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Alforriados, mas sob o jugo do senhor

Tese apresentada no IE mostra que período anterior
à abolição da escravatura foi marcado por conflitos

MANUEL ALVES FILHO

Negros em terreiro de café em Campinas, em foto de 1888, ano em que foi promulgada a Lei Áurea: mão-de-obra escrava passou a ser gradativamente substituída pelo trabalho livre executado pelos imigrantes (Fotos: Coleção Geraldo Sesso Júnior/Centro de Memória da Unicamp)
A prática da alforria no período anterior à abolição da escravatura foi cercada de conflitos, contradições e tensões. Na maioria das vezes, a liberdade do escravo era concedida apenas pró-forma, visto que ele continuava sob o jugo do senhor. “O negro nessa condição era considerado livre, mas por força de uma série de circunstâncias e condições ele permanecia exercendo as mesmas atividades e sem receber remuneração”, afirma a cientista social Arethuza Zero, que acaba de defender tese de doutorado sobre o tema. O trabalho, orientado pelo professor José Jobson de Arruda, foi apresentado ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, na área de Histórica Econômica.

A pesquisa realizada por Arethuza compreendeu o período entre 1830 e 1888, data em que foi promulgada a Lei Áurea. Diferente de outros estudos sofre alforria, que normalmente se concentram em apenas um tipo de documento, a cientista social optou por trabalhar com três fontes diferentes: cartas de alforria, testamentos e ações de liberdade, todos referentes à cidade de Campinas. Os acervos consultados foram os do Centro de Memória da Unicamp (CMU) e Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), mantido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), também da Unicamp. “Cruzar essas três fontes foi um trabalho muito difícil de ser feito, principalmente por conta do tempo imposto para a conclusão da tese”, explica.

A autora do trabalho revela que teve duas preocupações básicas ao longo do estudo. Primeiro, verificar como as leis aprovadas antes da abolição interferiram nas práticas das alforrias. Segundo, analisar se as conjunturas econômicas e sociais também exerceram alguma influência na concessão de liberdade aos escravos. Em relação ao primeiro aspecto, Arethuza identificou que o advento de novas legislações contribuiu para aumento do número de negros libertos, pelo menos no plano formal. Isso foi especialmente marcante após a promulgação da Lei 2040 de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre”. Esta, além de declarar livres os filhos de escravas nascidos a partir daquela data, trazia outros artigos. Um deles dava direito ao negro de comprar a própria liberdade.

A cientista social Arethuza Zero: pesquisa fundamentada em três fontes diferentes (Fotos: Antoninho Perri)Graças a esse dispositivo, conforme a cientista social, vários escravos obtiveram a alforria. Ainda como consequência das novas garantias legais, outros tantos moveram ações de liberdade contra seus senhores. Boa parte dos pleitos analisados, diz Arethuza, recebeu sentença favorável por parte da Justiça. “Entre as reclamações mais comuns estava a de que o interessado havia ingressado no país depois da promulgação da lei que impedia o tráfico de escravos”, detalha. Nas ações de liberdade, prossegue ela, os negros normalmente eram representados por curadores. Um dos mais destacados nessa função foi o jornalista e advogado provisionado Luiz Gama, ex-escravo e filho de um fidalgo português e de uma escrava liberta.

Vale destacar, conforme a pesquisadora, que o período em que o número de alforrias cresceu coincidiu com uma fase em que a mão-de-obra escrava já começava a ser substituída pelo trabalho livre executado pelos imigrantes, que introduziam técnicas mais modernas de cultivo. “De todo modo, esse aspecto demonstra que os escravos não eram seres tão passivos como se acreditava, visto que muitos lutaram pelos seus direitos”, considera Arethuza. A autora da tese lembra, porém, que antes dessa fase o número de alforrias era muito menor. “Isso se explica principalmente por conta da vitalidade da economia cafeeira, notadamente na região de Campinas. Naquela circunstância, não era interessante para os grandes produtores agrícolas abrirem mão da força de trabalho”.

Ao analisar as informações fornecidas pelos documentos, Arethuza diz ter chegado à conclusão de que a único instrumento de libertação que não se mostrou associado às conjunturas econômica e social do período foi o testamento. Este representava, antes de tudo, um ato “filantrópico” por parte do senhor. “Preocupados em bem salvar a própria alma, muitos representantes da aristocracia da época repartiam seus bens, reconheciam dívidas e alforriavam os escravos”, infere.

O jornalista e advogado provisionado Luiz Gama: em defesa dos escravos (Foto: Reprodução)Arethuza adverte, no entanto, que a despeito de o número de alforrias ter crescido no período analisado, muitas iniciativas eram adotadas para “inglês ver”. “Primeiro, é preciso lembrar que as leis que poderiam favorecer os escravos eram formuladas por integrantes da mesma aristocracia que se beneficiava desse tipo de força de trabalho. Ademais, algumas liberdades eram concedidas com condições. Havia casos em que o senhor alforriava, mas condicionava a medida à permanência do negro na fazenda até que a filha dele, fazendeiro, atingisse a idade adulta e se casasse. Nesse meio tempo, o ‘beneficiado’ permaneceria morando na mesma fazenda, realizando os trabalhos de sempre e sem receber qualquer tipo de remuneração”.

A cientista social destaca, ainda, que os documentos relevam que a maioria dos escravos alforriados no período pesquisado era formada por mulheres, crianças e homens na faixa etária dos 40 aos 49 anos. “Os escravos jovens, portanto em idade produtiva, praticamente não eram beneficiados por medidas de liberdade, o que demonstra que as normas legais aprovadas antes do advento da abolição não trouxeram grandes vantagens práticas aos escravos”, conclui.

 

 

Salvando a alma

Testamento de Francisco Egydio de Souza Aranha

“Em nome da Santíssima Trindade Padre Filho e Espírito Santo, um só Deus verdadeiro. Eu Francisco Egydio de Souza Aranha, estando são, mais em meu perfeito juízo faço meu testamento na maneira e forma seguinte: Primeiramente encomendo a minha alma a Santíssima Trindade que a criou, e rogo ao Eterno Padre, que pela morte (il.) filho a queira receber e a Virgem Maria Senhora Nossa ao Anjo de minha guarda e a todos os Santos que irão ser os meus interceptores para que vá gozar da Bem Aventuração, como verdadeiro católico, protesto, que quero viver e morrer na santa fé católica e creio tudo quanto cre e ensina a Santa Madre Igreja de Roma. Peço humildemente perdão a todos de qualquer escândalo ou atenção que de mim tiverem o perdão a todos meus próximos qualquer agravo que por ventura eu tenha feito porque o meu desejo é que todos nós ajuntemos no céu.”

“(...) outra metade para serem forros os meus crioulos principiando por Fermino, Generozo, Benedicto e quando mais depois outros crioulos como Agostinho e Antonio, e quando mais de a quantia pelos os escravos mais velhos que tenho no sitio e que não sejam viciozos (...) e não poderão esses escravos que ficão forros se apartarem deste município enquanto a vida de minha mulher e de testamenteiro (...) declaro que não serão contempladas na liberdade as escravas crioulas (...)” (sic)

Testamento de Maria Francisca de Camargo

“Declaro que possuo vinte e três escravos que são Matheus com sua mulher Catharina e seus filhos Dalmacio, Bento, Joaquim e Francisca; Antonio Congo com sua mulher Anna e seus filhos Joze Elias, Silvestre. Elizio, Maria, Jesuína; Emereciana com seus filhos Francisco, Anna, Generoza e Manoel e Eva com sua filha Vicencia; Felisberto e Luis. Declaro que depois de minha morte para minhas disposições deixo sim os escravos libertos com a condição e obrigados a darem no prazo de dois anos cada um quarenta mil réis. (...) Declaro que todos os meus escravos declarados neste meu testamento depois de minha morte ficarão gozando de suas liberdades, sem condição e nem constrangimento de pessoa alguma por ser esta minha única vontade, digo última vontade e meu testamenteiro lhes poupara em imediatamente carta de liberdade”

“(...) Declaro que lhes deixo o sítio e terras sem constrangimento algum para nelas morarem não só os escravos referidos como seus descendentes com a condição de não poderem vender e alienar em tempo algum gozando unicamente uzo e fructo do sitio digo do dito sitio e terras passando por morte de uns para outros descendentes dos herdeiros dos mesmos escravos.” (sic) 

“(...) Declaro que deixo a minha escrava Anna mulher de Antonio Congo com seus filhos declarados neste meu testamento por meus únicos universais herdeiros de todos os meus restantes das minhas disposições e de tudo quanto constar pertencer-me.” (grifo meu)

“(...) Declaro que meu escravo Joze fica com a obrigação de tratar de seus irmãos para o bom comportamento de seus parceiros ensinando-lhes a doutrina e algum oficio e acomodando a todos que morarem no sítio (...) fazendo as vezes de pai.” (sic.)

“(...) Declaro que deixo de esmola vinte mil réis a cada um dos filhos de Emereciana que se achão declarados neste testamento para eles comprarem cada um uma vaca para seus princípios (...)” (sic.)

Fonte: Arethuza Zero


 
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