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Campinas, junho de 2001 - ANO XV - N. 163.........
     
   
 

Guerreiras intelectuais
Biografia da anarquista Luce Fabbri, escrita por
Margareth Rago, é o roteiro de uma bela amizade

CARLOS LEME PEREIRA

tentadora a idéia de resumir tudo como “o encontro de duas mulheres libertárias”. Porém, a biografia da anarquista italiana Luce Fabbri, escrita por Margareth Rago, historiadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, propõe tantas “sutilezas selvagens”, que é preferível começar de outro modo. Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo (Editora Unesp) é a simbiose entre duas guerreiras intelectuais, gerada a partir tanto de suas afinidades ideológicas, quanto do embate honesto de visões de mundo que, invariavelmente, materializam diferenças entre uma personagem que pontuou com sua militância quase a totalidade do atormentado século 20 e uma autora que se municia, a cada obra, de novos saberes, imprescindíveis ao esforço de tecer o humanismo que dê esperanças ao ainda enigmático terceiro milênio.

Como um brinde extra, o livro é o roteiro de uma bela amizade. Cimentada ao longo de meia década de entrevistas densas, mas intercaladas por bate-papos informais, muitas vezes nos bares do centro boêmio de Montevidéu, ao som do tango que se toca no Uruguai, país que acolheu Luce Fabbri – e outros socialistas libertários, em fuga do fascismo que rugia na Europa. E o qual, com o tempo, ela adotou, na condição de imigrante. Ou “inxilada”, neologismo que inventou.

E, obviamente, em se tratando de Margareth Rago, é mais um trabalho perpassado pela questão do gênero. Foi justamente a opção por esse campo de atuação que lhe propiciou o contato com Luce, já octogenária, aqui mesmo no Brasil, país que visitou pouquíssimas vezes. “A minha questão com a Luce foi a seguinte: em 1992, eu estava esboçando um trabalho com mulheres anarquistas e queria achar alguém que tivesse uma história impactante”, lembra Margareth. “Foi justamente quando, em agosto daquele ano, o professor de Política Edson Passetti, um colega da PUC-São Paulo, me convidou para participar do congresso Outros 500. Pensamento libertário internacional, no Tuca. Quando descobri que aquela senhora delicada e erudita, no meio do público, era uma lenda viva do anarquismo internacional, meu primeiro impulso foi ir até ela e pedir desculpas, pois afinal quem deveria estar à mesa era ela e não eu”.

“Em seguida, me dei conta de que eu estava sendo presenteada pelos céus e me ofereci para escrever a biografia dela. Uns dois anos depois, obtive financiamento da Faep da Unicamp, Fapesp e CNPq, o que me possibilitou as viagens ao Uruguai, para a pesquisa e, principalmente, conhecer a maravilhosa história de vida da Luce”, continua.

Além da casa/biblioteca da veterana libertária, a autora teve como “QG”, em sua estadia em Montevidéu, a Comunidad del Sur, experiência autogestionária iniciada em 1955 e que até hoje é apontada como uma demonstração cabal de que o anarquismo “pode dar certo”. Reunindo libertários de várias nacionalidades, formações cultural e profissional e de faixas etárias, uma das atividades produtivas da comunidade são uma gráfica e editora que divulgam obras ligadas ao pensamento anarquista e que, inclusive, publicarão a versão em espanhol de Entre a história e a liberdade.
Luce morreu no ano passado, sem ver o livro de Margareth totalmente concluído (saiu em abril de 2001, sendo que em Campinas, o lançamento foi há 15 dias, na Editora Saraiva). “Ela se foi logo após completar 92 anos. Fazia aniversário em 25 de agosto e desde que a conheci, compareci a todos. No último, lúcida como sempre, ela pegou minhas mãos, num gesto de despedida, e disse que já podia partir, pois achava que tinha feito tudo o tinha para fazer”, conta a historiadora, comovida.

No colo de Malatesta – Entre esse “tudo que foi feito”, o livro traz a trajetória de uma mulher de sólida formação acadêmica. Nascida em Roma, em 1908, estudou na Universidade de Bolonha e, no Uruguai, lecionou Literatura Italiana na Universidade da República, até ser cassada durante a ditadura militar. Publicou obras de filosofia política, educação, crítica literária, história e poesia. “Mas ela levava toda essa erudição para o meio operário, sua casa era o espaço da militância, da luta libertária”, ressalta Margareth.

Também é retratada a personagem que atravessou duas guerras mundiais intercaladas pelo fascismo e que, já na velhice, chegou a amargar os efeitos das ditaduras militares do Cone Sul. As perseguições políticas, no entanto, nunca intimidaram Luce. Afinal, seu pai, Luigi Fabbri, foi amigo e colaborador do famoso anarquista italiano Enrico Malatesta, com quem ela chegou a conviver quando menina.
“Eu achava que meu objetivo era não só dar a conhecer essa pessoa, mas fazer um história do anarquismo de dentro. Eu já tinha escrito Do cabaré ao lar, um livro que deu muito certo, mas lidava com o tema circunscrito ao início do século no Brasil. Eu queria pensar de uma maneira mais ampla”, explica a pesquisadora. “Pensar como as mulheres defenderam a liberdade, como a enunciaram, pois sabia que isso foi muito além da questão do sufrágio. As anarquistas questionaram o casamento, as formas de amor, o prazer, a sexualidade”.

Pequenas múmias – Margareth confessa que, quando o assunto focado nas entrevistas era o feminismo, Luce resistia um bocado: “É que, apesar do conservadorismo da época, ela teve a sorte de ter sido criada num ambiente libertário. Gabava-se de nunca ter sido enfaixada como ‘as pequenas múmias egípcias’, numa referência a um costume europeu de antigamente, baseado na crendice de que os bebês eram tão frágeis que, sem as faixas de contenção do corpo, poderiam ‘quebrar-se’ como bonecas. Mesmo a sua adesão ao anarquismo não foi imposta no âmbito familiar, apesar de todo o ativismo do pai. ‘Ele dizia a mim e a meus irmãos que fizéssemos nossas escolhas por nós mesmos, de forma consciente e responsável’, depôs Luce a Margareth.

A historiadora prossegue: “Além disso, Luce era de uma geração de mulheres esquerdistas para quem o feminismo era bandeira da burguesia. Foi a minha geração que estabeleceu a ponte possível entre as duas frentes de luta, nos anos 70”. Luce discordava um pouco da visão que Margareth tinha dela. “Dizia que eu dava muita importância ao fato de ela ser mulher, que o que importava era a humanidade como um todo. Não se dizia feminista, mas lutou pelo divórcio, pregou o amor livre. Imagine então se fosse feminista!”, diverte-se a biógrafa.

“Eu insistia, argumentando que as mulheres sofreram condicionamentos culturais que as colocam num mundo no qual elas estão sempre chegando onde os homens já estão bem à vontade. Por isso, temos que ter mais garra e isso acaba por nos prover de um memória e percepção do mundo diferentes”, diz Margareth. Mas, sob aquela casca de turrona, Luce, nos últimos tempos, “dava mostras de que as mulheres realmente podem dar uma contribuição diferenciada da dos homens para a construção de um mundo mais igualitário”, frisa a autora.

 

 
 
 
 

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