| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 378 - 29 de outubro a 4 de novembro de 2007
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O Brasil vê a China

ÁLVARO KASSAB

 Zona central da cidade de Chengdu, cuja região metropolitana abriga 10 milhões de habitantes: símbolos da modernidade numa sociedade milenar (Fotos: Davi Nardy Antunesi)"A China emerge como uma nação com potencial enorme de crescimento e com alguns aspectos que provocam curiosidade em qualquer economista, independentemente de sua visão teórica ou de sua orientação ideológica”, afirma o professor Mariano Laplane, diretor do Instituto de Economia (IE). Na entrevista que segue, Laplane aponta os acertos da política econômica chinesa e mostra as razões de o Brasil ter ficado para trás na corrida do desenvolvimento.

Jornal da Unicamp Que tipo de contribuição o convênio entre a Unicamp e a SWUFE pode dar no âmbito acadêmico?

Mariano Laplane – A prioridade do Instituto de Economia – e, imagino, de outras unidades – é avançar no sentido da internacionalização da Universidade por meio de uma maior divulgação da nossa produção científica e de intercâmbios com outros centros de pesquisa de primeira linha. A Unicamp precisa ser reconhecida como uma universidade de primeiro nível no plano mundial.

Nesse sentido, o Instituto de Economia mantém acordos de cooperação com várias instituições de excelência no mundo inteiro. Este convênio com a China é particularmente interessante porque boa parte dos acordos que temos são com universidades do chamado mundo desenvolvido, sobretudo da Europa e dos Estados Unidos.

Neste caso específico, trata-se de uma cooperação Sul-Sul, e com um país que é um grande desafio para a nossa compreensão dos problemas do desenvolvimento.

JU – Desafio de que natureza?

Laplane – A China emerge como uma nação com potencial enorme de crescimento e com alguns aspectos que provocam curiosidade em qualquer economista, independentemente de sua visão teórica ou de sua orientação ideológica. Tanto pelas dimensões geográficas do país e pela velocidade do seu crescimento – e seu conseqüente impacto na economia mundial –, como também pela originalidade desse processo. Ele combina mecanismos de planejamento, regulação e controle administrativo dos mercados, e também mecanismos de mercado. O êxito dessa experiência, para muitos economistas, seria uma utopia.

Muitos acreditavam que a intervenção nos mercados havia sido enterrada depois da queda do Muro de Berlim, com a vitória do mundo, digamos, capitalista. Eis que, menos de 20 depois, uma nação que seguramente não é um paradigma do livre mercado é detentora de um desempenho econômico fantástico, que certamente faz inveja a muitos países da periferia e também do centro.

JU – Que avaliação o senhor faz desse crescimento meteórico?

Laplane – Eles se encaixa perfeitamente no conceito de desenvolvimento. Não é apenas um processo de expansão, mas sim de transformação. São vários processos de profundo impacto econômico e social ocorrendo ao mesmo tempo: a industrialização muito rápida, a transferência da população do campo para cidade em grande escala, e a constituição de um mercado urbano de massa, com padrões de consumo completamente novos para a sociedade chinesa, entre outros. Ademais, registra-se um desempenho exportador e importador com impacto muito forte sobre a economia mundial. A China se transformou num pólo de atração de capital que não pode ser ignorado. O país bate recorde atrás de recorde.

JU – Quais são, na sua opinião, as bases dessa expansão?

Laplane – Do ponto de vista econômico, o processo de industrialização e a principal. A expansão da atividade industrial puxa o resto da economia. Ela cria mercados e capacidade de produção, expandindo empregos, aumentando a massa salarial e alimentando o consumo. O Brasil e a América Latina vivenciaram, em alguma escala, há coisa de algumas décadas, um processo com características um tanto diferentes.

JU – Quais eram essas diferenças?

Laplane –A industrialização da América Latina deu-se para dentro, restrita aos limites dos mercados nacionais. Já a industrialização da China nasce na busca de uma escala mundial, o que a transforma não só numa fonte de oferta de produtos industrializados para o mundo, mas também numa enorme demandante de matérias-primas que tem beneficiado bastante os fornecedores, como é o caso do Brasil.

A força propulsora desse processo todo, como disse anteriormente, é a industrialização, o que não deixa de ser curioso. É um contraste. Nós, que tivemos uma experiência parecida – basta puxar pela memória para constatar o potencial de transformação que a industrialização teve no conjunto da economia brasileira –, achamos, em meados dos anos 90, que não valia mais a pena ou não era mais possível seguir esse caminho.

JU – Fomos na direção contrária.

Laplane – A idéia que prevaleceu no Brasil foi a de que a globalização e os mercados abertos, entre outros fatores, tornavam muito difícil a industrialização de países na periferia. Isso foi flagrantemente desmentido pela experiência chinesa e de países asiáticos.

JU – Para muitos analistas, o crescimento chinês não só tem um alto custo como traz à tona as contradições da sociedade. Quais são os maiores gargalos?

Laplane – São basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, há restrições muito fortes na disponibilidade de recursos naturais. A China enfrenta problemas de suprimento de alimentos, de falta de terra cultivável, de disponibilidade de recursos hídricos e de geração de energia, entre outros. Há, portanto, um grande impacto ambiental nesse processo todo.

Em segundo lugar, as desigualdades sociais se acentuaram. Esse processo de transformação vem acompanhado de uma crescente desigualdade na distribuição de renda, sobretudo entre a população do campo e da cidade. Tudo isso seguramente faz emergir um conjunto de problemas e de tensões que vão colocando limites a esse processo, sobretudo nos campos social e político.

JU – E no âmbito externo?

Laplane – Como o impacto desse crescimento é muito grande na economia mundial, a China também enfrenta – e enfrentará – problemas nessa área. Alguns países, por exemplo, já adotaram medidas protecionistas e reclamam da qualidade dos produtos chineses. Eles se sentem ameaçados pela presença da China no mundo das finanças e ficam preocupados com o destino que Pequim vai dar às reservas internacionais por meio das aplicações do chamado fundo soberano.

JU – Caso a China venha a ser a maior potência mundial, como projeta a maioria dos especialistas, o que pode mudar no quadro geopolítico?

Laplane – Dados demonstram que está ocorrendo um deslocamento do eixo da economia mundial do Atlântico para o Pacífico. Essa constatação não tem a ver apenas com o fato de a China experimentar essa ascensão. Já vinha sendo desenhada quando o Japão passou a ser uma potência econômica no final dos anos 70.

Concomitantemente, quando entra em cena um país como a China, que é ao mesmo tempo um grande produtor e um grande demandante por carência de recursos naturais, é grande o impacto sobre os preços relativos. O valor dos recursos naturais é reavaliado em razão da demanda chinesa. O aumento dos preços das commodities é um exemplo.

Por outro lado, isso tem um efeito contrário sobre os preços dos produtos manufaturados. A manufatura chinesa deprime os preços em razão do aumento da oferta mundial. Há, portanto, uma mudança de preços relativos muito acentuada.

JU – E no plano das finanças?

Laplane – Ocorre também uma mudança. É notável, nesse contexto, a simbiose do funcionamento das economias chinesa e americana. A China atua como financiadora a partir dos superávits comerciais que tem com os Estados Unidos, sendo a principal fonte de recursos para financiar o déficit norte-americano. Ao mesmo tempo, ela se transforma numa base de produção de ofertas de produtos baratos para alimentar o consumismo nos EUA. Essa simbiose terá seguramente conseqüências por muitas décadas.

JU – E no campo militar? O senhor acha que a disputa pela hegemonia pode resultar em conflitos?

Laplane – Espero que não. Quem imaginava que, depois do colapso do socialismo – e, particularmente, da União Soviética –, o mundo do ponto de vista geopolítico teria uma única superpotência global, os Estados Unidos, constatou, menos de 20 anos depois, que as coisas mudaram bastante. Estrategistas americanos e chineses seguramente já fazem jogos de guerra simulados, imaginando qual o poder de pressão que cada país tem em relação ao outro.

Os gastos do programa de defesa chinês, embora ainda representem uma pequena parcela dos gastos norte-americanos, já são expressivos. São impressionantes, nesse contexto, os projetos destinados ao desenvolvimento de tecnologia militar e da atualização de armamentos. É lógico que tudo isso muda a relação de forças. Acredito que a diplomacia terá um peso cada vez mais importante.


JU – Sob uma perspectiva comparativa, por que na sua opinião a China cresceu tanto e o Brasil permaneceu praticamente estagnado nas últimas duas décadas?

Laplane – Essas trajetórias tão diferentes partem de dois diagnósticos muito distintos sobre quais eram as oportunidades e as ameaças que existiam para os países da periferia ao longo das mudanças na economia mundial, que foram deflagradas no início da década de 90.

A avaliação que acabou predominando no Brasil era a de que, nesses mercados abertos e mais fluidos – do comércio e dos fluxos de capital –, as melhores chances para o país estavam na exploração das suas vantagens como fornecedor de recursos naturais. O agronegócio e a mineração são exemplos emblemáticos dessa opção.

Pensávamos que tínhamos desvantagens no âmbito das atividades industriais de transformação mais sofisticadas e avançadas. Imaginávamos que dificilmente conseguiríamos reproduzir o sucesso coreano e japonês, com níveis de produtividade equivalentes ao do chamado mundo desenvolvido.

Tínhamos a percepção de que o melhor que o mundo globalizado nos oferecia era captar dinheiro barato, atrair capitais, para financiar importações. Acreditamos que a melhor forma de desenvolver a economia brasileira era reproduzir, da maneira mais fiel possível, as instituições de mercado que vigoravam então, particularmente no modelo anglo-saxão.

Seguimos a cartilha do Banco Mundial, a cartilha do BID, a cartilha do Fundo Monetário...

JU – A aposta mostrou-se equivocada.

Laplane – Sem dúvida. Os chineses, por exemplo, partiram de outro diagnóstico. Eles viram, nesse mundo, oportunidades onde nós vimos ameaças, e ameaças onde o Brasil enxergava oportunidades. A China conseguiu aproveitar da globalização o que ela oferecia de bom para o país. Eles atraíram investimento para fortalecer a própria indústria, lançando-se como exportadores, ganhando escala. As empresas nacionais estatais saíram fortalecidas, foram transformadas em grandes concorrentes mundiais.

Eles viram a contribuição potencial da atração de capitais, como forma de prospecção de tecnologia, mas a regularam em fóruns seletivos. Forçaram o investidor estrangeiro a se aliar às empresas chinesas, transferindo tecnologia, fazendo joint ventures. Até as empresas brasileiras que investiram na China tiveram de passar por esse processo. Mas os chineses apostaram sobretudo na indústria, talvez até pela sua escassez de recursos naturais.

O Brasil poderia ter feito a mesma coisa. Tínhamos muitas indústrias. Entretanto, como disse anteriormente, predominou aqui o diagnóstico que o melhor que o mundo globalizado oferecia eram as finanças para financiar o consumo. Já os chineses viram que a indústria era imprescindível para transferir milhões de pessoas do campo para a cidade, aumentar a renda per capitã – passando de padrões de consumo próximos da subsistência para patamares mais sofisticados – e aumentar o bem estar da população. As conseqüências estão aí.

Se o Brasil tivesse crescido metade do que a China cresceu nos últimos 25 anos, a cara do país seria diferente. A população teria outras condições de vida. Alguns dos problemas que nos desesperam, entre os quais a desigualdade e a violência, teriam sido minimizados.

JU – Que lições o Brasil pode tirar do exemplo chinês?

Laplane – A principal delas é a necessidade e a obrigação de ser criativo. Não podemos copiar soluções, acreditando que a cartilha dos países desenvolvidos é a melhor solução para os nossos problemas. Até poderia ser, caso fôssemos desenvolvidos. É preciso ser original e procurar a melhor trajetória para o nosso desenvolvimento. Quando estivermos em outro patamar, podemos buscar soluções parecidas com as deles. Até chegarmos lá, entretanto, há uma longa trajetória.

Inspirados em Celso Furtado e no Cepal, soubemos durante um período pegar aquilo que realmente valia a pena nos países desenvolvidos. Fomos criativos, por exemplo, na implementação de mecanismos de instituições para transformar um país agrário dos anos 1930 num país industrializado nos anos 1980. Em 50 anos, fizemos uma transformação fantástica.

Os chineses, porém, souberam ser criativos no contexto da globalização. Nós procuramos atalhos. Adotamos ou clonamos instituições de países desenvolvidos, acreditando que mais para frente o mercado resolveria. Não resolve. Se essa estratégia adiantasse, seríamos desenvolvidos há muito tempo.


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