswald para Europa, sob mil recomendações maternas. O acanhado jovem de 22 anos deveria completar a sua formação intelectual, visitando museus, convivendo com "pessoas ilustres de fina educação" e de "traquejo". Por intermédio do escritor Luís Edmundo viajou como correspondente telegráfico do Correio da Manhã, e responsável pela cobertura dos principais acontecimentos artísticos e esportivos. O amigo Emílio de Meneses escreveu-lhe comunicando a nova: Edmundo chegou ontem do Paraná. Está ansioso pela tua partida, pois precisa de alguém em Paris. Creio que as condições em que vais são estupendamente melhores do que se poderia imaginar. [...] Ora isto te dará uma inefável situação em Paris ( ). D. Inês, apegadíssima ao filho único, sentia sua ausência recompensada, na perspectiva de torná-lo um rapaz "instruído, civilizado, conhecedor do mundo, [...] um perfeito cavaleiro". Não havia limites nos gastos para o futuro herdeiro de uma fabulosa fortuna concentrada em terrenos e imóveis. Os pais aconselharam-no a procurar, durante a viagem, hospedagem de primeira, o Hotel da Rainha em Paris, por exemplo; bons restaurantes; um enxoval de linho para enfrentar o verão brasileiro, na volta; em caso de necessidade, "médico de rei ou de presidente da república"; A preocupação dos pais justificava-se em razão de uma crise nervosa de que fora acometido no Brasil, antes de viajar. Provavelmente não muito séria. Mas D. Ignês cobrava em carta de 04 de maio de 1912 A mãe o cercava de todo carinho, procurando tornar realidade seus caprichos. Oswald era muito tímido e dependente. A viagem à Europa seria um meio, de prepará-lo, a fim de assumir na volta os negócios da família, uma vez que Sr. Andrade não via com bons olhos a projetada carreira intelectual do filho. Homem prático desejava fazer de Oswald seu substituto à frente dos negócios da família. Sobre a mãe OA falou bastante e com muito carinho nas Memórias. D. Inês, perdera o primeiro filho, por conseguinte, concentrava todo afeto em Oswald que supermimado conseguia as benções maternas para qualquer empreendimento, sobretudo para os projetos ligados à vida literária. Além da ajuda econômica, dava-lhe apoio moral e servia de anteparo às atitudes rígidas do pai. Como na família havia o exemplo de seu irmão - o escritor Inglês de Sousa - ao contrário do marido, D. Inês alentava a tão sonhada carreira literária do filho. Financeiramente não media esforços, patrocinou a viagem à Europa, custeou a criação da revista O Pirralho, avalizando letras, pagando o aluguel da sede, etc. Oswald confirmou essa atitude: "Eu tinha por trás de mim, para manter as esperanças de minha mãe, a retaguarda financeira dos terrenos da Vila Cerqueira César [...] (1). Antecipou seu regresso ao Brasil, a bordo do Oceania, em virtude do estado de saúde de sua mãe. D. Ignês, morta uma semana antes da chegada do filho no dia 6 de setembro em 1912, não reviu com a barba crescida. Lay out que tanto criticou por carta. Durante a sua permanência na Europa, de fevereiro a setembro de 1912, seus pais escreviam freqüentemente. O assunto não variava muito: conselhos, encomendas, negócios e São Paulo "sempre insípido, tempo chuvoso". Entusiasmados comentavam o desenvolvimento e as mudanças na vida paulistana: os negócios de terrenos estão cada vez melhores. Exultavam com o progresso e a possibilidade de desenvolvimento propicia maior privacidade: Agora é que estou gostando bem de São Paulo, porque com o crescimento descomunal da cidade já se vive com mais liberdade a vida privada.

Sr. Andrade E´ a mesma estação rente do trem Toda de pedra furadinha Meu pai morou alguns anos aqui Trabalhando Um dia liquidou Ativo passivo Cinco galinhas E deram-lhe uma passagem de presente Para que eu nascesse em São Paulo Ele foi na de ferro Comprando frutas pelo caminho (2) Com a repercussão de Mon Coeur Balance e Leur Ame (1916), Sr. Andrade passou a aceitar mais facilmente a opção de Oswald pela literatura, haja visto a relativa acolhida das peças nos salões literários do Rio e de São Paulo. Antes ameaçou fazer escândalo pela imprensa, caso o filho gastasse algum dinheiro com a impressão do livro. Oswald agradeceu-lhe ironicamente, em nome de D. Inês, lembrando-lhe que havia editado o livro de Cornélio Pires. Embora o velho Andrade, tivesse mudado de opinião, mesmo assim, depois da morte da mãe, Oswald se queixava da falta de apoio do pai, com quem não mantinha um relacionamento fácil, piorando com a repercussão das suas trapalhadas amorosas. A grande paixão de Oswald pela mãe ofuscou um pouco a figura do Sr. Andrade na evocação romanceada do tempo de juventude Sob as ordens de mamãe. Também descendente de um ramo tradicional mineiro, nascido em Baependi, José Oswald Nogueira de Andrade, parecia um homem sisudo, de princípios morais rígidos e muito religioso. De uma família de fazendeiros arruinados em 1881 foi obrigado a mudar-se para Sao Paulo a fim de tentar a sorte: Meu pai muita noite atravessou a serra do Picu, conduzindo com negros uma tropa fazendeira - dlin-dlon (3). Nos priemiros tempos de adaptação à vida paulista, a família sobreviveu com o dinheiro proveniente de aluguel de escravos. Em São Paulo tentava preservar os hábitos domésticos da vidinha calma da sua terra, principalmente no que diz respeito à fartura da mesa. Numa carta de 27 de julho de 1913 ao amigo Mello, dono do Hotel onde hospedava em Lambary encomendava: un alqueire de polvilho do melhor, oito queijos iguais aos que consomem no seu hotel, meio alqueire de canjiquinha, uma quarta de fubá branco para angu, uma quarta de fubá mimoso, uma caixa de água do Lambary fonte gasosa da mais forte. Incansável batalhador aumentou consideravelmente a farta herança de terrenos do sogro - Des. Marcos Antonio Rodrigues de Souza - para quem trabalhara como corretor. A fortuna de Oswald veio dessa herança que sua mãe recebera depois da morte do pai e da sorte de viver numa São Paulo em espantosa explosão imobiliária. O loteador de terrenos José Oswald Nogueira de Andrade adotou São Paulo como sua segunda terra, elegendo-se inclusive foi vereador da cidade nesta fase de grandes progressos. Faleceu em São Paulo em fevereiro de 1919. Apesar da austeridade de comportamento, Sr. Andrade, à sua maneira, mostrava-se carinhoso e muito preocupado com o filho. As cartas enviadas à Europa em 1912 são o retrato de um pai devotado e cuidadoso. Escrevia ao filho aconselhando-o a não poupar dinheiro consigo: alimentar-se, vestir-se bem, aproveitar a viagem e desfrutar com calma do passeio. Insistia em 17 abril: "trate de aproveitar Paris, trate de passear e aproveitar". Não se cansava de recomendar: "Disse pessoa muito conhecedora da Europa que tudo o melhor é Paris. Por conseguinte, goza de Paris. Visita os museus e tudo quanto há de notável ai". Chamava a atenção a propósito das impertinências e ingenuidades de Oswald: "Pelas suas cartas se vê que você não tem feito a vida que te instrua e faça conhecer os homens e as coisas" (25 abril). Na mesma ocasião, comentando um incidente do filho com um colega recriminou Oswald: "Sirva-te de lição. Faça como eu que não tenho particularidades de sentimentos com ninguém. Não tenho amigos e nem inimigos, amo ao próximo como a mim mesmo, estando pronto a servir ou me desviar de quem quer que seja. Que te aproveite a lição". (Carta de 5 de maio). Antes Sr. Andrade avisara ao filho: "Neste mundo não há amigos e não te iludas mais..." Defensor de princípios morais de conduta muito rígidos, queria talhar o filho à sua feição. A propósito da morte de um cunhado avisara-o: "O Nogueira faleceu 16 deste, não é o caso de sentimento porque foi mau pai e mau marido". (19 maio 1912). Dois modelos familiares O irmão Marcos Herculano Inglês de Sousa sintetizava o modelo pelo qual D. Inês se pautava para educar o filho: Deputado Federal pelo Pará (sua terra), advogado de sucesso, professor catedrático de Direito Comercial, autor do nosso código comercial e intelectual de renome, tendo sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Ficou conhecido como autor de O Missionário. Com base nesse perfil familiar, D. Inês obrigou Oswald a ingressar na Faculdade Direito, curso que só conseguiu concluir em 10 anos, depois de várias interrupções e muito tédio. Todavia, nunca se exercitou nessa profissão. Embora amigo pessoal de vários políticos importantes do país, interessou-se pela vida partidária somente no final da vida em 1950, concorrendo sem êxito a uma cadeira de Deputado Estadual pelo PTN , sem falar do engajamento no PC de 1931 a 1945. Oswald seguiu em parte o trajeto vivido pelo tio, superou-o apenas na carreira literária. A serenidade e o tradicionalismo do velho jurista, tanto no comportamento como na prática literária, não se ajustaram à sua personalidade, embora admitisse: "Foi o primeiro grande homem que conheci pessoalmente" ( ). Aliás Oswald culpava o tio pelo fato de ter virado escritor: Animava a minha adolescência inquieta com cartas longas e convites de hospedagem no seu palacete da rua S. Clemente, no Rio. As reuniões na casa do tio Herculano eram um intervalo entre os encontros na Avenida com os amigos e a espera inútil pela dançarina Carmen Lídia. Oswald gostava do ambiente sereno desse palacete, rodeado de primas - a meiga Iaiá (Guiomar), Marina e Zizi (leitora de Mon Coeur Balance)e do primo Paulo Inglês de Sousa que foi muito seu amigo. Às vezes permanecia para o almoço ou jantar e acompanhava as primas nas caminhadas ao Flamengo. Oswald recorria aos pareceres do especialista Inglês de Sousa nas situações mais difíceis: no caso Carmen Lídia, nos negócios embaraçados, (em carta de 23 de fevereiro de 1916, pedia sugestões a respeito de uma transação imobiliária) no episódio do reconhecimento do seu filho mais velho, Nonê , feito dois anos e meio depois do seu nascimento em 28 de junho de 1916. A figura familiar mais fascinante para Oswald sem dúvida foi a do aventureiro Tio Luís, irmão do Sr. Andrade. Esse tio envolveu-se numa confusão na rede ferroviária onde trabalhava, resultando na sua prisão e na morte da mulher. O jovem Oswald e seus amigos ouviam embevecidos os relatos de suas façanhas. Impressionava-o sobretudo no tio a indiferença desconcertante, aparentemente inverossímil com que falava horas e horas da sua vida, contando o seu crime, as cabeças que rachou, os fuzilamentos e as pancadas recebidas. Narrativas pintadas com a mesma cor de romances vividos. Oswald admitia ter muita coisa em comum com este tipo representativo do seu ramo paterno.

 

São Paulo/Paris: duas paixões

A vida cosmopolita das grandes cidades fascinava o escritor. No tempo em que São Paulo perdia para o Rio em animação literária, Oswald arrumava sempre um bom pretexto para pegar o trem ou embarcar no luxuoso Frizia e encontrar-se com os inúmeros amigos cariocas. A primeira vez que conheceu o Rio de Janeiro (1910), sua mão ainda estava viva, ficou no palacete da rua São Clemente n. 271, residência de seu tio, o escritor Inglês de Sousa. Presenciou a revolta dos marinheiros comandadas por João Cândido. Hospedava-se no Hotel Avenida, quarto n. 12 ou n. 31 e no Bristol Hotel, invariavelmente até os anos 20s. Seu amigo o jornalista Renato Lopes, mais tarde diretor de O Jornal, e marido de sua prima Guiomar Inglês de Sousa, abria-lhe os olhos para as facilidades que a vida no Rio poderia oferecer para quem quisesse seguir a carreira literária: Tu precisas abandonar São Paulo. O Rio como diz o Paulo muito bem, já tem suas vantagens de grande capital. Mas foi outra a imagem que Oswald passou do Rio para seus leitores no poema Capital da República: Temperatura de bolina/O orgulho de ser branco/Na terra morena e conquistada/E a saída para as praias calçadas/Arborizadas/A Avenida se abana com as folhas miúdas/Do pau brasil/Políticos dormem ao calor do Norte/Mulheres se desconjuntam/Bocas lindas/Sujeitos de olheiras brancas/O Pão de Açúcar artificial. Oswald desde então parecia ter em mente bem delineada a função de cada uma das cidades na fermentação dos nossos movimentos culturais. Na década de 30, refletindo sobre a disparidade das produções de cada região adverte a uma amigo: O Rio, meu caro, é a mão morta por detrás de Copacabana.[...] Velha metrópole lusa, numa tradição lusa, numa tradição de sossego que nem a geometria dos arranha-céus e o ronco dos "douglas" acordam. Nós, aqui em São Paulo, fizemos a revolução modernista muito mais por causa do Matarazzo e dos sírios do quie de Graça Aranha ou de Julia Lopes [...]. Mesmo assim voltou sempre ao Rio. No início da década de 20 viajou especialmente com uma caravana de jovens escritores paulistas a fim de fazer propaganda do Modernismo; em 1924, decidiu conhecer de perto o carnaval carioca acompanhado de Tarsila e outros amigos, inclusive Blaise Cendrars. Nos tempos promissores do Modernismo cafeeiro, Oswald hospedava-se no Yankee Hotel, Rua Alm. Tamandaré 41, com Tarsila ficou diversas vezes no Palace Hotel. Na década de 30 morou algum tempo no Rio na Av. Atlântica 290, apt. 103 com sua mulher Julieta. Depois de separados passou a ocupar o Natal Hotel na rua Álvaro Alvin n. 48. Nos anos 30 manteve bastante contatos com o Rio; escrevia para vários jornais cariocas e representou em São Paulo o jornal Meio Dia de Joaquim Inojosa. Suas relações cariocas giravam principalmente em torno do pintor Cândido Portinari, do escritor Jorge Amado, do jornalista Joaquim Inojosa, do seu editor José Olympio e do dono do Correio da Manhã Paulo Bittencourt. Mais tarde esteve por volta de 1950 no Rio, por motivos de saúde, internado na Clínica São Vicente sob os cuidados dos cardiologistas Drs. Genival Londres e Aloisio Marques. Apesar desses laços tão estreitos a evocação da capital do Brasil feita pelo poeta paulista carregava sempre no tempero de exotismo como acontece em Noite no Rio: O Pão de açúcar/E Nossa Senhora da Aparecida/Coroada de luzes/Uma mulata passa nas Avenidas/Como uma rainha no palco/Talco/Fácil/Arvore sem emprego/Dormem de pé/Há um milhão de maxixes/Na preguiça/que vem do fundo de colônia/Do mar/ Da beleza de Dona Guanabara/Paixão de feerie/O Minas Gerais pisca para O Cruzeiro. Nos sete meses passados fora do Brasil, em 1912 visitou vários países da Europa Ocidental. Demorou-se mais em Paris e em Londres. Desobedecendo as recomendações da mãe, para que se hospedasse em bons hotéis, preferiu alugar um apartamento, assim poderia alojar o primo Gilberto Nogueira, filho de Tia Alzira, o amigos Renato Lopes e o pintor Oswaldo Pinheiro. Esses amigos aprontaram muita encrenca para o sempre ingênuo e bem educado filho de D. Inês. Oswald sofreu severa recriminação dos pais por ter sustentado três malandros aproveitadores, em viagem pela Europa praticamente sem gastarem um tostão. Em Londres morou na Albany Street 46 e Forth Street 64.Antes viajou pela Itália, visitando Florença, Milão, Roma e Nápoles. Na Alemanha conheceu as principais cidades, permanecendo mais tempo em Munique. Foi enfaticamente incentivado pelos país a visitar Bruxelas. Residiu no n. 9, rue Vauvin, em Paris, de Oswald depois de São Paulo a cidade preferida de Oswald: Os alfandegueiros de Santos/Examinaram minhas malas/Minhas roupas? Mas se esqueceram de ver/Que eu trazia no coração/Uma saudade feliz/De Paris (Loide Brasileiro). Essa saudade feliz Oswald cultivou por toda a vida, desde 1912, por ocasião da sua primeira temporada parisiense desfrutada num apartamento alugado. Seguiu ao pé da letra as ordens emitidas por seus pais em cartas despachadas para a Embaixada do Brasil, em nome de José Oswald Jr.: aproveite Paris, goze Paris, desfrute Paris. E para obedecer esse sábio conselho arrumou uma estudante de Montmartre que lhe mostrou muito bem grande parte da Europa. Nesta viagem procurou, além disso, liberar-se de possíveis traumas impostos por uma educação super tradicional de filho único de pais idosos e conservadores. Tanto aconteceu a liberação que na volta não mais usou o aposto Junior, por sinal, um nome que não lhe pertencia oficialmente pois foi registrado como José Oswald de Sousa Andrade, diferente portanto do nome do pai - José Oswald Nogueira de Andrade. Como José Oswald Jr., antes de viajar, fundou O Pirralho. Talvez quisesse aproveitar o prestígio do pai, pessoa razoavelmente conhecida em São Paulo. O nome Oswald de Andrade se firmou, a medida em que começou a conquistar posições, através do seu próprio trabalho como jornalista. Inclusive na estréia literária se apresentou como Oswald d´Andrade. Por essa atitudes se percebe como a vida na Europa ensinou duas coisas diferentes a dois Oswald, em estágios diferentes da vida. Ao bem educado filho de D. Inês, a Europa revelou o caminho da emancipação familiar e sexual. Ao escritor modernista a partir do final de 1922, a Europa também iluminou o caminho em direção a uma outra libertação: o abandono do beletrismo e da linguagem preciosa.

 

O nome

O nome José Oswald de Sousa Andrade nunca foi assumido a não ser em papeis oficiais. Recebia as cartas dos pais subscritas para José Oswald Jr. . Como redator do Pirralho, assinava também Jose Oswald Jr. Literariamente, sempre se apresentou como Oswald de Andrade. Antes do Modernismo: Oswald d´Andrade. Foi dessa forma que se lançou na vida literária com outro modernista, cujo nome era também grafado com o d mudo, publicando as duas peças em francês em 1916. Para os pais era o Oswaldinho e Sr. Oswaldinho entre os criados. Mais tarde com os filhos e a mulher passava por Waldo. Talvez, sob o impacto das idéias nacionalistas, Oswald desejasse chamar atenção para a verdadeira pronuncia do seu nome grafado à inglesa. Escrevia geralmente Oswaldo, dirigindo-se aos seus amigos e literatos. E todos eles assim o chamavam. Sua mulher Julieta Bárbara e sua nora Adelaide tratavam-no sempre por Oswaldo. Hoje provavelmente ficasse indignado com a deturpação da pronuncia portuguesa do seu nome, uma vez que se preocupou em continuar a tradição do nome Oswald. Seu primeiro filho foi batizado como José Oswald Antônio de Andrade, que por sua vez registrou um dos seus filhos com o nome de José Oswald, também. O fato é que hoje o nome Oswald está na quinta geração: há um bisneto do escritor recebido da mesma forma chamado José Oswald. Seguir a tradição dos nomes familiares foi um ritual entre os Andrades. O filho caçula de Oswald foi batizado com o nome de Paulo Marcos reunindo Paulo, nome de um primo filho de Inglês de Sousa e Marcos - um dos nomes do avô materno (Des. Marcos Antonio Rodrigues de Sousa). Os netos de Oswald, os filhos de Nonê, seguiram o costume familiar a mais velha - Ignês - homenageou a bisavó, D. Inês; a outra - Bárbara - lembrou o nome da tia, casada com Oswald na década de 30 - a escritora Julieta Bárbara; Marcos Antonio reproduz o nome do avô materno de Oswald.

 

Um estilo de vida

Eu sou redondo, redondo Redondo, redondo eu sei Eu sou uma redond´ilha Das mulheres que beijei ( )

A lembrança que as pessoas têm de Oswald é a de uma figura redonda em torno de 85 kg, medindo l,78m, calçava n. 41. Fisicamente parecido com a mãe. Tipo espadaúdo e forte, compleição de atleta, aloirado e olhos azuis. A gordura foi a sua marca registrada desde jovem. E´ com esse perfil que Oswald se vê nos primeiros dias de sua volta ao Brasil em 1912: "barbado, triste, de luto, gordo". Muito vaidoso fazia ginástica sueca, empenhando-se nos exercícios abdominais para manter a elegância; praticava também halteres e chegou a tomar aulas de box com o pugilista suiço Delaunay. Fazia natação e jogava futebol. A barba deixara crescer na Europa, e a conservara até 1915. A mãe não gostou da idéia da barba e mandou imediatamente seu recado: "Torna o moço velho e com ares de caipira", e insistiu "Talvez por estar barbado é que tenha sido roubado" (carta de 1912 sem indicar dia e mês). A lente indiscreta do cronista social de O Pirralho focalizou no Teatro Municipal o Sr. Oswald de Andrade, no seu papel de cronista social do Jornal do Comercio. Agitou a gordura precoce, a procura do furo, com o seu faro educado de jornalista e de mundano. Seus retratistas enfatizaram sempre a generosidade de seu físico, muito embora tivesse bastante agilidade com o corpo. Ficou para Pedro Nava exatamente esta lembrança: Tinha no todo maciço alguma coisa de tribunício, proconsular, imperial e estatuária (4). Uma expressiva caricatura de Alvarus transmite bem os traços mais marcantes: a gordura e o gosto pelas roupas modernas e coloridas (novidade para em relação às sóbrias vestimentas masculinas da época); deixando entrever uma avantajada barriga. Oswald usou uma gravata nada sóbria, com um lenço esvoaçante no bolso superior do paletó e um grande óculos escuros. Em outra caricatura e sem autoria identificada, publicada no Diário de S. Paulo, de 30 de abril de 1954, Oswald vestiu exótico paletó com enorme lenço no bolso superior. Di Cavalcanti fez um delicioso desenho do Oswald homenzarrão, vestido também de maneira espalhafatosa (5). Vestir-se bem, evidentemente, era uma de suas preocupações e não abandonava os ternos de linho no verão. Ternos esses comprados na Europa ou talhados pelos melhores alfaiates paulistas. Castanho, célebre alfaiate dos anos 30s e 40s, em São Paulo, também vestiu a família Andrade. No casamento de Nonê, Oswald encomendou ao estilista o terno do noivo e do tailleur da noiva. Nas viagens internacionais aproveitava para renovar o guarda-roupa: na Sulka, em Paris, comprava lotes de luxuosas gravatas e camisas de seda, de Perugia encomendava sapatos e botas para montar. Poder usar roupas feitas pelo famoso estilista Carniccelli, por exemplo, era quase sinônimo de sucesso. Gabava-se muitas vezes disso, ou melhor sentia-se bem e feliz. Os possíveis exageros de Oswald no comportamento e na maneira de vestir-se certamente extrapolam a mera opção pessoal e passam a ser uma postura política, muitas vezes ingênua. Por traz escondia um grande narcisismo deixando transparecer a consciência do magnetismo pessoal também. Oswald podia dar-se o luxo de todas as extravagâncias. Era muito rico. Foi um dos primeiros modernistas a comprar automóvel - um Moon. E como não gostava de dirigir, contratou um motorista para dirigir o seu carro inglês. A insistência em manter um padrão de vida ultra-requintado mesmo nos momentos de dificuldades provavelmente foi espelhada nos dandis literatos de sua preferência: Cocteau (amigos nos anos 20s), Laforgue (o poeta preferido). O caso Oswald ajusta-se como uma luva à ética do dandismo baudelairiano. O luxo, o refinamento na forma de viver e na maneira de vestir-se fazem parte do caráter de oposição e de revolta, da necessidade de combater e de destruir a trivialidade. Nos anos 30, para melhor representar a orientação obreirista do Partido Comunista, Oswald vestia-se de acordo com o figurino ideológico. Forçava na negligência e na proletarizacão da indumentária. O filho mais velho, recém-chegado de um colégio na Suíça, foi obrigado a trabalhar de dia e à noite freqüentar um curso profissionalizante no Liceu de Artes e Ofício de São Paulo. Pagu (Patrícia Galvão) a sua companheira na época, também militante, encorajava-o nesse processo de purificação dos vícios e desvios burgueses iniciado com o abandono da vida feudal e fazendeira dos anos 20. Pretendiam os dois inaugurar um novo estilo de vida idealizado por Oswald no inédito Poema à Patrícia: "Sairás pelo meu braço grávida, de bonde/ Teremos seis filhos/E três filhas/ E nosso bonde social/ Terá a compensação dos cinemas/ E dos aniversários dos bebês/Seremos felizes como os tico-ticos/ E os motorneiros/ E teremos o cinismo/ De ser boçais/Como os demais/ Mortais/ Locais" (6). Enquanto Pagu viajava pelo mundo fazendo política, Oswald, Nonê e o recém-nascido Rudá moraram numa pensão modesta na Av. São Luís, entre 1930 e 1933 Negócios e trabalho Apesar de pertencer a uma família rica, desde cedo começou a trabalhar como jornalista. Nos anos dez, Sr. Andrade dirigia sozinho os negócios imobiliários da família. Oswald sobrevivia então do trabalho em três jornais: Jornal do Comércio, A Gazeta, e O Jornal. Da mesma forma na década de 30, quando a sorte não o contemplava, enfrentou a crise financeira pós 29, vivendo do jornalismo. Como acontecia com outros escritores não conseguia sobreviver apenas da atividade meramente literária. Muito pelo contrário, Oswald e os modernistas investiram na publicação de suas obras e pouco lucraram financeiramente. A palavra negócio talvez tenha sido uma das mais pronunciadas por Oswald ao longo de toda a sua vida. Numa primeira fase até a morte do pai, apesar de não controlar os empreendimentos familiares - sob a tutela intocável e conservadora do pai - acompanhava-o aos bancos, aos escritórios das grandes companhias imobiliárias dos advogados e dos agiotas, etc. Sr. Andrade administrava contidamente e sem ousadia o grande patrimônio. Essa fortuna em parte decorria da herança que D. Ignês recebeu da sua mãe em gado (800 reses) vendida à firma mineira Mello e Cia de Lambari, conforme carta assinada por ela e seus irmãos bem como uma chácara em São Paulo - vila Cerqueira Cesar, loteada mais tarde Como não cometia nenhuma espécie de excesso, soube conservar e ampliar bastante seu pecúlio. Todavia, os negócios realizados pareciam ser feitos de maneira atabalhoada e desordenada. A impressão que se tem é sempre de sufoco e em certos momentos de desespero pela não concretização de algum contrato esperado, mesmo ainda em vida do Sr. Andrade. Até 1919, Oswald figura como mero espectador e acompanhante do pai. Ficava por sua conta as tarefas que exigiam maior mobilidade ou deslocamento para outros lugares. No Rio, intermediado por Dr. Washington Luis, prefeito de São Paulo na época, fez algumas transações imobiliárias com Renato Miranda. Entre 1914 e 1916, a família Andrade mantinha negócios com a Enonomizadora mediatizados por Guilherme Rubião e Gustavo Olintho. Tudo indica que essa firma liberaria um empréstimo por um prazo de três anos e amortização de 50 contos por ano para realização do loteamento da Chácara de Cerqueira Cesar. Em 1917 Sr. Andrade solicitou à Câmara de Vereadores isenção de impostos de viação pelo espaço de seis anos para esses terrenos. O Parafuso, pasquim do inimigo de Oswald, caiu em cima dessa reivindicação com a reportagem Um pedido vergonhoso ( ). A década de 20 começou com Oswald a frente da fortuna deixada pelo pai, a despeito de um testamento arranjado por Kamiá e os religiosos amigos da família que o deixaram de escanteio. Oswald com a ajuda de Vicente Rao conseguiu reverter a situação passando a usufruir da herança e a implementar novos negócios. Portanto nos anos 20, Oswald além de fazer o Modernismo foi um homem atarefado, viajando inúmeras vezes à Europa a trabalho para contatos com banqueiros e negociantes. Além de ser fazendeiro proprietário da Fazenda Santa Tereza do Alto, negociava basicamente com imóveis e café. Sua vida foi marcada por uma ciranda financeira ora movida pelo sucesso de alguma transação imobiliária ora marcada pelo ritmo febril da cotação do café. A educação que seus pais lhe deu não o transformou num bom administrador. Aliás, nunca se empenhou muito nesse setor, por outro lado a sua formação humanística forçosamente o levaria a destacar-se no mundo das letras e na vida social.

 

A formação intelectual

Os anos 10 foram determinantes para a formação intelectual do escritor. Formação esta atingida de maneira assistemática por meio de leituras de obras filosóficas e literárias em voga, através da discussão acalorada com os amigos, bem como pela via da academia. Pouca gente se lembra do bacharelado em Ciências e Letras no Centro de Filosofia Ciências e Letras do Mosteiro de São Bento que Oswald seguia paralelo à atividade jornalística. Ao lado de Pedro Rodrigues de Almeida, apreciava em especial as aulas de filosofia, principalmente aquelas ministradas pelo Abade Charles Sentroul. Esse religioso expansivo e atualizado exercia muita influência junto ao grupo de amigos de Oswald, atuando como um dos interlocutores da dupla de Andrades, por ocasião da realização da peça Mon Coeur Balance. Otávio Augusto também fazia companhia a Oswald nas discussões sobre Kant e o subjetivismo. As leituras não obedeciam a nenhuma sistemática. Havia um elenco de autores preferidos e constantes, entre eles os franceses. Flaubert, Huysmans e Maupassant estavam no topo da lista. Releia Flaubert. De Salomé a Salambô com entusiasmo e obcessão por toda essa arte naturalista do romance, colossal trabalho que fez a glória do século passado como a pintura fez a Renascença. Lia com animação Le Pére Amable de Maupassant no volume de contos Petite Rocque, passagens do La-Bas de Huysmans e de Heredia. Saindo do campo da ficção , os preferidos eram Bourget (La Philosophie de l´amour moderne) e os estudos de Faguet. A convivência com os professores do Centro e as discussões com Pe. Sentroul fizeram com que Oswald construisse um lastro sólido de leituras de textos filosóficos. Até 1920 Oswald teve tempo e disposição para essa prática e para o debate com os amigos. Os críticos mais contundentes da atuação oswaldiana cobram-lhe insistentemente a falta de intimidade com esse tipo de pensamento mais elaborado. A cobrança é injusta tanto nesse aspecto como em relação à velha mania de afirmar que Oswald não lia. Quando a guerra de 14 estourou Oswald tinha várias obras começadas, apreensivo receiava que uma eventual convocação pudesse prejudicar seu projeto literário. De qualquer modo, reanimava-se esperançoso na hipótese de seu filho Nonê continuar pelo menos as Memórias Sentimentais.

 

CONTINUAÇÃO