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Longe da clínica, do
motorzinho e da anestesia
Tese avalia atendimento odontológicos
para pessoas desprovidas de
serviços básicos de atenção

CARMO GALLO NETTO

Nas décadas de 1960 e 1970, todo longa-metragem exibido nos cinemas brasileiros era precedido de um cinejornal. O mais famoso deles, o Canal 100, tinha como grande atração, ao final de cada edição, a apresentação de uma importante partida de futebol recente. Em tomadas antológicas, mostrava as reações de tristeza e alegria dos torcedores que, nas manifestações de júbilo, invariavelmente, exibiam sorrisos desdentados, provocando gargalhadas na plateia. Era o retrato de uma nação que se revelava um país de desdentados. Embora a redução da prevalência e severidade da cárie tenha sido progressiva e significativa, graças à fluoretação da água e ampliação dos procedimentos coletivos pelo SUS, sua maior ocorrência se manifesta ainda em camadas sociais e regiões menos favorecidas economicamente.

Para minorar determinados problemas dentários desse público que dificilmente teria acesso ao tratamento dentário convencional, tem sido empregado, em algumas lesões da cárie, o ART (Tratamento Restaurador Atraumático) – Atraumatic Restorative Treatment, em inglês. O atendimento – que se dá em locais onde não é possível o atendimento odontológico padrão por razões como falta de energia elétrica ou de difícil acesso – não utiliza instrumentos rotatórios, nem anestesia.

Em uma escola, por exemplo, as crianças podem ser assistidas deitadas sobre uma mesa com a cabeça apoiada em uma almofada para maior conforto. Junto a ela são dispostos os instrumentos, materiais e produtos utilizados nas restaurações, transportados pelo dentista em uma maleta multibox. Como pano de fundo, invariavelmente, uma lousa denuncia o consultório improvisado em sala de aula.

Em pesquisa desenvolvida na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), orientada pela professora Maria da Luz Rosario de Sousa, a dentista Cristina Gibilini avaliou o potencial deste tipo de tratamento com vistas à sua ampliação no atendimento à população infantil de escolas públicas. Os resultados do estudo mostram que o ART melhora a condição oral e atenua o risco de cárie dessas populações.

Em relação ao emprego do ART, constituíram objetivos principais da pesquisa avaliar: a proporção de lesões de cáries, passíveis a este tipo de tratamento, em escolares de 5 a 10 anos de idade; sua efetividade como medida de controle da cárie e sua importância na promoção de saúde pública, bem como a influência de variáveis clínicas independentes e de aspectos sócio-demográficos na longevidade das restaurações.

A avaliação prévia a que foram submetidas crianças com idades entre 5 a 10 anos, provenientes de 10 escolas públicas do município de Piracicaba (SP), mostrou que cerca de 37% delas apresentavam lesões de cárie não tratadas e que aproximadamente 40% destas crianças possuíam pelo menos um dente com indicação para o ART. Compuseram a amostra 173 escolares de ambos o sexos. As restaurações executadas foram avaliadas após 6, 12 e 18 meses, segundo protocolos da literatura. Em relação à possibilidade de incidência de cáries, aproximadamente 50% dos escolares tratados passaram da classificação de alto risco para risco moderado, em decorrência apenas da utilização da técnica.

Na avaliação realizada após seis meses da restauração, a pesquisadora constatou sucesso em 82% dos procedimentos, assim consideradas as restaurações que se mantiveram e não apresentaram problemas. O ART revelou-se efetivo em restaurações envolvendo uma ou mais faces do dente após 18 meses e os fatores sócio-demográficos não se mostraram estatisticamente associados às suas manutenções Diante disso, Cristina considera que “a técnica pode ser vista como alternativa para controle de cárie, em larga escala, em diversos ambientes além do escolar”.

Indicações

O tratamento de restauração é considerado atraumático porque não causa dor e não exige anestesia. É indicado para lesões de cárie que não apresentam dor, nem abscesso e não chegam à polpa do dente (nervo). Seu emprego restringe-se às cáries circunscritas às duas primeiras camadas do dente, o esmalte e a dentina, mantendo-se preservada a terceira camada, a polpa.

O ART consiste basicamente na remoção do tecido cariado amolecido, depositário de grande número de bactérias, com instrumentos manuais (curetas). As camadas mais profundas do tecido dentário, que se situam abaixo da parte amolecida – que seriam removidas na forma de raspas no tratamento convencional – são mantidas e cobertas com o material restaurador, o cimento de ionômero de vidro.

Estudos consagrados mostram que essa porção do dente, que daria origem às raspas, tem capacidade de remineralização quando coberta com materiais e manutenção adequados. Além de mínima intervenção operatória, o processo preserva a estrutura dentária sadia, reduzindo a probabilidade da necessidade de tratamento endodôntico (canais) e de futuras exodontias (extrações), além de não exigir emprego de anestesia local devido à ausência de sintomatologia dolorosa.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o ART para situações em que a ausência de consultórios odontológicos impede a utilização dos meios tradicionais. A técnica pode ser indicada para habitantes de áreas rurais ou suburbanas, grupos minoritários e comunidades carentes, além de pacientes em asilos, creches e orfanatos. Em suma, para pessoas que não possuem serviços básicos de atenção dentária e que não tenham acesso ao tratamento convencional.

Entre as vantagens da técnica a pesquisadora alinha execução rápida, custo baixo, emprego de instrumentos manuais baratos, de manejos simples e facilmente transportáveis, além da não demanda de eletricidade e de equipamentos muito especializados. Além disso, a remoção apenas do tecido cariado amolecido origina cavidades menores e preserva o tecido dentário sadio. E mais: o fluoreto contido no cimento ionômero de vidro, liberado progressiva e continuamente, pode prevenir o aparecimento de lesões reincidentes, atuando na remineralização do tecido dentário deixado na base da cavidade, que seria removido no tratamento convencional.

Esse flúor de reserva pode ser reposto pela aplicação tópica, através da água ou da pasta de dente com fluoreto. Ao limitar o aparecimento da dor, a técnica minimiza o uso de anestesia e a não utilização do motor e do sugador, o que a torna bem aceita por adultos e principalmente crianças. Por tudo isso, afirma a pesquisadora, “o ART constitui-se em excelente aliado em programas de promoção e educação para a saúde, reduzindo a possibilidade de extrações e contribuindo para a saúde bucal”.

São mencionadas como desvantagens do processo: a resistência de profissionais odontológicos que, em geral, consideram a restauração com cimento de ionômero de vidro de caráter provisório, utilizada para a adequação do meio bucal; cansaço manual do dentista no ART; exigência de atenção constante em cada fase da execução; as limitações do material que restringem seu uso a cavidades de tamanho pequeno e médio. A pesquisadora rebate dizendo que os materiais empregados têm sido aperfeiçoados e que a exigência de atenção constante deve acompanhar toda e qualquer técnica odontológica empregada.

Diz ainda que, embora o ART tenha sido originalmente indicado para cavidades de uma face, devido às características mecânicas do material, existem estudos que indicam sua utilização para cáries que atingem duas faces do dente. “Conscientes da cobertura que a técnica proporciona e das necessidades principalmente das populações mais carentes, resolvemos, com base em estudos existentes, incluir no tratamento cáries que atingiram mais de uma face do dente”, acrescenta ela.

Constatações

Ao se propor ao estudo, a pesquisadora pretendeu prioritariamente observar o potencial de atendimento que o ART pode proporcionar, a melhoria da condição oral das crianças atendidas e a longevidade das restaurações. A avaliação realizada depois de seis meses mostrou sucesso muito grande (82%), o que leva a autora a considerar que o acompanhamento poderia ser realizado a partir dos 12 meses. O estudo mostrou ainda que nenhum dos fatores externos como escolaridade dos pais, tipo de moradia, renda familiar, entre outros, interfere na longevidade da restauração.

O ART alcança resultados mais promissores quando associado a trabalhos educativos e preventivos. Para Cristina, a proposta não é apenas restaurar: “É necessário que existam programas de educação em saúde para que as crianças tenham acesso à informação, e até mesmo à escova e à pasta dental, para que possam melhorar a higienização. O ART constitui um importante suporte no controle da cárie. O acompanhamento deve ser permanente, a exemplo de qualquer pessoa que se submete aos tratamentos convencionais, quando recebe a recomendação de periodicamente voltar ao dentista”.

Segundo a pesquisadora, existem poucos estudos que abordam a prevalência de crianças com indicação para o ART, principalmente no atendimento público. O trabalho a levou à conclusão de que esse número é bastante grande e a técnica promissora. Considera essa uma das suas maiores conclusões, por ser tratar de um processo barato, rápido – o tempo médio de cada restauração é de seis minutos –, e de excelente retorno. “A criança é atendida em ambiente que lhe é familiar, em que se sente bem e protegida, o que diminui a ansiedade. O clima coletivo contribui para uma atmosfera colaborativa de envolvimento entre crianças e dentista e de aceitação, fundamental para a propagação e manutenção de ambientes salutares. Além de tudo, a eliminação da locomoção das crianças simplifica sobremaneira a logística!”, conclui.


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■ Publicação

Tese: “Avaliação longitudinal do tratamento restaurador atraumático em estudantes de escolas públicas de Piracicaba”
Autora: Cristina Gibilini
Orientadora: Maria da Luz Rosario de Sousa
Unidade: Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP)

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OMS recomenda serviço

O ART foi desenvolvido na década de 1980 diante da necessidade de encontrar um mecanismo que possibilitas-se preservar os dentes cariados em indivíduos de todas as idades em países em desenvolvimento e comunidades carentes, centrando-se enfaticamente na redução da contaminação bucal.

Desde 1994 vem sendo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como parte de programas de saúde bucal desenvolvidos nesses países. Em 1998, a técnica recebeu a aprovação da Federação Dentária Internacional (FDI) com ênfase em países em desenvolvimento. Mais recentemente, a OMS passou a promover o ART em programas comunitários com bases educativas e preventivas em vários países.



 
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