Nasce a Revista Morus – Renascimento e Utopia. Resultado do esforço de um grupo de pesquisadores, nasce a contrapelo da hegemonia pragmática dos tempos que correm. Nasce sob o signo austero que regeu também as utopias no seu nascedouro histórico, o Renascimento. Como as utopias, a Revista Morus olha para o aparente e vislumbra o apenas insinuado, a hipótese generosa sonegada por um tempo cruel e áspero. Aposta, assim, na possibilidade da retomada de um fio histórico que foi cortado, e quer denunciar este fato.

Existe no ar atualmente um clima de retorno ao tema da Utopia. Depois de serem liquidadas por Engels, com sua tese de que o socialismo científico tornaria supérfluo e superado o socialismo utópico, e da ampla difusão das formas modernas de democracia, as utopias pareceram desaparecer definitivamente no oblívio da lata de lixo da História. O socialismo de tipo leninista deu a impressão a muitos, por um certo tempo, que iria realizar no mundo as idéias de um perfeito convívio humano, baseado na racionalidade. No entanto, o hiper-racionalismo stalinista (conceito elaborado por Georg Lukács) jogara fora certos elementos utópicos necessários a um socialismo mais generoso, e esta lacuna tornou-se evidente com os trágicos acontecimentos de 1989 para cá. O retorno do interesse pela questão utópica coincide, de certa forma, com a queda do muro de Berlim e seus tormentosos desdobramentos. Entretanto, o longo sono das utopias, causado pela engenharia social das nações de capitalismo atrasado (que gerou o fascismo e o socialismo de tipo soviético) foi mais aparente que real: a miragem selvagem do fim da História jamais impediu a produção de vasta obra utópica, que, entretanto, pendeu para seu lado negativo: as distopias. Numerosas no século XX, eficientes complicadoras no horizonte do gênero, as distopias são as utopias negativas, o pesadelo social de que os romances 1984 e Animal Farm e a rica ficção científica são bons exemplos. A distopia, porém, está muito próxima de sua antípoda gêmea, pois o sonho de um é o pesadelo de outro, como dizia sabiamente Margareth Mead. A semântica, porém está bem embaralhada: afinal, o que é uma utopia? Podemos tentar definir este gênero, necessariamente situando-o no período de seu nascimento – o século XVI.

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Em primeiro lugar, embora pareça que a sombra das utopias se estenda ao supra-histórico, ela é sempre ligada à realidade presente pelo desejo de modificá-la, e pelo seu repertório de imagens: a utopia é sempre datada, porque apresenta solução de problemas históricos bem localizados. Para alguns estudiosos a utopia seria uma antecipação do futuro, uma previsão que apenas gradativamente pode produzir resultados no sentido desejado, uma mensagem na garrafa que só muito mais tarde pode ser recolhida, entendida e aplicada. Para o historiador Luigi Firpo, o “utopista é um reformador tão profundamente consciente do caráter prematuro e extemporâneo do seu projeto, que sabe não poder redigir em forma de programa concreto e se induz, portanto, a cogitar uma forma diferente de comunicação e de proposta”.

Para alguns, a utopia seria uma projeção longínqua da realidade política existente no momento mesmo da redação do texto, e uma inteligência antecipadora com relação aos acontecimentos históricos que se efetivarão posteriormente. Assim, a utopia seria uma aspiração subjetiva, um desejo de renovação que colide com a mentalidade comum. Para outros, a utopia seria uma corrente histórica de renovação social, fundada sobre valores e necessidades considerados essenciais, tais como liberdade, igualdade, justiça, irmandade – e que foram esquecidos ou descurados. A utopia seria o contínuo retorno desses valores e necessidades como exigência perene, ineliminável. Com certeza não faltaram motivos sociais para o surgimento das utopias: o caos do nascente capitalismo mercantil, uma nobreza frívola e ávida, um clero corrupto e ocioso, o parasitismo pululante, o ofício das armas reduzido à rapina de ociosos, um pauperismo deprimente, a fome, o escombro da antiga sociedade e o nascimento brutal de uma nova forma de Estado. O amor pelo quieto viver condenará tudo isso, e buscará os valores projetados na Utopia.

A explicação mais geral do nascimento deste gênero literário, tão próximo da história, da filosofia e da política, segue basicamente a idéia de que a Utopia foi gerada pelo processo burguês de racionalização da vida, tão própria do Renascimento. Naquela atmosfera, o homem do Renascimento experimentava a idéia de se conceber como autor de sua própria existência, e a utopia foi uma busca de soluções racionais para os complexos problemas da convivência humana, em todos os planos. O gênero utópico reflete as tensões da época, a difícil busca do equilíbrio entre tradição e reforma.

Para os homens daquele tempo, possuídos pela idéia de guiarem por si mesmos a sorte pessoal e o destino da humanidade, foi decisivo a fixação de normas de conduta e a regulamentação de cada aspecto da vida prática. Todos podiam e deviam responder a critérios universalmente válidos: para cada setor de atividades havia uma norma, uma guia, uma regra, um código.

É provável que nenhum dos principais autores das utopias do Renascimento cresse que a sociedade descrita fosse realizável – ao contrário dos socialistas utópicos do século XIX. Mas quiseram criticar a sociedade de sua época e propor reformas, cumpridas imaginariamente na sociedade utópica.

A obra de Morus, que funda o gênero, aparece no seu complexo como um esforço no sentido de uma idéia mais justa e mais humana nas relações entre indivíduos e nações. Em toda utopia a Cidade é o elemento fundamental, com a sua organização e o seu devir terreno; é uma construção humana fundada sobre a fé na salvação do homem não por meio de uma graça transcendental, mas por ele mesmo. Neste sentido Morus é bastante moderno: as suas principais preocupações são a dignificação do trabalho, a planificação da produção e uma frutuosa organização do tempo livre. As relações externas – como sempre nos utopistas – são pouco freqüentes; os habitantes dos mundos imaginários se contentam com suas autarquias e este isolamento lhes preserva da corrupção externa. Ascetismo e frugalidade pertencem à norma. Morus é, sobretudo, atento a um desenvolvimento harmônico do indivíduo: privados de preocupações materiais, sem dissidências internas e ameaças externas, os utopianos estão livres para aprofundar as suas consciências, abrir as suas almas e as suas mentes: cultivam a música, a dialética, a aritmética e a geometria, mas desprezam a escolástica, a metafísica e a astrologia. Ao mesmo tempo estóicos e epicuristas, limitam-se a viver segundo a natureza.

Sua economia igualitária corresponde um ordenamento político que busca reduzir ou mesmo eliminar as diferenças sociais. Nesta federação democrática de condados autônomos – compromisso entre cidade antiga e Estado moderno – a coesão se apóia sobre consensus omnium: a vontade coletiva é maior que a soma das vontades individuais.
A Utopia de Morus é definitivamente um livro da razão. Mas, mesmo criando um regime em condições de eliminar as chagas da sociedade daquele tempo, não indica, porém, os recursos para passar da teoria à prática, permanecendo assim no plano especulativo. Está de acordo com as aspirações do humanismo que preferia a justiça à ação revolucionária – está longe do Príncipe e do Que Fazer. Contra as utopias redigiram-se pesadas críticas, em que foram apontadas como promotoras de uma atitude cega para as “realidades humanas”, tais como as ambições, o desejo de poder, etc. É fácil conceber uma sociedade ideal quando a dura realidade, que sempre oferece obstáculos, não é levada em consideração. Uma sociedade utópica funcionaria perfeitamente apenas porque funcionaria no vazio. Também já foi dito que o espírito revolucionário utópico acabaria por se dissolver por si mesmo, já que numa sociedade perfeita não cabem revoluções nem, portanto, mudanças e progresso.

É evidente que no paraíso de Utopia respiram inquietantes sintomas de opressão. O indivíduo é sempre exposto ao olhar coletivo, e “o estar sob os olhos de todos gera a necessidade de dedicar-se ao trabalho usual ou a lazeres não desonestos”: é o mito da transparência, o palácio de cristal atento ao desvio individual. Morus é atormentado por um dilema comum a todos os utopistas: para salvaguardar a instituição ideal, criada para o indivíduo, ele corre o risco ao contrário de oprimi-lo, e como todos os utopistas, resolve o problema pressupondo que cada qual reconheça a coincidência entre necessidade e liberdade: a opressão não está nas intenções, mas nos fatos. O que é, então, esta utopia? O sonho de um filósofo platônico? Ou uma sociedade evangélica sobre o modelo das primeiras comunidades cristãs? É uma sátira da política inglesa do período ou talvez um anseio de conjunção entre o comunismo aristocrático de Platão e o comunismo moderno? Ernst Bloch considerou Morus como um “um ponto de referência na via do socialismo científico”. Todavia, como já observara Karl Kautsky, Morus não ousou colocar um fim na exploração dos pobres, e apenas previu a possibilidade de instaurar o comunismo pelo alto, por meio de um príncipe. A Utopia, resultado da tensão entre feudalismo e capitalismo, é na realidade a obra de um humanista cristão (depois um santo da Igreja) que vê no orgulho um verdadeiro câncer social, e no seu reino imaginário não existe traço daquele egoísmo que é o primeiro sintoma da economia monetária; os alimentos consumidos em comum, o uniforme, a mesma educação, a abolição da propriedade privada, o trabalho obrigatório e uma vida austera derivam deste abscesso confessional. A perspectiva de Morus não é econômica, mas ética: é a de um homem da ordem que quer a felicidade do povo, mas não através do povo, do qual teme a violência.

O notável Luigi Firpo considera que, para definir as características do utopismo do Renascimento, seria necessário ao mesmo tempo definir o clima espiritual do início do Cinquecento. Predominaria o que ele chama de Racionalismo Humanístico, no qual existe um anseio de alegria e autonomia humana, o orgulho da supremacia e quase onipotência da inteligência, que se traduziria em otimismo operoso e no sentido destemido e heróico da vida. Afinal, acostumado há séculos a comedir o próprio agir segundo uma férrea norma positiva transcendente, o humanista reconhece estupefato no mundo uma razão suficiente, intrínseca, válida, que lhe assegura toda harmônica operação: a natureza. E no seu próprio íntimo esta natureza se faz consciente, e toma o nome de Razão. A Razão, por sua vez, torna-se guia e medida do agir. “Virtù” para Morus é “viver secondo natura”. Em decorrência, segue a guia da natureza aquele que obedece à Razão, que é a natureza consciente de si mesma, no seu íntimo.

Do impulso confiante de traçar por si a própria estrada no mundo, de forjar o mundo mesmo como criação da mente, nasce a crítica à tradição, a negação da estrutura histórica da vida associada. Este processo intelectual, que tanto deve a Bernardino Telésio, desloca o lugar da natureza de cenário para cena. A questão é: a natureza possuiria qual finalidade? A do auto-reconhecimento no e pelo Homem. Os sentidos (vasos comunicantes do Homem com a Natureza) tornam-se critério de conhecimento. A ciência moderna, galileana, depende deste novo princípio: forjar o mundo a partir da mente, que é portadora da Razão que está na Natureza. Conectar-se racionalmente à natureza significa, por decorrência lógica, romper com a tradicional forma da vida associada. Em todos os campos a razão nutridora de experiência se põe confiante a ditar normas para todos os aspectos do agir prático: daí ser o Cinquecento a idade dos manuais. O retorno à natureza, para dela extrair normas incorruptas de vida coletiva, envolvia imediatamente, no terreno político, o conceito de igualdade, que por sua vez conduzia ao conceito de legalidade; o despotismo desabusado da idade dos tiranos, a brutal concepção do Estado Absolutista, patrimonial, capaz de todas as arbitrariedades, claramente contrastava com a visão idílica da concórdia fraternal dos Homens. Em outras palavras, o Racionalismo de base naturalística opunha-se ao instituto da Monarquia Absoluta, que guardava ligações substanciais com a tradição na vida associativa. Esta aversão ao Estado-força renascentista buscaria restaurar os princípios jurídicos subtraídos pelo arbítrio dos déspotas, e impunha o reconhecimento dos direitos congênitos da pessoa, que amadurecerá na teoria do direito natural – mas aí já estaremos no século XVIII.

O mesmo Luigi Firpo coloca o Concílio de Trento como o núcleo dinâmico que redimensionou os problemas contemporâneos: a partir dele os antigos problemas se esvaziaram, e em decorrência novos problemas tornaram-se hegemônicos, como por exemplo o moralismo, na forma da confrontação sistemática e escrupulosa entre os valores humanistas do Renascimento e os perenes valores ético-religiosos da tradição. Na posição utópica, que consistia na proposta confiante e convicta de modelos de sociedades perfeitas, auto-suficientes e felizes, existiam elementos radicalmente incompatíveis com o clima espiritual trentino. Predominava nas utopias um fundo de epicurismo latente, um otimismo na busca de felicidade na Terra contrária à concepção cristã da cidade celeste, beatífica e perene; havia a implícita exaltação humanística da Razão e da autonomia do homem e um imanentismo recôndito no íntimo daquela sociedade imaginária tão radicalmente autárquica, que subsiste sem nenhum pressuposto de transcendência. Além disso, a religião no interior das utopias possui um caráter postiço e vago, predomina um deísmo genérico, sem dogma, acolhido apenas em vista do valor social e moral das religiões e inclinado, portanto, a reconhecer nas diferentes crenças uma equivalência substancial.

A esta tendência a Contra Reforma veio contrapor toda a complexa estrutura dogmática e teológica do catolicismo positivo, e congelou bruscamente a entusiástica fé nos ditames da razão humana. Segundo Firpo, no Seicento a utopia se tornará, “fraca, privada de todo conteúdo social”, porque a nova época não é mais da razão, mas ligada à remota tradição dogmático-escolástica, e dela quer extrair os princípios normativos da vida associada. A Contra Reforma infligiu um duríssimo golpe à liberdade de imaginação dos utopistas. Temerosa e prudente, a utopia retorna à ordem e ao seio da Igreja. O ideal da “virtù” se enfraquece, enquanto a utopia empobrecida se limita a um cauto reformismo controlado pela autoridade. É este o crepúsculo da utopia italiana do Renascimento, submetida à dramática reductio ad unum da Contra Reforma.
Tal ofuscamento do pensamento utópico não ocorre apenas na Itália. Na segunda metade do século a obsessão da religião e do rigorismo ético influi pesadamente sobre o sonho da cidade ideal, que assume uma rigidez e uma austeridade nas quais o humanismo não pode mais ser reconhecido. Um grande exemplo disso está na Cidade do Sol, de Campanella: raramente uma utopia se mostrou tão opressiva e destruidora das mais elementares liberdades individuais. Na sua Civitas Solis apenas o Estado conta: cada coisa é “observada religiosamente para o bem público, não privado”. Arregimentado do nascimento até a morte, duramente privado de qualquer vontade anárquica, o que deve prestar contas ao Estado inclusive das suas menores ações e dos seus pensamentos, não conhece amor e família, e se anula na coletividade, na qual encontra reconfortante anonimato e é, em aparência, muito feliz. Com realismo e misticismo, com paixão e lógica rigorosa, Campanella constrói uma cidade que deságua, em nome da felicidade e da virtude, num mundo de campos de concentração, cujos habitantes são ao mesmo tempo carniceiros e vítimas.

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Circunscrita a esta dupla temática, Renascimento e Utopia, a Revista Morus sai com a finalidade de estudar todos estes problemas. Sob a regência da História e da crítica, publicará estudos e investigações sobre a rica problemática das sociedades imaginárias e imaginadas, diversas do existente. Concebe o real não apenas como aquilo que existe empiricamente, mas também como aquilo que pode – e deve ser. Dignifica a virtualidade humana, e suspeita do pragmatismo. Em algum lugar, além do horizonte, o céu é (ou pode ser) azul. 

Carlos Eduardo Ornelas Berriel | Editor