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Entre o limbo e o paraíso

MARIA ALICE DA CRUZ

A Amazônia é um dos lugares preferidos por estrangeiros em viagens pelo mundo. Algumas obras sobre a região já passaram pelas mãos de tradutores brasileiros. Faltava, porém, verter as impressões do jornalista inglês Henry Tomlinson registradas no livro O Mar e a Selva, escrito em sua primeira e única viagem à Amazônia, em 1909. Em tese de doutorado orientada pelo professor Carlos Eduardo Ornelas Berriel, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), o pesquisador Hélio Rodrigues da Rocha dedicou-se a traduzir e analisar a obra, em que o escritor inglês descreve e decanta a Amazônia em detalhes mínimos.

Na obra, Tomlinson aborda desde o sublime, descrevendo desde a aurora inigualável da Amazônia até a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a qual para ele já era um indício da interferência urbana e de conflitos entre a civilização e os nativos.

O desencantamento é perceptível somente quando o escritor fala sobre o estado urbano-industrial que já se anunciava. O próprio steam ship (navio a vapor) England, apelidado no relato de Capella, os trens e outras invenções da era urbano-industrial da época possibilitaram a construção da imagem de uma natureza transformada pelo próprio espetáculo da modernidade. O navio a vapor, com a invenção de James Watt, acelerou esse processo de conhecimento das terras longínquas dos grandes centros industriais. Ao refletir sobre as possíveis mudanças no lugar, ele escreve que “o homem deixou de sonhar, de imaginar, e o seu reinado está perdido”.

Segundo Rocha, a produção discursiva contida no livro se revela como o relato de um sonhador. Para ele, o polêmico Tomlinson era um rebelde filosófico e um crítico social que aproveitou a oportunidade de escapar de Londres para, no percurso de sua viagem ao Brasil, pensar a conduta humana. “O Mar e a Selva é material amazônico. Mais um motivo para se fazer um estudo investigativo da obra, bem como sua tradução para a língua portuguesa. A leitura torna-se acessível a leitores brasileiros”, declara Rocha.

Ao falar do peregrino Tomlinson rumo ao sublime romântico, Rocha afirma que, logo no início do relato, o mundo se renova para o eu fictício – o narrador. Um dos trechos em que isso fica claro para o leitor de O Mar e a Selva é quando o escritor londrino se refere à aurora como uma deusa do alvorecer, colocando-na em cena romanesca. “Esses eixos narrativos ajudam na constituição tanto de uma mitopoética do mundo quanto de uma hermenêutica do sujeito viajante. Essas características são importantes fontes estético-literárias”, explica.

A leitura de Tomlinson favoreceu a reconstituição da travessia entre línguas e culturas pelo pesquisador, já que o relato apresenta uma pluralidade geográfica, em que o ambiente londrino, o europeu, o amazônico e o espaço onírico, o mítico, o histórico e o subjetivo entrecruzam-se. Nomeia elementos da natureza brasileira com personagens da mitologia grega. Ao entrar em contato com a diversidade, segundo Rocha, Tomlinson escreve: “Estamos na vizinha das Hespérides”, aludindo tanto às deusas que representavam o espírito fertilizador da natureza quanto ao Jardim das Hespérides.

Mitos

Tomlinson também se mostra conhecedor dos mitos amazônicos ao descrever sua entrada no Rio Pará. Ao deparar com a Ilha Jurupari, ele explica: “de onde vêm os sonhos à noite”. De acordo com o amazonense Rocha, Jurupari representa, na mitologia tupi-guarani, o deus dos sonhos. Numa das versões do mito, é representado como “aquele que cala, que sufoca, que asfixia”, e em outra, Jurupari é filho de Ceuci, uma mulher indígena, que era enviado do Sol e recebera a missão de reformar as leis e costumes dos homens. “O importante é a tessitura dos mitos no texto tomlinsoniano que, de certa forma, amplia o horizonte do leitor em relação ao mundo natural e sobrenatural e ajuda o viajante em sua busca de um eu aprimorado”, acrescenta Rocha. Esta relação entre o natural e o sobrenatural está explícita nos versos de Tomlinson.

Especialista em traduções referentes à Amazônia, onde nasceu e habitou a maior parte de sua vida, Rocha conhece toda a história da Madeira-Mamoré, assim como os mitos amazônicos. Diante de tal vivência, o pesquisador constata fidelidade de Tomlinson ao próprio sentimento no momento de registrar suas impressões sobre a selva. Trechos do relato do escritor remetem a histórias sombrias e pavorosas ouvidas também por Rocha em pontos de encontro, cemitérios e margens da EFMM em Porto Velho, onde mora desde 1993.

Durante as conversas sobre a “ferrovia do diabo”, Matinta Pereira, Curupira e Iara são personagens indispensáveis. Para Rocha, a selva continua enigmática e misteriosa. “Essa ‘Esfinge Verde’ já perdeu muito de seus cabelos verdosos e ondulantes, mas ainda é capaz de emocionar, de ser reverenciada por homens de espíritos contemplativos e imaginativos. Ela pode, como diz H. M. Tomlinson, tornar imperceptível qualquer movimento”, reflete Rocha. Ele acrescenta que quando o viajante londrino navegou no rio Jaci-Paraná descreveu uma visão: “Tive uma visão, também, daquelas águias mais régias, as harpias, porque uma, bem à vista, ergueu-se de uma árvore adiante e deslizou lindamente por cima do rio e desapareceu”.

Para Rocha, Tomlinson é considerado o viajante ideal porque consegue, por meio de uma escrita imaginativa, construir uma tessitura em que mitos gregos, romanos e amazônicos mesclam-se harmoniosamente na representação da selva. “E assim tem-se toda uma geografia mítico-literária mapeada na épica viagem tomlinsoniana. Tem-se também, ao final da narrativa, um viajante ideal que é o porto final de si mesmo.”

Gritos e sons desconhecidos que dão origem a construções míticas sobre a Amazônia abalam a coragem de qualquer ser humano que se aventura na selva. Não seria diferente aos ouvidos de Tomlinson, que também descreveu seus pavores em relação à “acústica” amazônica. Um dos sons sobre o qual escreve é o canto do uirapuru. “Meu amiguinho desconhecido na mata, que canta em horas singulares – mas acho que, principalmente, quando estou perto de um rio – através de assobios trinos, permitiu que eu soubesse que ele estava por perto. Hill disse que pensa que o viu, e que meu amiguinho se parece com um melro (ave encontrada na Europa)”. Segundo Rocha, os amazônidas dizem que quando esse pássaro canta, toda a selva fica em silêncio, em respeito a seu maior tenor.

De acordo com Rocha, o escritor caminhou na selva impregnado de visões. Desde a entrada do escritor no rio Pará, Tomlinson fez referência à presença da Esfinge Verde, que vigia os viajantes dia e noite. Às margens do rio Caracol, afluente da margem direita do rio Madeira, ele diz ter caminhado no limbo, dedicando parte grande do relato à descrição. Mas se refere ao limbo não como um lugar onde, segundo a teologia católica pós-século 13, se encontram crianças não-batizadas, mas um lugar onde eram jogadas coisas inúteis. “Essa floresta era realmente o celeiro do ‘há muito tempo esquecido’, úmida, decadente, escura, abandonada para as acumulações do passado e decadência”, diz Rocha.

De acordo com Rocha, a contribuição das obras de autores estrangeiros na troca entre culturas diversas tem sido bastante discutida por vários estudiosos. Porém, há vários mitos greco-romanos e amazônicos no relato tomlinsoniano. A tese enfatiza essas características.

Tomlinson estava com 36 anos quando fez a viagem à selva, mas, para Rocha, já tinha um itinerário filosófico, pois ainda na juventude foi direcionado pela mãe aos autores clássicos. Segundo Rocha, o viajante lia na biblioteca pública, em casa e diante do prato de comida, no almoço.

Diante da malária e de outras doenças, já em 1909, Tomlinson alertava sobre a importância do cuidado com o corpo. Ao falar do rapaz tísico que por algumas vezes perdia o trem, ele escreveu: “E havia todos aqueles outros que pegam esse trem, exceto o jovem com tosse. Ele o perde de vez em quando, usando para esse objetivo, não tenho dúvida, aquela mesma forma de rebelião contra sua odiada tirania, que já sabemos, a inabilidade física para pegá-lo”.

“Tomlinson não é um autor fácil de ser lido; é alegórico, imaginativo, mitopoético, filosófico; e sua escrita possui termos tomados de fontes numerosas e longínquas. Isso obriga o leitor a familiarizar-se, através de pesquisas, com esses termos, com essas alusões metafóricas, como é o caso do termo Tofete (altares onde se oferecem crianças aos deuses pagãos), entre muitos outros”, diz Rocha. O texto deixa alguns enigmas e chaves discursivas a ser desvendados, segundo o pesquisador. Ele acrescenta que a obra obriga qualquer leitor a apreciá-la devagar e com a mente aguçada para que obtenha uma leitura valiosa. “Daí um de seus prefaciadores afirmar ser a obra de Tomlinson uma madhouse, uma casa de loucos, um hospício”. Mas Rocha discorda: “Não. Essa obra é um tesouro filosófico.”

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■ Publicação

Tese: “O mar e a selva: relato da viagem de Henry Major Tomlinson ao Brasil — estudo e tradução”
Autor: Hélio Rodrigues Rocha
Orientação: Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

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