Tragédia encenada por amadores
André Furtado lembra que privatizar setor de energia
não é uma boa idéia nem nos Estados Unidos

WANDA JORGE

uma história que não podia mesmo dar certo. O programa brasileiro de privatização, no qual se insere o setor energético, nasceu com a meta de resolver o balanço de pagamentos e não para solucionar a crise anunciada. Alguns dos principais agentes, como pesquisadores, dirigentes de estatais e a própria equipe técnica do governo, estiveram totalmente alertas quanto à evidência de uma falência na área de energia, mas não tiveram força política para reverter as ações tomadas. Dian-te da exigência de elevados investimentos de longo prazo, a carência desses recursos na seara privada e pública brasileira abriu flanco para o ataque do capital estrangeiro, com todo o seu fôlego.

O professor André Furtado, do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, afirma que não é o caso de atribuir ao governo Fernando Henrique o papel de único protagonista nesta tragédia. Ele inclui a sociedade brasileira no palco de amadores. Afinal, um governo não se traduz em monólogo e os demais agentes em cena têm co-autoria no desastre. O modelo de privatização foi descuidado e, numa comparação, liberalizou mais que os Estados Unidos, principal referência desta corrente de pensamento e onde até hoje isto não é ‘uma boa idéia’ em áreas estratégicas como a da energia. O Brasil cometeu o pecado de encenar um roteiro que não emplacou. Para a platéia do camarote principal, ocupado pelo capital estrangeiro, a retomada frenética do consumo, festejada na primeira metade do atual governo, recebeu aplausos de pé: interessou, sim, mas só pagou ingresso onde a liquidação era maior. Preços de ocasião para um prato apetitoso: as hidroelétricas.

“Com 94% de participação na matriz energética brasileira e seus planos de amortização daquele pesado capital de longo prazo já realizados, o momento era de só alegria: lucros elevados, com tarifas já colocadas no trilho pelo governo e baixo custo de operação”, lembra o professor. Na peça montada pela equipe de FHC, faltou incluir “alguns detalhes”, como mecanismos de transferência desta lucratividade para financiar novas hidroelétricas e, também, termelétricas. Afinal, a energia térmica deveria ser coadjuvante deste grande desafio de gerar luz para um país em crescimento.

Furtado, que colabora com o programa de Planejamento Energético na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM), ministrando a disciplina de Economia da Energia, lembra que esses fatores não estavam no roteiro original. O déficit público impedia investimentos de tal porte. O Banco Mundial já tinha avisado que financiar energia estatal, “nunca mais”. E o capital estrangeiro privado não opera na lógica de interdependência do setor, que muitas vezes precisa transferir energia para onde ela é necessária e não para onde é mais lucrativa.

Caráter populista – Privatização total em energia não é uma boa idéia – já se disse – nem nos Estados Unidos. Estes sabem que com a segurança da população não se brinca, pois ela rende votos. “A medida mais inteligente seria uma abertura para a iniciativa privada num sistema de parceria, o que daria maior controle do processo em área tão estratégica”. Furtado acrescenta que, desta forma, seria possível alavancar investimentos sem comprometer o abastecimento, atendendo a outros desejos dos investidores, que eram o lucro e pouca disposição de arcar com obras de longo prazo.

O professor avalia, contudo, que o desejo do governo FHC, pelo menos em sua primeira fase, era outro. “De caráter populista, o governo deixou o consumo solto, sem regras, em clima de certa euforia que lhe interessava: a população consumia, comprava novos aparelhos, aquecia a indústria e as concessionárias”, assinala o pesquisador. Este calor de consumo desenhou um cenário atraente para os investidores estrangeiros, parceiros do sonho do governo na compra das estatais. Mas só as hidreolétricas interessaram. Afinal, que investidor entraria na bola dividida com as termelétricas, de custo operacional mais alto e que enfrentariam a inexorável concorrência de preços com a hidroelétricas, capaz de derrubá-las.

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Conselho de Política Energética
demorou 3 anos para se reunir

Analisando friamente o espetáculo, o professor da Unicamp identifica a completa falta de planejamento como vilão. Furtado lembra que, na última década, com a proximidade da crise anunciada, foram sendo tomadas medidas emergenciais. Em 1997 criou-se o Conselho Nacional de Política Energética, supra-ministerial, com este objetivo. A sua agilidade, porém, deixou a desejar: a primeira reunião do Conselho demorou três anos para acontecer. Quando se deu conta de que não havia plano estratégico para a questão energética, não se sabia qual o modelo adequado e mais viável para o Brasil, e nem o que fazer com a restrição de consumo, necessária, mas que trazia na bagagem o impacto de pelo menos 10% na queda da atividade industrial.

Sem culpar o governo como agente exclusivo da tragédia encenada, o pesquisador lembra que o uso racional de energia no setor doméstico, o primeiro a responder à proposta de breque no desperdício, deverá ser uma realidade cotidiana a partir de agora. Para a área industrial, que não desperdiça, por se tratar de um insumo que pesa na contabilidade de cada empresa, este pode ser o pontapé inicial para o uso de novas tecnologias que gastem menos energia, como a da co-geração.

“Do governo, que colhe os frutos podres da falta de planejamento, resta esperar que se recupere da fé cega no mercado e avalie, com mais cuidado, a importação de modelos internacionais”, considera Furtado. A inspiração no modelo britânico de desestatização do setor energético foi, no mínimo, desatenciosa: esqueceu-se que lá a rede distribuidora de gás já está totalmente implantada e que esta energia limpa, no Brasil, realmente pode ser usada, como complementar e estratégica em tempo de estiagem, mas necessita de instalação no país, além de exigir contratos de longo prazo. Este cenário levaria à situação insólita de, em determinados momentos, ter de jogar fora energia hidráulica para dar sustentação à térmica e honrar compromissos assumidos. Esta, realmente, não é uma boa idéia.

 

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