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ARTES

Viagem pela Felizbéia
O mundo pleno de um artista que passou
metade da vida em hospitais psiquiátricos

ÁLVARO KASSAB

Felizbéia fica em outra órbita, um mundo pleno, maior que a Lua. Felizbéia abriga usinas de cal, plataforma de foguetes, antenas e radares. É a terra dos tratoristas e dos líderes da maioria. Felizbéia é retratada nas viagens pictóricas de Mário da Silva, que deixou de visitar o planeta “porque está cheio de água funda no rio, é perigoso”.

Há algo de saudoso e de melancólico na constatação de Mário ao resignar-se com uma Felizbéia cada vez mais distante. Um mundo bem melhor que o do confinamento em hospitais psiquiátricos, sua casa em pelo menos metade dos seus 60 anos. Uma viagem iniciada aos 26 anos de idade em Franco da Rocha (Juqueri), para onde foi levado depois de ver a mãe morrer queimada com o querosene vazado de uma lamparina na cozinha de uma casa modesta na periferia de Jundiaí.

O sofrimento teve fim há pouco mais de três anos, quando Mário da Silva passou a ser usuário do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, hospital que se tornou referência no tratamento em saúde mental a partir das mudanças introduzidas no início da década de 90, pelo superintendente da instituição, o médico psiquiatra Willians Valentini Jr. Mário começou a freqüentar o Espaço 8, atelier de arte coordenado pelo artista plástico João Bosco, com quem divide a exposição Aeronaves, que ficou em cartaz durante boa parte do mês de agosto na Galeria da Unicamp.

A história de Mário é repleta de apagamentos, iniciados no Juqueri, lendário depósito de doentes mentais. Sua obra, nesse sentido, cumpre o papel do prontuário e se confunde em muitos pontos – alguns obscuros – com os relatos que faz da vida. A arte acaba desvendando aspectos de uma fala muitas vezes desconexa por força do entorpecimento causado por sessões de eletrochoques e do uso contínuo, durante décadas, de medicamentos. Por meio dos quadros, alguns selecionados para o Mapa Cultural de São Paulo, pode-se chegar a algumas pistas de sua conturbada trajetória, que inclui passagens também por hospitais das cidades paulistas de Sorocaba e Pilar do Sul (SP).
Mas é Jundiaí que ocupa um lugar central nas telas de Mário. É da cidade natal que ele extrai composições que retratam o ambiente rural (fogueiras, cafezais, bandeirinhas de São João, bananeiras, quintais etc.) e o cenário urbano que, apesar de ter passado por alterações radicais, manteve-se no que restou de sua memória afetiva. Ele fala, apontando para uma tela repleta de desenhos de edificações, parte deles rabiscada com uma prosaica esferográfica: “Isso aqui é a cidade de Jundiaí.

Santana não tem mais, tem só a fonte luminosa. Tinha o parque infantil, virou agência de ônibus, perto do Largo Santa Cruz. Aqui é o Largo da Matriz, aqui é a Rádio Clube. Eu gosto de rádio, só que canto pouco. Tocava bem violão, gaita, só que nesses dias não ando bom. Esse aqui é o quartel...”.

Tentação na cabeça – Filho de empregada doméstica e de lavrador que trabalhava no roçado de café, o artista plástico diz ter um irmão em Rio Claro, que viu poucas vezes desde que “ficou com uma tentação na cabeça que atrapalhou o juízo”.

Tampouco teve coragem de voltar à casa do bairro jundiaiense de Ponte São João, onde presenciou a tragédia que o conduziu aos pátios da insanidade. “Minha mãe se queimou com lamparina. Sabe como é, queimadura não deixa a pessoa sossegada. Bem que escondi a lamparina cinco vezes, mas ela pegou a lamparina para acender e se queimou. Eu estava tirando água do poço. Ela foi para o Hospital São Vicente de Paula e lá morreu, a dona Vicentina”, revela Mário, capaz de lembrar com detalhes da mistura feita em fogo brando na lenha e colocada na marmita que levava para o irmão, funcionário da “finada Companhia Paulista”.

Se não retornou às coisas da mãe, Mário guardou a força imagética de uma Jundiaí que não existe mais. Enfileira nomes e referências: times de futebol (Paulista, Comercial), bairros e logradouros (Vila dos Pobres, Cortume, Vila Schiavo) e pessoas, muitas pessoas, quatro delas colocadas em imagens sobrepostas, num de seus quadros mais intrigantes. “Esse aqui é o pai do seu Luiz, essa aqui é a irmã dele, essa é a mãe de Marilene, a Denise, esse aqui....”. As personagens aparecem com farda, uma de suas obsessões, materializada em quadro no qual desenhou um diploma que ele diz ser o certificado de reservista do 28 de Setembro (clube da comunidade negra confundido por ele com um quartel). “Gostei da farda”, limita-se a dizer, para apontar, na tela, “os buracos para colocar o selo e a fotografia”.

Origem do planeta – As máquinas são outra fixação de Mário. Tratores, foguetes, naves e aviões tomam o espaço de boa parte de sua produção. Origina daí o planeta Felizbéia, ponto de partida ou de chegada das engenhocas geometricamente perfiladas na exposição. São elas que povoam o imaginário de Mário da Silva, um obcecado por tecnologia e velocidade. “Isso aqui é um motor turbina; olha o campo de aviação, o aeroclube, o avião a jato. Esse aqui é um automóvel antigo da Mercedes Benz, que era do Quinzinho. Ele fundou Jundiaí com um trator...”, aponta.

Mário, que diz ter ido para Felizbéia de foguete, divide hoje uma casa “com Dona Benedita, Carlos Henrique e o Dito”, todos usuários do Cândido Ferreira, no bairro campineiro de Santa Odila, numa das experiências inovadoras implantadas pela direção da instituição. Uma possibilidade de reintegração na qual o papel de Mário está definido. Na “república”, ele lava a roupa, faz faxina e gosta de assistir televisão. No hospital, desenha, faz e recicla papel. Pode não ser nenhuma Felizbéia, mas é um mundo no qual as cores e a vida estão de volta.

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Linguagem original

A Galeria da Unicamp abriu, pela terceira vez, as portas para os artistas do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, confirmando o perfil pluralista e democrático do espaço. A primeira das mostras, uma coletiva, reuniu trabalhos de 15 integrantes do Espaço 8. O artista plástico Geraldo Porto, professor do Instituto de Artes da Unicamp, ex-coordenador da galeria e membro do Conselho responsável por seu agendamento, diz ter um carinho especial por esse tipo de produção que, segundo ele, “acaba trazendo uma contribuição de originalidade, clareza e espontaneidade” ao ambiente da arte contemporânea, que muitas vezes fica subordinado às fórmulas e receitas prontas. “No caso do Mário da Silva, acho muito interessante sua criatividade. Sua linguagem é única, extremamente original, e suas conexões são surpreendentes”.

Para Geraldo Porto, a organização espacial da obra de Mário da Silva é geométrica e muito precisa, sobretudo nos quadros que sugerem projetos de engenharia, levando o observador a fazer uma leitura menos superficial da obra (foto ao lado). “O que acho interessante também, nesse tipo de produção, é que a explicação que seus autores dão é muito diferente daquela dos demais artistas. Acho que a arte tem que muito a aprender com o trabalho feito por pacientes de hospital. E o trabalho do pessoal do Espaço 8, além de ser uma referência, é muito bonito”.

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>> Poesia de fundo de quintal

 


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