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Corpo presente
Pesquisa desenvolvida na FE mostra como corpo humano foi visto ao longo da história

MANUEL ALVES FILHO

Vinícius Demarchi Silva Terra , autor da tese: “Exercitamos o corpo numa academia de ginástica como se ele estivesse doente”  ( Foto: Antoninho Perri)A forma como o corpo humano é visto e entendido sofreu inúmeras transformações ao longo da história. Na Idade Média, por exemplo, ele era considerado profano pela Igreja Católica. O papa Gregório Magno chegou a classificá-lo como “abominável vestimenta da alma”. No Renascimento, porém, o corpo ganhou novas representações, algumas ainda em vigor. “Na Renascença, teve início o que classifico de projeto educativo de racionalização do corpo. Graças ao uso de imagens, sobretudo as produzidas pela anatomia, foram construídas novas idéias e imaginações sobre essa estrutura física”, afirma Vinícius Demarchi Silva Terra, que tratou do tema em sua tese de doutoramento, apresentada na Faculdade de E­du­cação (FE) da Unicamp. Segundo ele, tal construção não foi neutra, visto que foi feita num contexto histórico, político e estético específico.

Intitulado “Memórias anatômicas”, o estudo feito por Vinícius Terra foi orientado pela professora Carmen Lúcia Soares. Nele, o autor analisou imagens produzidas pela ciência para estudar o corpo humano. O clima reinante no Renascimento, segundo ele, favoreceu a formulação de novos olhares acerca da realidade, o que ajudou a impulsionar o desenvolvimento da anatomia. Naquele momento ocorreu o que o pesquisador classifica de formulação de uma “cultura da dissecação”. Antes de consolidar-se como uma área do conhecimento, entretanto, a anatomia viveu uma situação marginal. Isso se explica por conta da ciência ter sido praticada inicialmente pelos cirurgiões, que à época eram meros auxiliares dos médicos. “A função de cirurgião estava no mesmo patamar da dos barbeiros, que eram os técnicos da dissecação. Eles não possuíam os conhecimentos filosóficos que caracterizavam aquela medicina. Eram os que faziam os trabalhos rudimentares de cura, como cuidar de uma ferida ou uma unha encravada”, detalha o autor da tese.

Até se estabelecer como expressão do saber oficial, a anatomia foi exercida por esses cirurgiões-barbeiros. Eles representavam, por assim dizer, o nascimento de uma nova cultura e de uma nova forma de pensar tanto o corpo quanto o mundo. Conforme Vinícius Terra, o processo de afirmação dessa ciência foi lento e lançou mão de algumas estratégias. O uso de imagens didáticas foi uma delas. “As imagens constituíram um discurso visual e com ampla capacidade de difundir idéias. A anatomia nos ensinou a ver o corpo, assim como a perspectiva nos ensinou a olhar o espaço, definindo fronteiras entre o sujeito e o objeto”, considera o pesquisador. Além disso, prossegue ele, a produção dessas imagens, e a conseqüente difusão dessa nova cultura, teve que ser objeto de variados acordos e homologações junto aos poderes constituídos. “Daí o fato de o projeto educativo de racionalização do corpo não poder ser considerado neutro”, acrescenta.

A escolha do objeto de estudo em questão, destaca Vinícius Terra, não foi somente o corpo, mas o corpo morto. A idéia da morte, nesse caso, pode ser entendida como um desejo de racionalidade e controle sobre o corpo. Dito de outro modo, a concepção da morte mantinha, à época, vínculo estreito com a forma de domínio e colonização do mundo. “O corpo foi imaginado como um novo mundo a ser descoberto pela anatomia. Ou seja, também foi dado início a um processo para a sua colonização”. A anatomia, continua o pesquisador, promoveu uma espécie de mapeamento profundo do objeto estudado. Como a vida não poderia ser mapeada e controlada, optou-se então pelo cadáver. “Escolher um corpo morto era como escolher uma relação de domínio e submissão. Dentro dessa lógica, para que houvesse colonização era preciso que houvesse também a morte do outro”, compara.

Essa relação de domínio, assinala Vinícius Terra, preparou o corpo para ser pensado como um sistema mecânico. De certa forma, afirma o pesquisador, isso influenciou a ação da ciência e da saúde. Ao eleger a anatomia como a “ciência do corpo”, uma série de outros saberes a esse respeito foi colocada na marginalidade, entre eles a teoria dos humores. Relacionada à alquimia, aos quatro elementos e temperamentos da matéria, esta cosmologia procurava entender o corpo – e por associação a saúde – sob uma perspectiva mais global. Buscava-se, segundo essa teoria, o estado de equilíbrio do corpo, ainda que este pudesse ter composições diferentes. “O saber anatômico, por sua vez, estabeleceu a noção de corpo médio, de corpo padrão. A partir de então, a busca deixou de ser pelo equilíbrio e passou a ter como referência o padrão numérico. Não por acaso, hoje as pessoas se preocupam com a quantidade de calorias ingeridas, com as medidas da cintura etc. É a isso que eu chamo de racionalização. Atualmente, as formas de medicação também levam em conta quase que exclusivamente esses dados, desprezando as individualidades”, sustenta.

Essa tendência à padronização, segundo o autor da tese, pode ser encontrada em maior ou menor grau em áreas como a medicina, a nutrição e a própria educação física. Ao adotarem esse modelo, no entanto, tais áreas da ciência deixariam, segundo ele, de considerar as idiossincrasias e especificidades do corpo, aspectos importantes para a compreensão desse tema. “O corpo tem uma história, e isso não pode ser desprezado. E não se trata somente da história do local de nascimento. Há uma série de fatores que precisa ser considerada. As antigas cosmologias sabiam disso. A idéia da medicina familiar vem daí. Os antigos sabiam que integrantes de determinadas famílias estavam mais propensos a certas enfermidades do que os membros de outras famílias”.

Estratégias
Como dito anteriormente, a anatomia começou a ganhar espaço como um saber oficial no período em que o homem passou a ter necessidade de dominar e colonizar outras sociedades. Mas para que essa ciência prevalecesse sobre as demais foi preciso formular uma estratégia política e estética muito bem articulada, como esclarece Vinícius Terra. “O que os cirurgiões da época fizeram, após articularam-se com os representantes do poder da época, foi criar uma produção cultural, de modo a sistematizar e consolidar a anatomia. Para atingir essa meta, eles usaram a tecnologia de difusão mais avançada no momento, que era a imprensa”, diz.

A ação compreendia o emprego da imprensa para reproduzir gravuras extremamente detalhadas do corpo humano. À época, os “anatomistas” chegaram a encomendar obras nesse sentido a alguns dos mais renomados pintores em atividade, como Ticiano, um importante pintor da escola veneziana no período do Renascimento. “Essas gravuras eram posteriormente enviadas para os melhores impressores da Europa. As produções eram tão bem feitas, que hoje são consideradas obras de arte”. Além da imprensa, o “movimento pró-anatomia” também fez uso da arquitetura e das artes cênicas para impactar a sociedade de então.

Em algumas cidades européias, como Pádua e Montpellier, foram criados os teatros anatômicos, nos quais eram realizados verdadeiros espetáculos de dissecação de cadáveres, sob a forma de aulas de anatomia. As demonstrações, de caráter público, eram normalmente realizadas durante o Carnaval. “Tratava-se de um período propício, tanto por ser inverno, o que evitava a rápida decomposição dos corpos, quanto por ser uma época profana segundo o calendário católico”, esclarece Vinícius Terra. Conforme o pesquisador, os teatros eram divididos para receber o público comum e os convidados especiais, os vips de hoje.

Além disso, durante as dissecações, há relatos da utilização de máscaras pelo público, como se este estivesse participando de uma festa carnavalesca. Concomitantemente, ocorriam apresentações musicais, diálogos cênicos e até mesmo pregações por parte de membros da Igreja, que aproveitavam a oportunidade para falar do destino do homem. De acordo com os clérigos, o que se via ali era apenas carne, que nada valia. O importante era cuidar do espírito. “Tudo isso acabou se constituindo em uma produção cultural da época, que ajudou a consolidar o paradigma anatômico. Nenhuma ciência ou saber consegue se estabelecer sem esse aporte cultural, que em última análise é uma ação de poder. Tratou-se, ainda, de uma produção cultural acadêmica, que em vez de artigos, utilizou a tradição oral para se firmar e se difundir”.

A estratégia foi tão bem-sucedida, na opinião do pesquisador, que os cirurgiões, outrora coadjuvantes, hoje são protagonistas desse modelo de compreensão e tratamento do corpo humano. “Com esses cirurgiões, nasceu a cultura da dissecação, que evidentemente influenciou a forma de se entender a saúde. Atualmente, prevalece a racionalização e a naturalização do corpo. Ocorre, porém, que o corpo não é uma natureza. Ele é histórico. Ao contrário da ideologia do corpo morto, o corpo humano tem individualidade, memória e idiossincrasia. Hoje, estamos estendendo a idéia da doença para a saúde. Exercitamos o corpo numa academia de ginástica como se ele estivesse doente. A busca do padrão externo, vale insistir, é a negação de si, da sua própria identidade”, analisa Vinícius Terra, que contou com o apoio do Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo, onde trabalha, para produzir sua tese.

 

 
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