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TROCA DE SINAIS

Pedagoga apresenta, em Libras, dissertação
de mestrado na Faculdade de Educação

A pesquisadora Regiane Pinheiro Agrella apresentou, em Libras (língua brasileira de sinais), seu memorial para obtenção do título de mestre na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, no final do mês de maio. Nele, seu percurso de vida foi revisitado e reelaborado a partir das disciplinas que realizou no mestrado, especialmente, aquelas vinculadas às perspectivas foucaultiana e psicanalítica. Além de ser a primeira aluna surda a apresentar a dissertação em língua de sinais na Universidade, Regiane é uma das primeiras alunas da Unicamp a realizar todo processo seletivo do mestrado – prova e entrevista – em português escrito e em libras.

A pedagoga Regiane Pinheiro Agrella apresenta sua dissertação de mestrado: pionerismo na Faculdade de Educação. (Foto: Antonio Scarpinetti)As respostas dadas pela candidata em libras na prova foram filmadas, houve edição da tradução realizada em português por uma intérprete de língua de sinais com mestrado em educação, que, em seguida, transcreveu-as para o português. A dificuldade com a escrita manifestada por Regiane e outra candidata em uma das fases da seleção provocou uma reviravolta na maneira de tratar o aluno surdo na faculdade, de acordo com a orientadora Regina Maria de Souza, do Grupo Diferenças e Subjetividades em Educação da faculdade.

Uma autorização concedida pela Coordenadoria de Pós-Graduação da FE para que a prova fosse realizada tanto em português quanto em libras mudou a história profissional das alunas e a história da pós-graduação da FE. “Com esta dissertação, mostramos que é possível garantir a formação do pesquisador surdo mesmo que ele não tenha como primeira língua o português, e sim a língua de brasileira de sinais. É uma grande inovação em termos de inclusão na Unicamp”, explica Regina.

O aceite das estudantes no curso mobilizou desde os professores até os funcionários da área de multimeios da FE, pois as aulas, acompanhadas pelas intérpretes, foram todas gravadas em DVD, que foi entregue às alunas 40 minutos depois. “Quem sabe se depois dessa experiência, não conseguimos aprovar um projeto que dê ao pesquisador surdo o direito de entregar sua dissertação ou tese em mídia (DVD) sem precisar se ver transcrito em português por outra pessoa.” No momento, ainda há exigência da entrega do volume escrito, que, na realidade, recebe um tratamento de tradução do orientador.

Formada em Pedagogia, Regiane apoiou-se em conceitos da sociologia de Michel Foucault, da psicanálise de Sigmund Freud e da lingüística de Vigotski para, a partir de sua própria história, analisar a relação da família, da medicina e da pedagogia com a língua de sinais. Ela explica que a dissertação não se trata de um trabalho que vai reparar alguma coisa anormal ou ditar uma regra para as principais áreas abordadas – família, pedagogia e fonoaudiologia –, mas é uma forma de mostrar a partir de sua formação as possibilidades de se usar a língua de sinais nestes três campos.

E a avaliação, segundo seu depoimento, não é das mais favoráveis, já que falta muito a fazer até 2015, ano em que 100% dos campos de convívio – escolas e cursos de formação de professores – teriam de estar aptos a usar a língua de sinais, de acordo com o Decreto 5.626 do próprio governo. “Falta muita coisa para 2015. Já existem 50% das pessoas falando língua de sinais? Não”, reflete. Para ela, as ações rumo à prática dessa política pública esbarram na aprovação e na implantação de um currículo. “Estamos presos a um processo burocrático”.

Regiane fala à banca. (Foto: Antonio Scarpinetti)A pesquisadora enfatiza que sua discussão é sair desse padrão de normalidade criado pelos campos analisados com relação à surdez, pois ela mesma aprendeu a olhar de um jeito diferente. “Prefiro que o surdo se sinta feliz e que tenha um desenvolvimento a partir desse lugar.”

A pedagoga relata que as abordagens orais, utilizadas na década de 1970, eram também conhecidas como “métodos orais-aurais”, e se caracterizavam pela ênfase na amplificação do som e no uso da fala. Dependendo do canal que é priorizado na recepção da linguagem, denomina-se abordagem unissensorial ou multissensorial. E foram estas as abordagens utilizadas pelas fonoaudiólogas e pela escola em que estudei, como também em todas as outras escolas de surdos e clínicas no Brasil.

“Já perdi várias questões da minha vida, desde a minha infância, porque tinha de falar certo. Até conseguia falar algumas coisas, mas aquilo para mim era muito ruim. Porque existia uma barreira entre mim e as pessoas. A gente se olhava, mas dava para perceber que o problema era em relação à fala”, reflete. A pesquisadora diz ter crescido e trabalhado com a oralidade, mas foi descobrindo a facilidade da língua de sinais. “É mais fácil aprendê-la, assim como o ouvinte se sente mais confortável aprendendo o português, porém, a sociedade tem preferência pela língua oral”.

No que diz respeito à família, Regiane coloca que tem o lado importante que é a questão do respeito e do amor, mas ela sentiu necessidade de falar do sofrimento para o surdo, quando, por inocência, a família só consegue pensar na expectativa de cura do surdo através da medicina, porque é um padrão. “Precisei falar de coisas da minha realidade familiar. Não quero me afastar de minha família, mas eu sei que foi um sofrimento pra mim me obrigarem a falar”, questiona.

Na sequência a pedagoga Regiane Pinheiro Agrella (Fotos: Antonio Scarpinetti)



Na escola

A relação do ser humano com a língua de sinais deve começar na sala de aula, onde, na opinião de Regiane, ela tem de ser amplamente ensinada. “Porque eu pelo menos sou surda e brasileira. Sou cidadã. Votei, por exemplo, no Lula, vivo aqui. Porque a sociedade não vai aceitar a língua de sinais? Eu devo me apropriar do português? Só eu? Por que não troca, não inverte o jogo? Eu também voto”, questiona.

Em sua experiência com alunos ouvintes, ela observou que alguns aprendiam facilmente a língua de sinais, mas depois que saíam da escola não tinham mais contato com surdos e acabavam esquecendo. “A criança aprende muito rápido. Meu filho aprendeu desde bebê língua de sinais. É natural, é uma aquisição, um aprendizado que se torna fácil”.

No caso de Regiane, ela conta que ao entrar na escola percebeu que existia preconceito contra surdos. “Eu tinha de copiar, escrever, fazer sessões de fono, treinamento orofacial. Depois, ao entrar na escola de ouvintes, eu tinha de fazer leitura labial. Os professores ensinavam e eu não entendia as frases. Eu entendia as palavras, mas as frases não tinham sentido para mim. Era um vazio. Eu decorava para a prova e respondia para a prova. Falava até bem, mas minha escrita era muito diferente. As professoras sempre achavam algum erro, mas não sabiam explicar, do meu jeito, onde estava o erro”.

A experiência relatada causou sentimento de angústia e incapacidade, fazendo com que ela não tivesse uma boa relação com o português. Foi quando começou a discutir a questão da língua de sinais em grupo, pois na época já havia uma discussão ampla sobre o assunto. “Foi quando percebi que se tratava de uma língua. Eu poderia aprender o português como uma segunda língua. Mas comecei a perceber que as frases eram incompletas. Por exemplo: Eu gosto de você. Eu entendo: eu gosto você. “De” para mim não significa nada. Na escrita eu omitia porque não entendia essas conjunções em português. Fui entender bem mais tarde. Por isso prefiro a língua de sinais num primeiro momento. Sou 100% visual. Meu foco é pela visão. Não adianta pôr aparelho, implantar. Parece melhorar, mas o importante é ter uma relação visual”, desabafa.

Plateia composta de surdos e ouvintes acompanha a apresentação: recado por meio de gestos (Foto: Antonio Scarpinetti)Para ela, se a sociedade soubesse língua de sinais, o surdo teria mais possibilidade de troca e desenvolvimento. Porque teria entendimento da língua. Ela conta que seu próprio filho é ouvinte, mas é intérprete de línguas de sinais. “O surdo sente prazer nesta relação. É como se tivesse um aceite. Se não sabe a língua de sinais, é como se forçasse uma aproximação e eu vivi isso na minha vida inteira. O surdo começa a se afastar dessas pessoas. Isso é um problema”, declara.

Letras-Libras

Um dos avanços para a educação é a presença de intérpretes e professor surdo em sala de aula, na opinião de Regiane. Mas é preciso que essas pesquisas sejam realmente colocadas em prática e que não aconteçam de forma aleatória. Para isso, é preciso aumentar o número de pesquisadores surdos nas universidades brasileiras, pois é raro no país. A pesquisadora afirma que na Europa este espaço é mais aberto. “Tem avanço muito grande em relação a essas pesquisas e eu queria que o Brasil tomasse esse rumo de pesquisa”.

Entre os avanços está o curso Letras-Libras, da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual Regiane chegou a frequentar dois anos no polo da USP, coordenado pelo professor Leland McCleary. A segunda graduação, que seria obtida neste curso, foi interrompida por causa da aceitação no mestrado da Unicamp. O curso oferece licenciatura em Letras-Libras e bacharelado em tradução e interpretação. De acordo com Regina, coordenadora do polo Unicamp, em 2012 a Universidade graduará 28 intérpretes ouvintes e 27 surdos.

Um projeto em trâmite para implantação de um curso de especialização para a formação de professores da rede pública deverá ampliar a inclusão de pesquisadores surdos na universidade. “A ideia é dar condições para que o professor atue com alunos surdos em contexto de ensino bilíngue em sala de aula”, explica Regina. Ela acrescenta que ainda existe maior empenho das universidades privadas no que se refere à inclusão das Libras em seus cursos de formação de educadores para atuarem nos ensinos fundamental e médio; agora é preciso que a universidade pública participe desse processo para garantir formação gratuita.

“Estamos no terceiro milênio e talvez as teses também pudessem ser feitas em línguas de sinais com legenda em português, em forma de documentário em libras, sem fugir do rigor acadêmico, seguindo as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)”, acrescenta Regina.

A militância

Aos 15 anos, Regiane viu como os discursos familiar, médico e pedagógico em relação à língua de sinais e à obrigatoriedade da língua oral estão entrelaçados. Ao vê-la conversando em língua de sinais com um amigo surdo, em sua casa, a mãe questionou o fato de não estar falando, pois isso poderia fazer com que perdesse totalmente a fala. “Perguntei quem teria dito isso, e ela disse que foram o médico, a fonoaudióloga e a pedagoga. Isso me fez ver que esses espaços não gostam da língua de sinais. Mas eu me sentia satisfeita em usar a língua de sinais nesses convívios. É a minha língua, e percebi que ela era proibida”, questiona.

Regiane acentua que, ao contrário de muitas minorias que têm sua luta comunitária, como os índios, que têm relação harmoniosa porque toda a família é indígena, os surdos têm momentos solitários em sua luta, pois convivem com uma família ouvinte, numa escola de ouvintes e é sozinho quando caminha pelas ruas da cidade. “Então, a impressão que dá é que não tem um apoio. Não consigo aprender o significado das coisas. Eu tenho de me consertar para viver em sociedade? É como se fosse uma boneca que eu devesse consertar? Mas eu não nasci no Brasil?”.

Um olhar para si mesma fez Regiane ver que estava presa numa militância e isso, na sua opinião, é muito difícil. “Essa militância cansa demais pelos impedimentos que vamos tendo. Mas ainda bem que sou uma pessoa paciente. Se eu fosse ruim, já teria desistido. Sou braba, mas sou decidida.

O fato de ter um decreto que determina a estruturação de 100% dos espaços de convívio, em especial o escolar, para o desenvolvimento da língua de sinais já é um avanço, mas é preciso dar condições para que isso realmente aconteça, na opinião da pesquisadora. O mais importante, em sua opinião, é que o médico esteja preparado para ter abertura para essas questões, e as famílias com filhos surdos aceitem e conheçam as diferenças em relação à surdez. “O decreto saiu em 2005, estamos em 2010 e apenas agora que as questões curriculares estão sendo discutidas. O Brasil é muito grande, mas realmente precisa, não pode ficar esperando e deixando esses surdos largados. Por exemplo, se eu nascesse cega também iria aprender da melhor forma”, argumenta.

No consultório

“Levei meu filho ao consultório aos 6 meses de idade para diagnóstico. Vi que na hora de entregar o resultado, a fonoaudióloga demonstrou expressão de que iria destruir minha família, de piedade, dizendo: ‘Olha, seu filho é surdo’. E eu respondi: ‘Meu filho é surdo. Que bom. Estou muito feliz, pois vou poder ensinar língua de sinais e traçar outro caminho com ele’. Se ele fosse ouvinte também iria traçar outro caminho, ou se ele fosse moderado, também traçaria outro caminho. Mas a fonoaudióloga não aceitou.”

Para Regiane, se os médicos conhecerem profundamente as questões da língua de sinais, como funcionam as questões neurológicas do pensamento do surdo, talvez as orientações sobre o uso da língua de sinais avançassem. Mas Regiane considera difícil pensar no aceite em relação à língua de sinais. Os profissionais da medicina, em sua opinião, devem ser capacitados para orientar melhor as famílias sobre a possibilidade de usar língua de sinais. “A pessoa tem de buscar aquilo em que se sinta bem. E fazer disso uma busca de um caminho. E se os surdos optam pela língua de sinais, percebemos que a maioria dos ouvintes oprime isso, não aceita.”

De acordo com a pesquisadora, a Organização das Nações Unidas (ONU) exige que os médicos conheçam todas as diferenças. “Mas como, se dentro do próprio curso isso fosse tirado? Isso é um preconceito social forte e uma grande discriminação no Brasil”, acrescenta.

Alguns médicos até aceitam e já há profissionais na área de fonoaudiologia que trabalham com outras vertentes, entre elas a língua e sinais, mas a maioria da área trabalha com a perfeição, a perspectiva de cura.

Regiane diz que é preciso lutar muito ainda. Seu desejo é que seu filho não sofra tanto quanto ela e tenha as mesmas oportunidades que um ouvinte. “Quero que eles tenham liberdade para viver neste espaço social. E que ele tenha a mesma inteligência, a mesma cognição que uma pessoa ouvinte. Mas os médicos sempre criticam, colocam olhar negativo. E eu senti isso, é a minha vivência, é a minha carne que tem esse sofrimento. É como se os pais mandassem, mas não conhecem nossa diferença, pensam que a língua de sinais é como se fossem gestos de macaco. Sei que sou diferente, mas também sei que posso muitas coisas. Mas as pessoas travam, têm medo, têm aversão”, conclui.

 

Publicação

Dissertação “Língua, subjetividade e opressão linguística - interrogações a uma pedagogia (AB) surda”

Autora: Regiane Pinheiro Agrella

Orientadora: Regina Maria de Souza

Unidade: Faculdade de Educação

 

Colaborou Vanessa Regina de Oliveira Martins, intérprete de Libras


 
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