Máquina vai ajudar a extrair luz de palha
Oscar Braunbeck coordena projeto de geração de energia a partir
da palha de cana desperdiçada na queimada

JOÃO MAURÍCIO DA ROSA

Deve funcionar como um barbeador, raspando a superfície sem afastar-se dela e tampouco revolver o solo. Também não pode ser sofisticada, apenas uma máquina suficientemente robusta e construída com eficiência em aço soldado. Equipada com transmissões convencionais de fácil ajuste e manutenção, seu preço e rendimento precisam torná-la competitiva no mercado. Por isso, certos recursos eletrônicos, hidráulicos ou corte laser, nem pensar.

Este é o princípio da colheitadeira de cana que está sendo desenvolvida pela Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp e que poderá viabilizar o uso de mais uma fonte de biomassa para a produção de energia: a palha da cana-de-açúcar.

Concebida inicialmente para reduzir o custo da colheita e dar mais qualidade à cana, a máquina ganhou uma nova dimensão diante da crise energética no país por seu potencial de aproximadamente 30 milhões de toneladas/ano de palha, que atualmente são queimadas ao ar livre.

“O bagaço tem sido o único resíduo aproveitado da biomassa do canavial, principalmente porque está disponível espontaneamente ao lado da caldeira da indústria. Até hoje se fala muito pouco sobre o aproveitamento da palha, mas deve surgir uma valorização da energia embutida na palha diante da atual crise de escassez”, explica o professor Oscar Antonio Braunbeck, coordenador do Laboratório de Projetos de Máquinas Agrícolas da Feagri.

De fato, a palha tem trazido só inconvenientes para os produtores e cortadores de cana. Os primeiros estão na mira de uma lei estadual de São Paulo, que limita as tradicionais e nocivas queimadas no canavial para facilitar o corte. Os trabalhadores, porque sem a queima da palha, não enxergam o colmo onde cravam a foice e ainda correm o risco de enfrentar animais peçonhentos – e de perder postos de trabalho para as máquinas.

“A única forma de efetuar o corte da cana manualmente é com a queimada. No entanto, a lei determina que boa parte das áreas de colheita seja feita sem queima prévia, o que poucos obedecem, mesmo se sujeitando a multas. Não obedecem porque não encontram uma tecnologia de colheita adequada; as conhecidas impõem investimento e perdas altos e qualidade baixa ”, explica Braunbeck.
Com um conceito desenvolvido na Austrália nos anos 50, as atuais colheitadeiras empregadas nas lavouras de cana têm outro inconveniente. Além da perda de até 15% da matéria-prima colhida, estas máquinas arrastam junto cerca de 5 quilos de terra por tonelada de cana”, lembra o pesquisador. E esta terra vai com a cana para a moagem, comprometendo sua qualidade. No caso da palha, a contaminação com terra supera os 10 kg/t, o que inviabiliza sua queima para produzir energia.

Tecnologia própria – Tendo trabalhado durante oito anos no setor sucroalcooleiro nos anos 80, Braunbeck percebeu que o Brasil precisava de uma tecnologia própria para a colheita mecânica. “A Austrália concebeu esta tecnologia há 50 anos, em estado de urgência, pois não tinha mão-de-obra para a colheita. Não pensou em outros mercados quando executou o projeto”, explica.

Por esta razão, o professor decidiu desenvolver a máquina nacional dentro do programa de pós-graduação da Feagri e o projeto foi financiado em diversas fases pela Fapesp (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo). Hoje vai sendo levado com ajuda de quatro alunos bolsistas. “É um projeto simples, estruturado em três pontos: o corte da base, do ponteiro e das folhas. Tudo isso sem prejudicar o pé do colmo, onde tem mais concentração de açúcar; sem danificar a soqueira para evitar a entrada de pragas ou doenças; e sem arrastar terra, melhorando a qualidade da matéria-prima e protegendo a longevidade do canavial”, detalha.

O projeto vem sendo desenvolvido há quatro anos, em parceria com uma indústria de usinagem de Piracicaba. O protótipo estaria concluído dentro de três ou quatro anos, de acordo com as previsões, mas o agravamento da crise energética levou a equipe a incorporar à colhedora um processo de enfardamento da palha. “Agora não podemos precisar quando o protótipo se consolidará como um produto comercial”, afirma.


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A indústria não se mexe

Sendo o protótipo da Unicamp a única pesquisa tecnológica envolvendo princípios alternativos para a colheita da cana-de-açúcar em andamento no país, o que fazem as indústrias agromecânicas brasileiras? A resposta é pouco ou nada, pois não há um mercado suficientemente atraente. Braunbeck conta que para atender a demanda de todos os canaviais do Brasil, maior produtor do mundo, as fábricas teriam que manter no mercado cerca de três ou quatro mil máquinas. “A quantidade é considerada insuficiente para justificar investimento em pesquisas básicas e desenvolvimento do produto, se consideramos que existem atualmente quatro fabricantes”, diz.

Para dar uma idéia melhor, o professor lembra que até o estágio atual dos trabalhos, a Unicamp não gastou mais do que R$ 300 mil dos recursos arrecadados de diversas fontes, em quatro anos. O valor da pesquisa deverá ser equivalente ao preço máximo de uma máquina já com trator. “Um desenvolvimento similar, hipoteticamente realizado pela indústria, utilizando mais recursos físicos e menos analíticos, teria um custo de quatro máquinas”, compara. Atualmente, uma colhedora do modelo australiano vale cerca de R$ 450 mil.

O preço inicial menor e o maior rendimento da máquina prometem derrubar pela metade o custo da colheita. As perdas devem cair pela metade, de 10% para 5%, mesmo potencial para a redução da terra arrastada por tonelada colhida.

O maior rendimento (toneladas/dia) da colhedora proposta surge fundamentalmente da eliminação da logística necessária para manter a sincronia entre a colheita e o transporte. “As colhedoras convencionais têm que trafegar ao lado de um caminhão para ir lançando a cana que é colhida e cortada em rebolos. Nossa colhedora faz o corte dos colmos inteiros e os deposita em leiras de alta densidade para posterior carregamento e transporte, desvinculando assim as operações de colheita e transporte”.

O tempo para a conclusão do projeto, segundo o pesquisador, deve respeitar as prioridades da Universidade, que são o ensino de graduação e pós-graduação. “Quem tem pressa é a indústria. É certo que depois de pronto e funcionando, vai ter gente interessada em transformar esta pesquisa em produto de mercado”, acredita Braunbeck.
Para o professor, as queimadas só serão erradicadas dos canaviais brasileiros quando existir uma tecnologia que torne indiferente a colheita com ou sem queima, em termos de custo e qualidade do produto colhido. “Enquanto colheitas como a de trigo, milho e outros grãos estão totalmente mecanizadas há mais de meio século, a de cana, que oferece a maior produção de massa por hectare, ainda engatinha e sem uma tecnologia viável”, argumenta.

Por isso, ele destaca no trabalho da Unicamp dois fatores chave para tirar o país deste atraso: o empenho dos alunos e os recursos da Fapesp. “Os recursos são poucos, mas suficientes. Não é preciso rios de dinheiro para pesquisar. O importante é que tenhamos uma estrutura séria, para que o dinheiro venha sempre e a pesquisa ande”, finaliza.

 

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