Editorial
Por ocasião do I Congresso Internacional de Estudos Utópicos (“Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell'utopia e nella distopia”), ocorrido em maio de 2007, numa iniciativa conjunta da revista MORUS — Utopia e Renascimento e do Dipartimento di Studi Sullo Stato da Università degli Studi di Firenze (Itália), por determinação de seus participantes, decidiu-se realizar no Brasil um segundo encontro, que é justamente este II Congresso Internacional de Estudos Utópicos: O que é utopia? Gênero e modos de representação, nos dias 7, 8, 9 e 10 de junho de 2009 no Auditório da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP). Sumário
ORGANIZADORES L'utopie comme comble de la fiction à la Renaissance Livelli del pensiero utopico: antropologia, storia, letteratura L'utopia cosmopolitica moderna Capa
Editorial
A revista Morus – Utopia e Renascimento chega ao seu quinto número trazendo um dossiê dedicado ao tema “Utopia, Reforma e Contra-Reforma”, além de artigos avulsos relacionados aos temas da utopia e do Renascimento. *** O dossiê começa com o artigo, hoje clássico, de um dos mais importantes historiadores do século passado, o italiano Luigi Firpo: Utopias da Contra-Reforma italiana, tradução para o português do original publicado em 1948. Neste artigo, Firpo analisa uma série de escritos utópicos do Cinquecento, pertencentes ao período mais atuante da Contra-Reforma. Primeiramente, identifica os traços principais da utopia renascentista, como seu cunho marcadamente social, sua posição otimista quanto à capacidade da razão humana de criar formas novas, perfeitas, autárquicas de organização social, entre outros. A isto contrapõe, num segundo momento, o conjunto de valores advindos do novo clima espiritual instaurado pela Contra-Reforma (e suas conseqüências), detendo-se principalmente em autores como Agostini, Campanella e Zuccolo. Fora do dossiê estão artigos sobre temas variados dentro das grandes questões da utopia e do Renascimento. O primeiro deles é de Jean Michel Racault, L’utopie festive, que aproxima e articula as noções de utopia e de festa na Utopia de More e na Histoire des Sévarambes, de Veiras por meio do raciocínio em torno de duas questões: a utopia seria uma contestação da norma social existente em nome de uma sociedade ideal ou uma empresa voluntarista que visaria a construir uma sociedade destinada a permanecer fixa em sua suposta perfeição?; a festa, por sua vez, seria a libertação anárquica de uma espontaneidade lúdica ou uma manifestação regulada de um ritual social imposto? O autor constata então que as noções de utopia e festa levantam as mesmas contradições em torno do problema do individual e do coletivo, do regulado e do espontâneo. Carlos Eduardo Ornelas Berriel Sumário
Dossiê: A utopia na Contra-Reforma A utopia política na Contra-Reforma O corpo físico e político da cidade ideal no Cinquecento europeu Campanella, a cidade historiada Campanella: a consciência possível da Contra-Reforma. Considerações sobre o “Appendice della politica detta La Città del Sole di fra' Tommaso Campanella - Dialogo poetico” (1602) Entreprise missionnaire et utopisme à travers quelques lettres de la mission jésuite du Brésil (1549-1570) Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico e a Reforma (séculos XVI-XVIII) Precipícios cristãos e oráculos austrais: uma análise da questão religiosa na utopia de Gabriel de Foigny
Estudos L'utopie festive: fêtes, cérémonies et célébrations de L'utopie de More à l'Histoire des Sévarambes de Veiras A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”: um estudo sobre o Papel do índio brasileiro na entrada de Henrique II em Rouen em 1550 O novo sentido da utopia: a construção de uma sociedade de justiça Dalla morte di un'utopia alla nascita di un mito: l'esperienza anabattista di Münster nelle sue rivisitazioni letterarie A ars historica em debate nos Dialoghi della Historia de Francesco Patrizi Utopia e contro-utopia nella Storia dei Galligeni di Tiphaigne de la Roche L'utopia di fronte ai problemi della famiglia e della donna nel fra Sette e Ottocento As bibliotecas utopianas Utopie e processi di modernizzazione della Turchia attraverso il paradigma storico-letterario Capa
Editorial
A revista Morus – Utopia e Renascimento nasceu há pouco mais de 2 anos, no Brasil. Nessa curta trajetória publicou 3 números e agora participa como copromotora deste Congresso, junto a Università di Firenze, representada pela pessoa extraordinária do Prof. Claudio De Boni. Resultado do esforço de um grupo de pesquisadores que se reúne no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), associados a especialistas de várias universidades e núcleos de pesquisa, a revista MORUS nasceu no sentido contrário da hegemonia pragmática dos tempos que correm. Nasceu sob o signo austero que regeu também as utopias no seu nascedouro histórico, o Renascimento. Como as utopias, a revista MORUS olha para o real aparente tentando descobrir a hipótese generosa sonegada por um tempo cruel e áspero. Aposta, assim, na possibilidade da retomada do fio histórico do Humanismo que foi cortado, e quer denunciar esse fato. Essencialmente histórica e crítica, a MORUS nasceu como uma publicação acadêmica interessada em estudos rigorosos que conceituem a utopia, em suas manifestações, problemas e como gênero, e principalmente - mas não exclusivamente - naquele complexo período que a historiografia do século XIX chamou de Renascimento. No mais, a revista fala por si. O leque, portanto, é amplo: reunimo-nos aqui para discutir a árdua relação entre ilhas perfeitas, ciência e técnica, o que é em si pensar a atualidade do problema utópico. Existe no ar atualmente um clima de retorno ao tema da Utopia, e esta reunião de inteligências registra o fato. Depois de serem liquidadas por Engels, com sua tese de que o socialismo científico tornaria supérfluo e superado o socialismo utópico, e da ampla difusão das formas modernas de democracia, as utopias pareceram desaparecer definitivamente no oblívio da lata de lixo da História. O socialismo de tipo leninista deu a impressão a muitos, por um certo tempo, que iria realizar no mundo as idéias de um perfeito convívio humano, baseado na racionalidade. No entanto, o hiper-racionalismo stalinista jogara fora certos elementos utópicos necessários a um socialismo mais generoso, e esta lacuna tornou-se evidente com os trágicos acontecimentos que fazem a rotina dos jornais. O retorno do interesse pela questão utópica coincide, de certa forma, com a queda do muro de Berlim e os tormentosos desdobramentos do capitalismo financeiro e seu ceticismo intrínseco – a forma hodierna da credulidade fetichista. Entretanto, o longo sono das utopias, causado pela engenharia social das nações de capitalismo atrasado (que gerou o fascismo e o socialismo de tipo soviético) foi mais aparente que real: a miragem selvagem do fim da História jamais impediu a produção de vasta obra utópica, que, entretanto, pendeu para seu lado negativo: as distopias. Numerosas no século XX, eficientes complicadoras no horizonte do gênero, as distopias são o pesadelo social de que os romances 1984 e Animal Farm e a rica ficção científica são bons exemplos. Circunscrita a estas temáticas, a revista MORUS sai com a finalidade de estudar todos esses problemas. Sob a regência da História e da crítica, publica estudos e investigações sobre a rica problemática das sociedades imaginárias e imaginadas, diversas do existente. Concebe o real não apenas como aquilo que existe empiricamente, mas também como aquilo que pode – e deve ser. Dignifica a virtualidade humana, e suspeita do pragmatismo. Tratamos do real, e se sonhamos, é porque, como disse o Bardo, somos feitos da mesma matéria dos sonhos.
Sumário
Presentazione – Carlos E. O. Berriel
Science sans conscience n’est que ruine de l’âme: bonheur, sciences et techniques
en Utopie Razionalità utopica e razionalità scientifica Contraddittorietà e Storia: materie intrinseche dell’utopia Scienza, sapere umanistico e tecnica nell’Utopia di Thomas Morus Immagini della scienza e della natura nelle utopie di Patrizi e di Bacone Scienza e tecnica nella Terre Australe Connue di Gabriel de Foigny Eutopias and Dystopias of Science Utopie et science chez Charles Fourier Quelques utopies modernes à la lumière de l’arithmétique politique (1660-1820) Flatlandia: testo e contesto nelle utopie matematiche Memorie politiche del sottosuolo. La monadologia utopica di Gabriel Tarde Utopia e positivismo: il caso italiano di Paolo Mantegazza Euclides da Cunha e Os Sertões come poetica delle rovine: l’immaginario distopico nella letteratura e nella storiografia brasiliana della fine dell’Ottocento La tecnologia come momento del processo utopico Verso una felicità razionale: città e tecnica dall’utopismo del Movimento Moderno
alla distopia di Eugenij Zamjátin Building distopia L’ipermercato dei sogni: tecnologia e utopia nei parchi di divertimento a tema Lo sguardo di Windows. La seduzione della tecnologia nel pensiero di Ivan Illich Il sublime tecnologico nei romanzi di Menotti Del Picchia The Industrialization of the Kibbutz: Utopia and Practice Ecologismo: a primeira utopia planetária The technic and technicism as means of mythologization of utopian and antiutopian narrative in the Romantic and Wellsian fiction Samuel Butler e lo ‘spirito’ della Macchina Science as a Defense against Totalitarism in George Orwell’s 1984 Biopotere, scienza e nuove tecnologie in Woman on the edge of Time (1976) di Marge Piercy Two Technological Dystopias: Le Monde tel qu’il sera and Alpha Ralpha Boulevard William Gibson e Pat Cadigan: il cyborg e le nuove configurazioni del corpo in una prospettiva comparata
Capa
Editorial
Apresentamos o terceiro número da Revista Morus – Utopia e Renascimento.
Em período inferior a três semestres, cumprimos o esforço de colocar à disposição do leitor especializado um acervo de ensaios, artigos e de traduções de utopias raras, em três números que, inequivocamente, repôs o tema utópico sob uma nova luz. A Morus, além de reorientar o debate no Brasil sobre o problema da utopia, constituiu-se em canal de amplo aspecto para os pesquisadores do tema, tomado este sob os ângulos mais variados: a história literária, a teoria dos gêneros, a ética, a história, a filosofia. Multitemática, multilingüe, a Morus tem buscado ter em si a forma de seu problema precípuo. Em seu núcleo há um dossiê temático dedicado ao tema do impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia, e o registro deste impacto na obra de vários autores que se vinculam, direta ou indiretamente, ao pensamento utópico. Além do dossiê, o leitor encontrará uma série de artigos circunscritos aos temas da revista, e duas resenhas que inauguram este novo segmento da revista. As utopias, um gênero extraordinário em suas efetividades e conseqüências, nascem com a obra de Thomas Morus, em 1516. Nela, já há a problemática das viagens de descobertas: um navegante português, Rafael Hitlodeu, companheiro de Vasco da Gama, narra o que viu numa ilha inventada. A imaginação das ilhas desconhecidas, do país remoto no qual prospera a cidade ideal – matéria básica das utopias -, não é só imitação literária, mas um hábil recurso para suprimir, com o álibi da ignorada revelação cristã, a carga inteira da estrutura ético-religiosa daquela república fictícia. Como resultado, evita-se o confronto com as normas morais e a dogmática da Igreja.Seguiram-se à obra de Morus várias utopias escritas em várias línguas, a primeira delas a de Antonio Guevara, espanhol empenhado nos preceitos éticos-políticos do nascente império ibérico. A utopia, portanto, surge como gênero literário nas circunstâncias correspondentes ao leque histórico das grandes descobertas, da constituição dos impérios coloniais, da afirmação das monarquias absolutas, dos desdobramentos do grande fato Trentino, a Reforma e a Contra Reforma. Indissociável dos eventos das Descobertas, a utopia em si mesma acusa o impacto dos descobrimentos marítimos na cultura européia. Ao nascer, a utopia adota a forma do discurso testemunhal, como diálogo (um elemento integrante do gênero), em que um viajante conta o que viu no mundo até então desconhecido. Paira sobre as obras o clima cultural das descobertas, o espírito geral das navegações (povos estranhos, hábitos inusitados), mas ele é ficcional: o que se conta, no fundo, é a vida européia transfigurada. Usa-se a parábola: Utopia é, na verdade, a Inglaterra invertida. A constatação do mundus alter permite repensar a vida européia. A descoberta do Novo Mundo altera o imaginário político europeu. Tratando de um país longínquo, a utopia possibilita o diálogo com o mundo do viajante, permitindo, através da comparação, a crítica da situação social em seu país de origem: estabelece-se um olhar que coteja a realidade e a obra literária. O viajante tem, na sua essência, uma função mediadora entre dois mundos, e seu depoimento, que é em si a utopia, põe realidade e ficção face a face, esta espelhando aquela, em cujo reflexo aparecem correções, modificações e, especialmente, inversões. A categoria paradigmática da inversão é aqui fundamental. Esta edição da Revista Morus abre com o artigo Le « Jardin des Délices » de Jéróme Bosch: Une utopie du désir sublimé, de Claude-Gilbert Dubois, que discute o significado do célebre tríptico de Hieronimus Bosch, O Jardim das Delícias, cujo título se manteve devido a uma tradição arbitrariamente instaurada, já que o pintor não havia intitulado sua obra. Na primeira parte de seu artigo, Dubois aprofunda duas interpretações distintas do quadro. Segundo a mais antiga, Bosch teria realizado uma ilustração clássica da seqüência teológica do cristianismo mais ortodoxo, representada pelos momentos da criação da inocência, da degradação terrena e da punição após a morte. A esta interpretação, no entanto, se opõe outra, que vê no painel central o paraíso, onde se dá a realização de jogos eróticos em uma atmosfera de beatitude e inocência. Na segunda parte, o autor se interessa pela concepção teológica da obra. Segundo a interpretação tradicional, corroborada pela atmosfera trágica da época do pintor, o fim da Idade Média, em que se manifesta um cristianismo pessimista, o tríptico não ilustraria a redenção, conceito essencial da teologia da salvação cristã. Dubois, no entanto, demonstrará que, ao contrário, a presença do redentor se encontra multiplicada nos diversos painéis. Cosimo Quarta, em Utopia: gênese de uma palavra-chave, busca voltar às origens da palavra “utopia”, para entender seu sentido originário, liberando-a, assim, das incrustações que, segundo o autor, sedimentadas ao longo dos séculos, deturparam-na a ponto de torná-la quase irreconhecível. Para tal, examina a gênese do termo, ressaltando que este é um dos aspectos mais negligenciados pelos estudiosos da obra de Morus. Assim, reconstrói as circunstâncias e os eventos que levaram à cunhagem do termo que, “embora tendo tido muita fortuna, tem sido, contudo – por causa de sua originária ambigüidade, ou melhor, polissemia – fonte de muitos e graves equívocos no plano conceitual”. Arrigo Colombo, em Formas da utopia – As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiça, faz um percurso pelos vários sentidos da palavra utopia, desde a obra inaugural de Morus, vista pelo autor como descrição de um modelo político exemplar, inspirada nos pontos basilares de um arquétipo utópico, ou seja, de um projeto que exprime as estruturas constitutivas de uma sociedade de justiça. O livro de Morus “torna-se um modelo histórico que perpassa toda a modernidade; traduz-se em um gênero literário, ou político-literário”. Partindo, portanto, de Morus, Colombo analisa o fenômeno utópico na modernidade – como um processo de caráter dinâmico, criativo, continuamente inovador, estendido sobre o futuro e que corresponde ao processo construtivo de uma sociedade de justiça – , passando pelos primeiros utopistas e a grande produção de escritos utópicos, pela crítica marx-engelsiana e o “ponto de desvio” causado por ela (e por suas leituras), chegando a abordar os grandes estudiosos do pensamento utópico no século XX, principalmente Mannheim e Bloch, como autores que delimitam a utopia em sentido histórico e, assim, alargam o seu significado. O artigo de Christian Rivoletti, intitulado Strategie della finzione nelle utopie del Cinquecento europeo – Sulla ricezione dell’Utopia di Thomas More nei testi di Eberlin von Günzburg, Antonio Brucioli, Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin e Tommaso Campanella, dá ênfase à combinação entre esforço intelectual – ressaltando o caráter lúdico do escrito como estratégia ficcional - e empenho político na Utopia de Morus, o que faz o autor desenvolver sua análise numa perspectiva histórico-estética, ou seja, a da recepção da obra moreana em diferentes momentos e ambientes também diversos, quais sejam: 1) o dos leitores humanistas do texto; 2) o de suas traduções em línguas vernáculas; e 3) o da produção européia de textos utópicos. Rivoletti procura também traçar uma tipologia das estratégias ficcionais em Morus, individuando elementos como a predominância do testemunho direto sobre a dialética argumentativa, a extensão imaginária das dimensões espaciais, o valor metafórico da viagem, o jogo onomástico ressaltando o caráter paradoxal do texto e a inclusão, no texto, de um juízo discordante. O editor desta revista, em Utopie, dystopie et histoire, propõe algumas reflexões acerca dos termos “utopia” e “distopia”, traçando alguns paralelos. Estabelece dois princípios para o surgimento das utopias: 1) a experiência histórica, como metáfora; e 2) uma Idéia, enquanto construção abstrata que desce do Céu para a Terra. As distopias surgem, em sua maior parte, deste segundo princípio, sendo derivadas das utopias desligadas do mundo empiricamente concreto. Outros pontos de contraste são expostos, como o hiato entre a História real e o espaço reservado para as projeções nas utopias e a continuidade das distopias com o processo histórico, enfatizando suas tendências negativas. Divergente também é o fato de que, enquanto nas utopias a estrutura negativa da organização humana existente é sobreposta à estrutura positiva da Cidade Ideal, nas distopias, a realidade não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação de um mundo grotesco. Jean-Michel Racault, em seu artigo intitulado La question des langues dans “L’Utopie” de Thomas More, analisa o problema das línguas na obra paradigmática de Morus, alargando o sentido da questão a todas as formas de troca lingüística que problematizam a utopia enquanto texto literário, levando em conta não somente as línguas inventadas pelos utopistas, mas também outras, que afetam real ou ficticiamente o texto utópico, especialmente a língua do viajante-narrador, aquela com a qual ele escreve seu relato e a que usa para se comunicar com o leitor. Racault leva ainda em consideração os fenômenos de interferência lingüística ligados aos problemas de tradução, da diversidade dos sistemas gráficos, da questão do livro como vetor de alteridade e da função mediadora da linguagem. No artigo No sertão do Maranhão, o império das Américas – Planos racionais de povoamento nos roteiros de viagem do Grão-Pará e Maranhão do séc. XVIII, Maria Lucia Abaurre Gnerre procura mapear um repertório de temas utópicos, originários das utopias dos séc. XVI e XVII, que reverberam em textos de viajantes que percorrem o estado do Grão-Pará e Maranhão no século XVIII. Através da análise de um importante relato de viagem, o anônimo Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauí e de outros textos pertencentes a este mesmo gênero, produzidos na segunda metade do séc. XVIII, a autora busca identificar as marcas de um substrato utópico que se faz presente nestes textos, além de compreender de que modo as utopias servem como embasamento para planos reais de povoamento e colonização de regiões enormes e incivilizadas.*** Abrindo o dossiê “O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia”, temos o artigo de Andrea Battistini, Dois exploradores em cotejo: os novos mundos de Colombo e Galileu, que nos apresenta um vasto panorama referente à repercussão das descobertas dos dois exploradores, com ênfase na função retórica que as evocações de tais descobertas cumpria nos escritos do tardo Cinquecento e Seicento, numa gradual predominância das “descobertas astronômicas, que se apóiam sobre fundamento celeste”, sobre “a contingência mais efêmera da descoberta da América, de natureza “terrestre” e, por isso, deteriorável”. No artigo O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da utopia, Frank Lestringant desenvolve a relação entre utopias e viagens de descoberta em quatro partes: a primeira trata das interferências de viagens reais - acontecidas em um mundo real equivalente a um arquipélago geográfico e confessional - na Utopia, significativamente uma ilha; na segunda o autor ressalta o papel de Luciano como fundador de boa parte do utopismo, fundando a declamatio, um gênero retórico-filosófico especialmente desenvolvido no Renascimento definido pelo jogo e pela ficção, tendo por objeto o “real-irreal”; a terceira parte discute o cotejo da vida dos habitantes de terras longínquas com os europeus, intensificado pelas viagens de descoberta, encontrado em autores como Vespúcio, Cartier, Montaigne, Lescarbot, dentre outros; por fim, a quarta parte trata de Le Royame d’Antangil (1616) que, conforme Lestringant, seria a segunda utopia escrita na França, bastante próxima do modelo moreano, e a primeira a ilustrar o mito da terra austral. O objeto do artigo de Maria Moneti Codignola, Filosofi, utopisti, selvaggi, é a mudança de paradigma - de estrutura logico-epistemológica, de significado e de intenções – que intervém na utopia da era moderna, em relação à utopia clássica e, mais especificamente, platônica, devido ao efeito da revolução filosófica e espiritual produzida pelo encontro da cultura européia com as estruturas lógicas e epistemológicas das chamadas “sociedades selvagens” do novo mundo. A autora leva em consideração as utopias em sentido estrito, mas também pensadores como Mannheim e Bloch, procurando entender como a utopia redefiniu seu próprio status ao longo das principais revoluções filosóficas da era moderna. Em Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l’utopia della felicità secondo natura, Claudio De Boni analisa a relação entre a expansão do mundo real e sua conseqüência, a “descoberta” literária de lugares inexistentes nos quais são projetados os desejos de aperfeiçoamento social no âmbito do século das Luzes, quando a descoberta de novas terras à margem da civilização alimenta o mito da “ilha feliz”, estreitamente ligado ao motivo iluminista do estado de natureza como termo de confronto e de juízo. De Boni analisará dois autores que se inserem nesta rede de relações: Louis-Antoine de Bougainville, autor do relato de viagem de uma das mais longas e celebradas viagens reais do século dezoito, e o filósofo Denis Diderot, autor do Supplément au voyage de Bougainville, de 1772.Antonio Edmilson Martins Rodrigues, em América renascentista – um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía da Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais, defende a idéia de que a cidade do Rio de Janeiro não nasceu como feitoria, estando “mais próxima de uma cidade de ladrilhadores, aproximada de uma cidade clássica e apresentava-se possuindo duas portas, uma para a Europa e outra para o interior da América e uma esfera política capaz de animá-la com a idéia de um governo de colonos” – o que lhe possibilita ver a América como invenção renascentista. José Alexandrino de Souza Filho, em A arte do blefe: Montaigne e o “mito do bom selvagem”, analisa e discute o célebre episódio da visita dos índios canibais brasileiros à França, tal como o escritor e filósofo Michel de Montaigne o descreveu no ensaio “Dos Canibais”, demonstrando que ele foi inventado a partir de determinados fatos históricos, que o ensaísta alterou em prol dos seus objetivos literários, intelectuais e políticos. Historicamente falando, o autor considera tanto a visita quanto a “conversação” com os indígenas um blefe; literariamente, ele a julga uma pequena obra-prima de sagacidade e imaginação criadora. Num segundo momento são trazidas à luz, com base em documentos, as verdadeiras circunstâncias históricas que serviram de inspiração ao ensaísta francês, qual o suporte bibliográfico de que se serviu e como esses elementos aparecem no texto. O andrógino, o hermafrodita, o canibal e o selvagem: habitantes de terras utópicas, de Ana Cláudia Romano Ribeiro, discute o sentido dos significados atribuídos a estes quatro tipos de habitantes de terras utópicas expondo, em um primeiro momento, a origem e localização histórica dos mitos do andrógino, mítica expressão da completude, e do hermafrodita, seu contrário híbrido e desarmônico; em um segundo momento, analisando como o andrógino platônico torna-se o termo de comparação entre europeus e selvagens em “Dos canibais”, de Montaigne; e em um terceiro momento, relacionando os dois mitos aos habitantes bissexuados de duas utopias francesas do século XVII: A Ilha dos Hermafroditas, atribuída a Artus Thomas, e A Terra Austral Conhecida, de Gabriel de Foigny.Maria de Fátima Costa investiga um mito geográfico, surgido no interior da América Meridional: o da Laguna dos Xarayes, em La Laguna de los Xarayes. Un lugar en la geografia maravillosa de Sudamerica. Para tal, a autora acompanha sua invenção através das narrativas do século XVI, seus meios de difusão através de mapas dos séculos XVII e XVIII, e, por fim, sua dissipação durante os trabalhos de demarcação de limites, realizados durante a década de 1750, depois do Tratado de Madrid. Emerson Tin apresenta a tradução de doze d’As Cartas Iroquesas, escritas em 1752 por Jean-Henri Maubert de Gouvest. Nelas, um “Iroquês, de nome Igli, é enviado pela assembléia de valentes de seu povo para estudar os costumes dos europeus. As Cartas Iroquesas, escritas ao amigo Alha, são o resultado dessa viagem, em que o selvagem iroquês se depara com o civilizado mundo francês do reinado de Luís XV. Ou, melhor dizendo, o civilizado iroquês se depara com o selvagem mundo francês do reinado de Luís XV”. Mais do que mera cópia das Cartas Persas do Barão de Montesquieu, como foram consideradas, as Cartas Iroquesas, com sua crítica à religião, aos costumes da sociedade francesa e ao governo monárquico, configuram-se “como mais um dos inúmeros escritos que levariam a monarquia francesa ao desmoronamento, quatro décadas depois”. O artigo de Raymond Trousson, O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a Renascença, empreende uma ampla retomada da “ilusão americana” em cinco séculos de literatura utópica, em que a América, ornada inicialmente pelo prestígio dos desconhecidos longínquos, vestígio da idade de ouro na terra prometida, pátria do bom selvagem, espaço virgem aberto às comunidades de boa vontade, torna-se, paulatinamente, exemplo de anticivilização, de anti-humanismo, como se vê nas distopias, mas sem a qual, este gênero literário não teria podido desabrochar tão largamente. Inaugurando a sessão de resenhas, a Morus 3 traz Ciudades en Utopía. En torno a un estudio de la ciudad ideal, de Hanno-Walter Kruft, escrita por Pablo Diener, que apresenta a proposta do autor de Städte in Utopia. Die Idealstadt vom 15. bis zum 18. Jahrhundert, lúcida, inovadora e atenta a seguir uma perspectiva problemática e multidisciplinar para uma compreensão cabal da cidade ideal, considerando componentes históricos, artísticos, filosóficos, éticos, estéticos, além de questões no âmbito da sociologia. Por fim, a resenha de Susana Souto Silva, Utopia em várias perspectivas, nos apresenta o número especial da Revista Leitura, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística/UFAL, que tem tema homônimo ao núcleo de pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas que o organizou: Literatura & Utopia. Boa leitura. Carlos Eduardo Ornelas Berriel | Editor I MINERVA, Nadia. “Viaggi in utopia . Note su alcuni romanzi dei secoli XVII e XVIII” em Utopia e... amici e nemici del genere utopico nella letteratura francese, Ravenna: Longo Editore, 1995.
II MINERVA, op. cit., p. 42. III Idem, ibidem, p. 52-53.
Sumário
Le “Jardin des délices” de Jérôme Bosh: une utopie du désir sublimé Utopia: gênese de uma palavra-chave Formas da utopia. As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade
de justiça Strategie della finzione nelle utopie del Cinquecento europeo. Sulla ricezione
dell’Utopia di Thomas More nei testi di Eberlin von Günzburg, Antonio
Brucioli, Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin e Tommaso Campanella Utopie, dystopie et histoire La question des langues dans l’Utopie de Thomas Morus No sertão do Maranhão, o império das Américas – Planos racionais de
povoamento nos roteiros de viagem do Grão-Pará e Maranhão do séc.
XVIII
Dois exploradores em cotejo: os novos mundos de Colombo e Galileu O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da
utopia Filosofi, utopisti, selvaggi Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l’utopia della felicità secondo natura América renascentista – um ensaio: as experiências modernas no espaço da
Baía da Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre
utopias e ideais A arte do blefe: Montaigne e o “mito do bom selvagem” O andrógino, o hermafrodita, o canibal e o selvagem: habitantes de terras
utópicas La Laguna de los Xarayes. Un lugar en la geografia maravillosa de
Sudamerica As Cartas Iroquesas de Jean-Henri Maubert de Gouvest (1752) O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a Renascença RESENHA Ciudades en Utopia. En torno a un estudio de la ciudad ideal, de Hanno-Walter Kruft Utopia em várias perspectivas
Capa
Editorial
Entregamos ao leitor interessado o segundo número da Revista Morus – Utopia e Renascimento. Nele vai um dossiê necessário: um esforço conjunto de definição da utopia como gênero literário. Em parte na vontade de salvar o conceito da banalização de seu uso sentimental, em parte na aposta de sua extraordinária riqueza quando bem compreendido, e resolutamente na convicção de que definir e separar gêneros é atividade central do pensamento. Neste empenho, cumpre elucidar os desdobramentos que a utopia conheceu no seu meio milênio de existência: a mais atual, certamente, a distopia. É bem sabido que a distopia nasceu da utopia, e que ambas expressões são estreitamente ligadas. Há em toda utopia um elemento distópico, expresso ou tácito, e vice-versa. A utopia pode ser distópica se não forem compartilhados os pressupostos essenciais, ou utópica a distopia, se a deformação caricatural da realidade não for aceita. A distopia, que revela o medo da opressão totalizante, pode ser vista como o oposto especular da própria utopia. É preciso considerar a relatividade daquilo a que se referia Margareth Mead, quando avisava ser o sonho de um o pesadelo do outro. Afinal, o sonho de um pode ser perfeitamente inócuo para o outro. Trata-se principalmente da constatação de que o “sonho” perfeito de um, quando é oriundo de um constructo abstrato (que é efêmero mas se quer eterno, que é singular mas se imagina universal, que aspira a decretar o fim da História por se crer o ponto de chegada da vida humana) este sonho é o que gera o pesadelo da distopia. Julga Bronislaw Baczco que “a utopia não orienta por si só o curso da história: em função do contexto no qual se coloca, essa corresponde aos desejos e às esperanças coletivas (...). Todavia, nenhuma utopia carrega em si o cenário histórico para o qual contribuiu eventualmente para sua realização: nenhuma utopia prevê o seu próprio destino histórico, o próprio futuro” (“Finzione storiche e congiunture utopiche”, in “Nell’ anno 2000 – Dall’utopia all’ucronia”. Leo S. Olschki editore, Firenze, MMI). Em outras palavras: as utopias, partindo de elementos reais, reconstroem todas as Histórias possíveis, todos os cenários que a História não realizou. A raiz desta idéia vem da Poética de Aristóteles, onde está dito ser a poesia mais ampla que a História, pois realiza até o fim aquilo que a História apenas esboçou. Hegel conceituará uma realidade notavelmente rica, em que o existente contará com várias dimensões – todas reais. Aquilo que aparece como uma tendência concreta, mesmo que não venha a se efetivar, também ganha estatuto de realidade. A utopia legaliza-se filosoficamente aí: é uma tendência da realidade, operante e efetiva, mas que não se efetiva enquanto Estado. Habita a dimensão ética. A sua condição de gênero está nos quesitos tendência de realidade e não-efetividade. A relação entre real e ilusório é estreitíssima na utopia, assim como no relato das viagens de descobertas. O imaginário estrutura a experiência real, enquanto esta serve de base para as elaborações posteriores: as fronteiras entre real e ilusório são, assim, indefinidas. Na utopia, o ideal se sobrepõe ao real com o mesmo compromisso com que, nas viagens de descobertas, une real e ilusório: as fronteiras entre verdadeiro e falso se diluem. Na utopia, a sociedade configurada histórica, cultural e politicamente é formalizada com o objetivo de ser superada através da imagem da Cidade ideal instaurada. Neste sentido é exemplar a adoção, por parte de muitos utopistas, do conto de uma viagem aventurosa que faz o narrador desembarcar em uma terra desconhecida. Tal presença reveste na utopia um papel fundamental: constitui aquela fratura espaço-temporal que permite a existência mesma da representação utópica; o longo percurso permite ao narrador deixar atrás de si a sua própria experiência social, política, religiosa e econômica para viver em um mundo cujo isolamento geográfico, e conseqüentemente histórico e cultural, criou instituições e costumes que nada tem em comum com a realidade originária do viajante. Somos assim colocados frente a uma sociedade radicalmente diversa; mas tal diferenciação na utopia se torna contraposição especular: a estrutura negativa da organização humana existente é sobreposta àquela estrutura positiva da Cidade Nova imaginada. Desta maneira, o utopista procura superar a realidade contingente propondo, como alternativa, uma sociedade perfeita enquanto racionalmente fundada. Ao contrário, na distopia a realidade não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da estrutura de um mundo grotesco. Em suma, é próprio da dimensão histórica a determinação da diferença entre a utopia e a distopia: o lugar feliz imaginado é realmente um não-lugar, no sentido em que não se coloca espacialmente na história mesma de quem escreve; porque aquilo que deseja o utopista é «mostrar» aos homens a imagem de um mundo feliz e racional, e através desta demonstração admoestá-los para que se sintam compungidos a imprimir energicamente à História um sentido diverso daquele até então predominante. Mas nem todos os exemplos desse gênero foram assim. As utopias da Contra Reforma não partiram de uma sociedade usada como referencia, portanto transfiguradas, mas conceberam uma polis e uma vida coletiva a partir de conceitos abstratos elaborados por uma Igreja intensamente defensiva. São metástases dos conventos e dos mosteiros, em que as práticas necessárias da vida extra-monacal (trabalho, convivência, casamento, reprodução, representação política, etc.) passam por um completo regramento que retiram dessas mesmas atividades a espontaneidade civil, e são traduzidas em disciplina clerical. Isso é central e constitutivo no orwelliano 1984, por exemplo. A distopia, portanto, é o alongamento do perfil das utopias construídas a partir de proposituras abstratas, e não de metáforas ou alegorias. O controle social absoluto, a partir das consciências, nascido na Contra Reforma, conduziu a uma variante de utopias, que encontra na Civitas Solis sua plena expressão, seu melhor exemplo, que fornecerá os elementos para a futura distopia. Esta não surge inesperadamente, como um raio num céu azul, mas já respirava nas anteriores utopias da Contra Reforma (Agostini, Patrizi, Buonamico). A noção de perfectibilidade social, então, não nasce – nem poderia nascer - de uma experiência humana concreta, geradora de problemas solúveis, mas nasce incontaminada pela História, nasce como constructo ideal, em que a dimensão empírica do homem está removida. A solidão que emana das pinturas de Piero della Francesca sobre a cidade ideal (em que pese a especificidade de suas condições de realização) diz muito sobre isso; não são cidades construídas para o homem realmente existente, mas um conjunto no qual a arquitetura e o urbanismo cederam lugar e substancia à escultura, e a presença humana desequilibra e borra o conjunto. Sua racionalidade resulta áspera, e seus índices de condução à emancipação da vida associada mesclam-se ao seu oposto, à sua própria negação: como Édipo em Colono, o indivíduo acaba expurgado da polis que ele libertou da quimera enigmática. Existiram dois momentos centrais da História marcados pela intolerância, e que possivelmente forneceram os elementos fundantes da distopia; foram duas conjunções sociais frágeis, instáveis, defensivas – apesar da aparência em contrário: a Igreja Católica tridentina e o Estado soviético. Essas instituições, no seu processo afirmativo, criaram a ilusão de serem perfeitas por não poderem suportar a dissensão – o que efetivamente poderia destruí-las. A ilusão de serem formas perfeitas, utopias já realizadas, gerou, ainda que involuntariamente, o material que será formalizado na distopia. Quando Campanella construiu sua cidade perfeita como uma hipostasia da vida monacal, estava implicitamente considerando a Igreja como a perfeição da vida coletiva; quando a esquerda do século XX considerou a utopia um não-assunto, estava considerando o coletivismo soviético como o ápice insuperável do viver associado. A grande questão é aquilo que constitui a face oculta, o não-dito utópico: que a perfectibilidade reside na completa previsão das ações e desejos humanos, que são realizados antes mesmo de serem pensados. O Estado pensou antes e já o realizou. Ou o vetou. Em termos mais amplos, a História não se efetivaria pela concreta experiência humana, mas como produto de um Estado onisciente; a História apareceria como subproduto das pulsões humanas, coadas pelo filtro estatal. O resíduo obstruído pelo Estado acumular-se-ia aonde? A resposta será a distopia: ela é o resíduo obstruído pelo Estado completamente racional. A distopia é afinal, espelho da suspensão da História; sua imagem é o exílio da humanidade, tornada resíduo, esta, pela razão enlouquecida. Aqueles que recentemente teorizaram o fim da História, à sombra benevolente do capital financeiro, proclamavam o pesadelo como se fosse uma boa nova. *** Dentro do Dossiê A Utopia como gênero literário, a Morus 2 traz um texto já clássico de Luigi Firpo, essencial para o esforço de definição das utopias. Prudente, Firpo já acreditava em 1986 ser necessário evitar que o interesse despertado pelo utopismo “nos leve a dilatar excessivamente seus confins até transformá-lo em tudologia”, ou seja, que a excessiva abrangência acabe por perder a definição do gênero. Muitas são efetivamente as dimensões da cultura – o urbanismo, a política, a reforma das estruturas sociais – que interessam à utopia; e Firpo crê ser nosso dever começar um trabalho de classificação para estabelecer quais são exatamente os limites que devem separar os nossos campos de investigação, principalmente para poderem falar todos da mesma coisa. Convencia-se o grande historiador “que uma utopia, para poder ser definida como tal, para poder ingressar neste “gênero”, deva ser global, radical e prematura”: “global porque o projeto de reforma, sendo substancial, sendo perturbador, mas limitado a uma pequena instituição, a um aspecto singular da nossa vida em comum, não pode, aspirar ao nome de utopia”; “radical, porque um projeto que implique leves variantes, pequenos retoques, um deslocamento quase imperceptível das estruturas da sociedade em um ou outro sentido, é assunto de todos os dias”; e enfim, “a característica mais importante de todas, aquela que realmente distingue o ‘gênero’ utópico dos programas de reforma e do reformismo em geral, é a lúcida consciência do seu caráter prematuro”. Daí sua célebre imagem: “A utopia é historicamente uma mensagem na garrafa, a mensagem de um náufrago”. O artigo de Cosimo Quarta (L’utopia come progetto e processo storico: dall’età antica all’alto Medioevo) parte da sólida convicção de que a utopia não deve ser considerada apenas como um mero fato literário, sem que se leve em conta seu próprio conceito e que se revele seu papel histórico. Sem diminuir a real importância que possuem os projetos histórico-literários, Quarta propõe voltar a atenção sobretudo para a utopia histórica, ou seja, para os projetos que a humanidade não apenas tem elaborado desde sempre, mas também historicamente realizado. Ao conceber a utopia como projeto e processo histórico, seu campo de investigação cresce enormemente, incorporando em seu horizonte a inteira história humana. Proposta ambiciosa e estimulante, sem dúvida. Teria, para ele, chegado o momento de pensar a elaboração de uma história universal da utopia. Raymond Trousson, em Utopia e Utopismo, lança uma indagação seminal: devemos nos interrogar sobre as condições necessárias e suficientes para constituir aquilo que deveria poder se definir como gênero literário, que é ao mesmo tempo expressão de um comportamento geral do espírito e distinto de outros gêneros, limítrofes ou aparentados? Em uma palavra, como delimitar a amplitude da investigação e circunscrever o corpus? Na busca de resposta, Trousson inclina-se pela posição de Bronislaw Baczko que, falando das fronteiras movediças da utopia, lembra que duas abordagens metodológicas são concebíveis: 1) a apreensão lato sensu do fenômeno, que julga que sendo a utopia literária somente um dos modos de expressão do imaginário social, convém abrir a pesquisa às manifestações híbridas, recorrendo a múltiplos paradigmas discursivos, permitindo assim a compreensão das imagens-guia e das idéias-força, estruturando este imaginário em uma dada época; 2) a apreensão stricto sensu, que reconhece ter sido a viagem utópica durante muito tempo a forma privilegiada do pensamento utópico. Uma primeira tarefa talvez consista em definir a utopia de maneira negativa, distinguindo-a por seu propósito ou sua intencionalidade, de gêneros limítrofes ou aparentados. Com efeito, se a utopia – como o utopismo – supõe a vontade de construir um mundo outro e uma história alternativa, ela se revela essencialmente humanista ou antropocêntrica, na medida em que, pura criação humana, ela torna o homem mestre de seu destino. Em seu artigo, Vita Fortunati (Utopia and Melancholy: na Intriguing and Secret Relationship) expõe que a utopia e a melancolia, à primeira vista, parecem ser dois termos contraditórios, já que a utopia está sempre associada à idéia de felicidade ou harmonia e deleite. De fato, utopia é apresentada como um projeto racional, sustentado por uma razão que quer remover todos os defeitos e males da realidade para criar ordem no caos e corrigir a desarmonia e a maldade do mundo. Sua hipótese de trabalho consiste em revelar um paradoxo: as obras concebidas conforme os princípios da razão são freqüentemente provocadas por uma reação irracional. Por essa razão, ao estudar o íntimo e intrigante vínculo entre utopia e melancolia, parece ser muito importante traçar as razões que induziram o utopista a esboçar sua obra. No artigo O sentido do gênero literário utópico no século da Ilha dos Hermafroditas, Ana Claudia Romano Ribeiro localiza a Ilha dos Hermafroditas, de Artus Thomas (1605) em relação às outras utopias publicadas na França no século XVII, estabelecendo assim um sintético panorama das utopias e do sentido do gênero utópico neste século. Observa que nessa circunscrição histórica, a criação literária utópica toma impulso, especialmente no fértil terreno filosófico de novas elaborações do paradigma: “a utopia corresponde ao projeto absolutista que ela ilustra e reforça”. As utopias deste século mostram uma vontade de laicizar o Estado, de limitar ao máximo a presença da Igreja nas decisões do governo, de afirmar a dessacralização da natureza e de recusar a religião.Além deste significativo fato, as descobertas geográficas, estimuladas pela política de colonização de Colbert, inspiram relatos de viagens que contribuíram para a associação da utopia com a viagem imaginária. Os relatos de viagens reais povoam as entrelinhas das obras utópicas deste período, e serviram de base para as descrições nas utopias francesas, dotadas de abundantes informações, de detalhes, de verossimilhança, enfim, de realismo narrativo. Os utopistas procuravam uma linguagem que reproduzisse o mesmo sabor de autenticidade característico dos relatos de viagens reais neste século, e o aspecto romanesco prima sobre os demais, contrastando vivamente com as primeiras utopias, de Morus, Bacon ou Campanella: o texto utópico se aproxima da ficção, os utopistas adquirem o gosto da precisão, do verismo, com menos especulações filosóficas, detalhando informações sobre a vida do protagonista, recheando seus textos com informações científicas específicas, com detalhes geográficos, descrições paisagens, animais e comportamentos exóticos, situando com exatidão suas cidades utópicas, obtendo credibilidade e verossimilhança. Na primeira parte deste texto o autor incursiona nos domínios teóricos de várias disciplinas, além, é claro, da História, a fim de tratar os campos conceituais dos significantes "utopia" e "modernidade". Na segunda parte aborda alguns aspectos e problemas que resultam da análise da utopia, ou melhor, das utopias, no espaço-tempo da modernidade: formas, conteúdos, processos e relações com algumas outras regiões do "imaginário social". Na terceira parte examina a hipótese de ser a modernidade ela mesma uma utopia, derivada da utopia das Luzes, o Iluminismo, mas convertida, no século XX, na ideologia dominante. Falcon examina, ainda, a persistência ou não de utopias opostas à modernidade e a necessidade do pensamento utópico como instrumento de superação dos impasses da própria modernidade, preservando-se ou não, conforme as perspectivas em conflito, o essencial da herança iluminista. Além do Dossiê Utopia como Gênero Literário, a Morus 2 traz matérias de interesse para o estudioso do Renascimento. Na matéria intitulada “A invenção do campo disciplinar da Arquitetura: contribuições e contraposições renascentistas”, Carlos Antônio Leite Brandão indica que, se a constituição madura do campo disciplinar da Arquitetura só ocorrerá no século XVIII (quando da consolidação do agrupamento moderno das artes), pensar a Arquitetura como disciplina no Renascimento só pode ser visto como um momento proto-moderno, quando ela não mais se enquadra nos agrupamentos medievais enquanto arte mecânica ou subalterna - na medida em que foi aproximada das artes liberais do espírito e do desenho, como em Vasari - mas ainda não adquiriu a constituição autônoma que a distinguirá das ciências, da moral e das demais artes. Brandão busca estudá-la nesse intermezzo e dar a ver em que medida se altera o local que ela ocupa na cultura e no saber diante do medievo, e quais as contribuições que ela, se examinada neste novo local cultural, fornece para a nossa produção e seu estatuto disciplinar na contemporaneidade. O artigo relata algumas contribuições oferecidas pela Renascença para a constituição futura do campo disciplinar da Arquitetura, tal como ele será compreendida no moderno sistema das artes. Contudo, isto não recobre toda a Renascença pois é justamente ao não definir-se rigidamente dentro de uma determinada fronteira que a arquitetura do quattrocento deixar-se-á contaminar por outros campos, tais como a ciência, a matemática, a retórica, a literatura clássica, os studia humanitatis e as demais artes. Brandão conclui seu estudo examinando como a invenção na arquitetura do Renascimento (Alberti e Leonardo) se deu justamente a partir deste contágio e de ser seu campo difuso. O artigo de Helvio Gomes Moraes Jr. (Percorrendo a Cidade Feliz: uma leitura da utopia patriziana) pode ser lido como complemento àquele em que apresentou a tradução de La Città Felice, de Francesco Patrizi da Cherso, publicado no primeiro número da Revista Morus. Ali, indicou algumas especificidades da cidade utópica patriziana às quais, agora, se detém, propondo, assim, uma espécie de roteiro de leitura do trattatelo. Busca, principalmente, compreender o pensamento político e filosófico, ainda em formação nesta obra inaugural de Patrizi. Sua composição data de 1551, quando o autor freqüentava o Studio paduano. Foi publicada dois anos mais tarde, em Veneza. Porém, mais que exercício acadêmico, no sentido de uma disputatio, tal escrito chama a atenção por já conter os germes de temas bastante caros a Patrizi, a serem desenvolvidos posteriormente e que virão a constituir o cerne de seu pensamento. Partindo de uma realidade histórica atual, a da escolha em andamento de três línguas paras comunicações oficiais na Comunidade Européia – o francês, o inglês e o alemão – Laura Schram Pighi faz uma reflexão sobre a língua italiana, que não encontrou lugar na proposta européia, colocando-a em relação com a língua futura representada nas utopias, apoiando seus argumentos sobre o italiano do futuro em um conjunto de utopias literárias italianas dos dois últimos séculos, e também em textos não utópicos. O editor desta revista comparece com a tradução para o português de A Ilha de Nársida, de Matteo Buonamico, uma das utopias italianas do século XVI. Este escrito pretende demonstrar, em estilo altamente característico do período, aquilo que convém a um príncipe – trata-se de um espelho de príncipes. Admoesta o autor ao hipotético leitor a exigência de liberar-se das paixões, de desfazer-se dos vícios, para bem viver no consórcio civil; e, assim, moralmente livre, poder abraçar a sujeição a Deus e ao Príncipe, que seria, portanto, a servidão voluntária. Uma das qualidades deste tratatello é demonstrar como o sentido utópico era comum no Itália do cinquecento. Desta forma a Revista Morus dá continuidade ao seu projeto de ampliar a biblioteca de obras utópicas em língua portuguesa. Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Sumário
O que é Natureza? O que é Natural? Percorrendo a Cidade Feliz: uma leitura da utopia patriziana A invenção do campo disciplinar da Arquitetura: Quale Italiano per L’Europa Futura? DOSSIÊ: Utopia como gênero literário O Elogio dos Garamantes de Mambrino Roseo (1543) Utopia e Utopismo Utopia and Melancholy: an Intriguing and Secret Relationship What is a Utopia? Utopia e Modernidade L’utopia come progetto e processo storico: O sentido do gênero literário utópico Para uma definição de “Utopia”
Capa
Editorial
Nasce a Revista Morus – Renascimento e Utopia. Resultado do esforço de um grupo de pesquisadores, nasce a contrapelo da hegemonia pragmática dos tempos que correm. Nasce sob o signo austero que regeu também as utopias no seu nascedouro histórico, o Renascimento. Como as utopias, a Revista Morus olha para o aparente e vislumbra o apenas insinuado, a hipótese generosa sonegada por um tempo cruel e áspero. Aposta, assim, na possibilidade da retomada de um fio histórico que foi cortado, e quer denunciar este fato. *** Em primeiro lugar, embora pareça que a sombra das utopias se estenda ao supra-histórico, ela é sempre ligada à realidade presente pelo desejo de modificá-la, e pelo seu repertório de imagens: a utopia é sempre datada, porque apresenta solução de problemas históricos bem localizados. Para alguns estudiosos a utopia seria uma antecipação do futuro, uma previsão que apenas gradativamente pode produzir resultados no sentido desejado, uma mensagem na garrafa que só muito mais tarde pode ser recolhida, entendida e aplicada. Para o historiador Luigi Firpo, o “utopista é um reformador tão profundamente consciente do caráter prematuro e extemporâneo do seu projeto, que sabe não poder redigir em forma de programa concreto e se induz, portanto, a cogitar uma forma diferente de comunicação e de proposta”. *** Circunscrita a esta dupla temática, Renascimento e Utopia, a Revista Morus sai com a finalidade de estudar todos estes problemas. Sob a regência da História e da crítica, publicará estudos e investigações sobre a rica problemática das sociedades imaginárias e imaginadas, diversas do existente. Concebe o real não apenas como aquilo que existe empiricamente, mas também como aquilo que pode – e deve ser. Dignifica a virtualidade humana, e suspeita do pragmatismo. Em algum lugar, além do horizonte, o céu é (ou pode ser) azul. Carlos Eduardo Ornelas Berriel | Editor
Sumário
Progetti utopici ed architettonici: L’utopie au XVI e siècle comme idéal de rénovation La Cité, l’architecture et les arts en Utopie De uma definição a outra: sobre alguns prefaciadores A cidade perfeita e a ficção do conselho: Percursos de aproximação de A Tempestade, La Basiliade nello sviluppo dell’opera di Morelly A Cidade Feliz: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi Uma utopia plebéia do Cinquecento: Mondo Savio e Pazzo A Ilha dos Hermafroditas em seu ambiente histórico Formação e caráter da utopia italiana no Renascimento
Capa
|