Ponta de iceberg
Wilson Cano dirige duras acusações ao governo
e alerta população para o que ainda está por vir

TATIANA FÁVARO

ponta de um iceberg. Esta é a imagem que vem à mente do professor Wilson Cano, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, quando o assunto é crise energética. A falta de uma política de investimentos, a submissão às normas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e a abertura desordenada ao capital estrangeiro são, segundo o economista, razões gritantes para não se acreditar no surgimento, a curto ou médio prazo, de qualquer fio de luz no fim do túnel.

Cano afirma que o desmonte da estrutura de planejamento energético – assim como em outros setores vitais – colocou o Brasil frente à exigência de redução imediata do consumo, de um plano de racionamento feito a toque de caixa, sem explicações concretas sobre as medidas adotadas, com inevitável repasse dos prejuízos ao consumidor e uma expectativa de longevidade da crise.

“Essa fase ruim não é passageira, por duas razões: primeiramente, pelo problema da geração de energia em si; depois, porque sem energia, ninguém investe. Estamos deixando de receber investimentos necessários para aumentar os níveis de produção a partir do ano que vem. E isso vai desencadear uma segunda crise: a da capacidade de produção do país, o que afeta toda a economia e acaba em derrocada social, com mais desemprego, mais miséria, mais violência”, prevê.

O professor ironiza a versão oficial que culpa a estiagem pela crise. Embora admita que a falta de chuva impediu uma melhora nos níveis dos reservatórios, ele lembra que esses níveis estão baixando desde 1997. “Foi preciso muita fé em São Pedro e muito pouca nos meteorologistas, além de óleo de peroba suficiente para encerar a cara e vir afirmar que a estiagem motivou a crise energética”, critica.

Cano salienta que soluções imediatistas não serão suficientes para tirar o país do breu. Para ele, o plano de redução do consumo, concretamente, vai resolver muito pouco. Em setembro, se os níveis de água não tiverem voltado ao normal, a população deverá sofrer com um processo de racionamento efetivo. E, esperar até lá pela graça divina, seria a prova cabal de que, nem diante da crise instalada, o governo busca planejar o setor de infra-estrutura.

As perspectivas pouco animadoras fazem Wilson Cano alertar para o inadmissível: que as alternativas de médio prazo, principalmente a instalação de linhas de transmissão de energia, sejam descartadas a pretexto de dificuldades financeiras. Ele acha que esta discussão não tem recebido atenção suficiente. “Num prazo de seis meses, ou menos de um ano, não devem ser construídas as linhas de transmissão necessárias. As turbinas a gás de algumas termelétricas já estão sofrendo atraso na entrega prevista, de seis meses. Essas termelétricas apresentam elevados custos por kWh, por conta do preço do gás. Portanto, todas as soluções possíveis estão passando do critério do médio para o de longo prazo”, observa o economista.

Submissão – De acordo com economistas e cientistas políticos de todo o país, as imposições do acordo firmado entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – em que também investimentos significam despesas – serviram muitas vezes como escora para a falta de vontade política. A submissão a essas normas internacionais tem sido o mote preferido para as críticas desses especialistas, que ilustram a gravidade da crise energética com a contraposição dos investimentos no setor durante os anos 70 e a aridez amargada na década de 90.

Cano recorda que os investimentos na década de 70 eram, pelo menos, condizentes com a demanda do setor energético. “Nos anos 80, investiu-se pouco diante do que era consumido. Nos anos 90, o governo reduziu ainda mais esse gasto, devido aos cortes de crédito e de investimento público resultantes da política monetária e às privatizações, que nada resolveram e encheram de dinheiro o bolso de espanhóis e de empresários brasileiros ‘espertos’ Com isso, a expectativa de investimentos no setor elétrico passa a ser de sete a dez anos”, afirma

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Consumidor deverá pagar três vezes mais pela energia

Para o professor Wilson Cano, o reflexo da falta de planejamento e de investimento no setor energético não vai significar somente o repasse do prejuízo ao consumidor, a curto prazo. “Na verdade, a população brasileira vai levar outra cacetada daqui a dois anos, porque o custo do kWh estará quase três vezes maior”, projeta. É preciso, de acordo com o economista, retomar a capacidade de investimento o mais rápido possível, a fim de tentar colocar o setor de energia elétrica nos eixos em uma década.

“De onde virão os recursos financeiros para isso? Da forma como estão operando hoje o governo federal e os governos estaduais, em que as dívidas tomam um papel preponderante no gasto público, com juros e amortizações, não há recursos para investir. Isso precisa ser rediscutido, diante da necessidade de se fazer uma opção real: ou pagamos os banqueiros ou construímos plantas de energia elétrica”, adverte.

Mais que enfrentar esta fase negra, de busca de investimentos, é fundamental colocar à luz da realidade as diferenças cruciais entre o problema da distribuição e da geração de energia elétrica no Brasil. Cano afirma que o investidor privado sempre preferiu aplicar seu capital na distribuição de energia. “A geração é um investimento cujo retorno demora muito tempo e de lucratividade modesta. Num sistema hidroelétrico, o investimento é pesado, de custos operacionais fixos pesados; é ingenuidade ou mau-caratismo dizer que o capital se interessa por isso. Para as termelétricas, a necessidade de recursos é menor, a execução mais rápida e os custos fixos, muito mais baixos. Investir na distribuição é como vender sorvete em porta de escola: o retorno é primoroso e imediato”, observa.

Solução política – O economista lembra que a solução não é apenas técnica. É, sobretudo, política. “Qualquer analista político sério vê, hoje, como extremamente difícil para este governo fazer uma recostura política e ganhar a eleição de 2002. E a situação só vai mudar com um novo governo, originário de outra base política, distinta desta união conservadora entre o PSDB, PMDB e PFL. Pouco importa se será o PT ou a ala do PMDB não comprometida com Jáder Barbalho e Fernando Henrique. Quem estiver lá, vai ter que resolver o problema”, afirma.

Novamente irônico, o professor antecipa que de nada adiantará o futuro presidente assumir e prometer, por exemplo, baixar os juros de supostos 21% para 18%. “Não há atividade, salvo o tráfico de cocaína, que ofereça uma taxa de lucro de 18%. Nenhum investidor vai arriscar seu dinheiro onde os juros são tão altos e não existe energia elétrica. Esse modelo de antidesenvolvimento precisa ser extinto. E o povo deve saber o que fazer com seu voto em 2002”, desabafa.
Um desabafo necessário, pregando uma mudança necessária, na avaliação de Wilson Cano. Porque a estrutura orçamentária está comprometida com juros e amortizações, com uma política econômica totalmente curvada aos desígnios do FMI e do Banco Mundial. Porque a ponta do iceberg pode ser suficiente para afundar o navio.

 


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