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Guitarra sem sotaque

Ora  venerada,   ora rechaçada pela  crítica musical  –  por ter  sido  considerada  símbolo  do  estrangeirismo  ou  da presença norte-americana no Brasil –, a guitarra elétrica, de origem norte-americana,  insere-se  de  forma  gradativa na música popular brasileira, a partir de meados do século 20, até se tornar um instrumento importante em várias formações instrumentais da música popular brasileira. Originada como um desdobramento do violão, a guitarra tornou-se elemento importante para compreender o projeto de busca  de  identidade  nacional  para a música. Na  busca  de  um Brasil brasileiro, honrado pelo samba, pelo choro, pela bossa nova, pelo  frevo, pelo baião, pelo rock nacional, muitos ousaram nomeá-la guitarra brasileira, mas estudos  acadêmicos  realizados pelo professor de guitarra do Departamento de Música da Unicamp Eduardo Visconti  em  sua  tese mostram que, na verdade, o que houve foi uma série de adaptações do instrumento à música popular brasileira, de acordo com  a  interpretação  individual  de cada  instrumentista.  “Não  existe uma guitarra brasileira  só. Existem várias  linguagens  de música  brasileira adaptadas à guitarra. Como  se cada músico  construísse  um  estilo, um tipo de uma linguagem brasileira com  a  guitarra”,  explica Visconti.

Dois  desses  instrumentistas, Zé Menezes, 89,  e Olmir Stocker,  74, contribuem  para  contar  a  história da  guitarra  na música  brasileira  na tese  de Visconti,  que  é  a  primeira pesquisa de doutorado sobre guitarra elétrica  no Brasil,  orientada  pelo professor José Roberto Zan. Apesar de  atuarem  em  épocas  distintas  da história  da  guitarra  brasileira  e  se dedicarem a gêneros diferentes, Menezes e Stocker,  também conhecido como Alemão,  conseguiram  dar  à guitarra elétrica sonoridade de instrumentos tradicionalmente brasileiros, segundo  análise  feita  por Visconti.

A distância temporal torna a pesquisa de Visconti ainda mais abrangente. Um dos integrantes do cast de músicos da Rádio Nacional, na década de 1930, Menezes foi intérprete do primeiro concerto para guitarra e orquestra no Brasil, composto por Radamés Gnattali,  intitulado Concerto Carioca n° 1.  Stocker consolidou seu estilo na guitarra mais tarde, entre as décadas de 1960 a 1990, atuando com músicos de diferentes gerações. Em sua obra, Visconti diz ter encontrado características mais  idiomáticas  da guitarra, de técnicas adaptadas para a música brasileira, próprio de músicos da década de 1960 e 1970. “Escolhi Stocker porque fez parte de uma geração que consolidou esse instrumento na música popular brasileira. Apesar de também tocar outros instrumentos, a guitarra elétrica é a que mais aparece nos discos dele”, diz o pesquisador.

Na  análise  de  alguns  discos  de cada  instrumentista,  o  pesquisador constatou  que  os músicos  fizeram traduções sonoras dentro de um plano de ideologia nacional, o que orientou as escolhas estéticas deles. Segundo Visconti,  ao ouvir o  estilo presente em cada música, é possível identificar elementos de ressignifcação das ideias a partir da construção sonora. “Menezes dedicou-se a um repertório maior de samba e choro, que foram convertidos em gêneros que expressavam  a  brasilidade  na  década  de 1930, 1940. Num processo dirigido pelo  governo Vargas”,  explica. Em Stocker,  a  guitarra  elétrica  ressoa, além  de  samba  e  choro,  elementos de chamamé,  frevo, entre outros. O compositor  transitou  por  todos  os gêneros  regionais,  segundo Visconti.   “A partir das décadas de 1960 e 1970, a ideia de brasilidade não tem o mesmo sentido que nos anos 1940, vinculada ao samba e ao choro, mas foi  associada  a  uma multiplicidade de  gêneros.  Pode-se  dizer  que  a partir  da  década  de  1970,  a  ideia do que seria a identidade da música brasileira começa a ser representada pela noção de pluralidade”, explica.

Ao  transcrever as peças ouvidas durante  a  pesquisa  –  já  que  havia apenas  algumas  partituras  disponíveis  –,Visconti  observa  que  cada instrumentista  cria  uma  forma  singular de se tocar guitarra. Adaptado à música brasileira, o  instrumento é regulado com uma sonoridade mais aguda  que  a  do  jazz,  que  tem  um timbre mais aveludado (grave). Esta, segundo o pesquisador, pode ser uma característica importante da guitarra adaptada à música brasileira e da proposta de afastar a guitarra da origem norte-americana na década de 1920.

Conflitos

Entre  as  várias  perspectivas  da pesquisa, a que mais chama atenção, segundo Visconti, é como os estilos desses músicos  na  guitarra  expressam  conflitos  simbólicos  presentes na  sociedade no  século 20. Discursos  de  rejeição  ou  de  veneração  à guitarra  analisados  pelo  professor revelam  os  conflitos  entre  o  nacional  e o  internacional, o  erudito  e o popular, o que é  tradição e o que é modernidade. “E a guitarra  tem um simbolismo muito grande na música brasileira  porque  ela  foi,  durante muito  tempo,  associada  por  alguns críticos  como  símbolo  do  estrangeirismo  da  presença  norte-americana  no Brasil”,  reforça Visconti.

As peças solo para violão Contra-pontando e Três Irmãos, de Menezes, exemplificam o conflito entre o erudito e o popular. Na primeira, o compositor  executa vários  contrapontos de Bach, mas  inseridos num choro. Na opinião do pesquisador, as obras dão  indícios  da  proposta  de  abrasileiramento  de  coisas  importadas.

Outra  proposta  de  abrasileiramento  da  guitarra,  na  opinião  de Visconti, está na formação do grupo Velhinhos Transviados, na década de 1960, composto por dez músicos, em que Zé Menezes pegava um samba, tocava com guitarra e o som do contrabaixo era feito por tuba. “Já estava na  concepção  artística  dele  essa coisa de abrasileirar. Ele toca música do Elvis  ou  dos Beatles  com  base em maxixe”,  argumenta Visconti.

Além da análise, das transcrições e de trabalho historiográfico sobre a guitarra, a tese  foi  alimentada pelo discurso de Menezes e Stocker, obtido por Visconti durante muitas horas de entrevistas  com  direito  a  execução de suas músicas. Apesar de seus 89 anos, Menezes concedeu seis horas de entrevista, além de tocar “muito” ao lado do estudioso de sua obra. Com Alemão  também  foi  realizada  uma longa entrevista, anexa à tese. “Construí o trabalho a partir daquilo que eles entendem por uma linguagem brasileira  adaptada  à guitarra”,  enfatiza.

Adaptação

Depois da eletrificação da guitarra nos Estados Unidos, muitos músicos brasileiros  se  apresentaram  como reinventores  da  guitarra  no Brasil. Alguns  discursos  sobre  a  reinvenção do  instrumento no Brasil foram encontrados em artigos de jornais da década de 1930 a 1960. Em um dos textos de jornais usados na pesquisa, o jornalista trata a guitarra baiana como a gênese da guitarra brasileira, dizendo que Osmar Macedo, pai de Armandinho, é responsável pela invenção e pelo lançamento da guitarra no Brasil.

Segundo o pesquisador, existem outros discursos nesta linha. Em meados de 1933, o músico Henrique Britto, que acompanhou Noel Rosa aos Estados Unidos, decidiu permanecer no país norte-americano e teve a ideia de fazer um captador para um violão. Levou o dispositivo para uma empresa americana e, ao voltar ao Brasil, disse que havia inventado um instrumento novo. “Esta informação é importante para ver como a marca da cultura norte-americana veio impregnada na guitarra. Por outro lado, mostra a tentativa deles de se distanciarem mesmo da guitarra americana. Como se tivesse tido uma reinvenção do instrumento no Brasil”, pontua. Para ele, a adaptação nacional é uma das características de distanciamento de gêneros norte-americanos.

Para fundamentar suas constatações sobre a forma como a guitarra foi adaptada na música brasileira, antes da análise do repertório dos músicos estudados, Visconti ouviu várias gravações norte-americanas e enriquece a tese com apreciações do toque da guitarra de alguns instrumentistas norte-americanos. Uma discussão técnica sobre a guitarra e sobre sua origem, nos Estados Unidos, e sua trajetória, desde o blues até o jazz e o rock, revela que em sua origem, nos EUA, houve discursos questionando sua autenticidade por ser um instrumento sem potencial acústico, pois a propagação de sua sonoridade depende de um amplificador. “Até insiro na tese a possibilidade deste discurso ter sido influenciado a partir de um ideal de música erudita, pelo fato de os instrumentos serem acústicos por natureza e alguns músicos considerarem o som da guitarra artificial por causa da dependência de dispositivos eletrônicos”, explica Visconti. Segundo o pesquisador, alguns discursos da época analisados durante a pesquisa defendem que o amplificador poderia comprometer o som de instrumentos acústicos.

Até 1935, nos Estados Unidos, as guitarras acústicas eram adaptadas e não possuíam amplificador, apenas microfonação, processo em que microfones eram colocados na frente do instrumento. No Brasil também havia guitarras acústicas sem amplificador, segundo o pesquisador.

Uma descoberta interessante em tantos anos de pesquisa é que o violão foi também um instrumento marginal da década de 1920. Somente no começo da década e 1960, a partir do movimento modernista, ele foi reconhecido como símbolo nacional. Nesta fase, surge um instrumento chamado violão elétrico, mas não se sabe ao certo como ele seria. Para Visconti, são violões com captadores de som. Outro instrumento chamado de violão elétrico era construído com caixa de metal. E ainda havia um terceiro modelo, com captação de cordas de aço. “Como já existia outra problemática em torno da guitarra, por acreditarem que ela desestabilizaria a ideia do violão como instrumento nacional, então, o violão elétrico também foi um instrumento de transição”, explica Visconti.

Em alguns instrumentistas ouvidos pelo pesquisador, técnicas de guitarra já estavam presentes no violão elétrico. Ele encontrou até artigo extenso da década de 1950 rechaçando o violão elétrico justamente pelo mesmo problema da década de 1940 com a guitarra elétrica, dizendo que seria não-autêntico.

Falta partitura

A dificuldade  de  reproduzir  a sonoridade  da  guitarra  em  notação musical  faz  com  que  o  acervo  de partituras  seja  escasso  no Brasil. A  falta  de  partituras  torna  difícil  a adoção de literatura para oferecer aos alunos de música. De próprio punho e com a ajuda de seu aluno de graduação Márcio Pinho, Visconti fez um songbook de guitarristas brasileiros, transcrevendo suas obras. “Também uso material  escrito para  a  tese  em aula. Estão disponíveis para consulta dos  alunos. Quando  vamos  a  uma loja de discos  e  livros  encontramos uns 500 livros de blues, jazz e rock, mas  para  guitarra  na música  brasileira não há partituras”,  acrescenta.

A ideia, segundo ele, é tirar vários trabalhos a partir de sua tese, pois vários músicos citados no trabalho não foram amplamente analisados, apesar de Visconti ter ouvido suas músicas. A tese estimula a discussão sobre várias questões  sobre  a música  no Brasil que podem ser abordadas em futuros estudos, entre elas a compreensão das estruturas sociais a partir da tradução sonora dos artistas. “Eu constatei que é possível identificar isso por meio do som. A opção estética e a adaptação estão permeadas por conflitos sociais maiores”, declara Visconti.

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Artigo

“A trajetória da guitarra elétrica no Brasil”, disponível em: www.musicosdobrasil.com.br/ensaio.jsf
Tese: “A guitarra elétrica na música popular brasileira: estilos dos músicos José Menezes e Olmir Stocker”
Autor: Eduardo de Lima Visconti
Orientador: José Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Fapesp

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