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Suplemento do Jornal da Unicamp 158

Racismo

Afinal, o Brasil é racista ou não?

A questão colocada no título desta matéria vem gerando uma discussão que se arrasta desde a chegada do primeiro negro escravo. Muito já foi teorizado por grupos divididos entre os que vêem uma democracia racial no Brasil e os que acusam o país de ainda estar longe de oferecer aos negros direitos iguais aos dos brancos. E, numa nação onde o desemprego perpassa o cotidiano das pessoas e as relações entre o Estado e os extratos sociais mais pobres não prosperam, a crise racial mantém um vínculo direto com a miséria, com o descaso.

"Raça e racismo: alguns embates" foi o tema abordado pela antropóloga Maria Suely Kofes, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, durante o Colóquio de Atualização promovido pela Reitoria em outubro. Embora citando vários estudiosos para espelhar as muitas visões sobre o assunto, ela é enfática em sua opinião pessoal: "Como antropóloga, não questiono somente o mito da democracia racial, porque também não há democracia social. A luta dos negros por seus direitos no país denuncia os limites da nossa democracia. Por isso é importante reescrever os livros que contam a história do negro no Brasil, bem como os livros sobre os índios, cuja história parece ter parado em 1500. Todos sabemos que existem diferenças claras entre as nações indígenas e que não há apenas ‘o índio’".

Maria Suely informou que em pesquisa realizada recentemente em São Paulo, a primeira pergunta era: "Você acha que existe preconceito racial na sociedade brasileira?". Quase 100% dos entrevistados responderam que sim. E a segunda pergunta era: "Você tem preconceito?". Quase todos responderam que não. "Então, sobra a questão: quem é que tem preconceito?", pergunta a professora. A seguir, trechos da palestra.

O DEBATE

O debate sobre a questão racial no Brasil tem, ele próprio, uma história e uma configuração, nas quais alguns temas mudam, alguns desaparecem e outros permanecem. E o debate vai se firmar com a Abolição. O que não quer dizer que a questão racial tenha surgido apenas após a escravidão, como querem alguns ao dizer que o escravo definia-se apenas pela sua relação com os senhores, numa relação dada estruturalmente e não por uma relação também classificada entre negros e brancos. Na verdade, até hoje persiste a discriminação não-regulamentada.

OUTRO OLHAR

O Brasil seria uma cultura resultante da combinação e do sincretismo que é afirmado, por exemplo, do ponto de vista da culinária e da religião, contendo os elementos das três raças, que já aparecem quase como três grupos étnicos. Uma das pesquisas pioneiras no Brasil sobre o tema, que foge aos padrões de definição anteriores aos anos 50, foi a realizada na Bahia pelo pesquisador norte-americano Donald Pearson, na qual ele cria outra relação para a questão racial no Brasil, e que, ainda hoje, dificulta o embate. É a de que no Brasil não há preconceito de raça. O problema é de classe. Ou seja, a fórmula é a de que o branco pobre é negro, e negro rico é branco.

A FÁBULA

Na verdade, a fábula das três raças criou um país teoricamente miscigenado, onde uma população que não se reconhece não reivindica seus direitos. Para mim, a idéia de ascensão social dos negros, na qual eles branqueam, é errada. É como você dizer que consumir é uma coisa só dos brancos. Não é porque o negro passa a ter um bom salário e um carro do ano, que ele se torna branco. Não acho que os negros bem-sucedidos sejam brancos. Eles são, sim, negros bem-sucedidos. Portanto, o importante é lutarmos pela criação de uma sociedade igualitária, onde negros e brancos convivam com os mesmo direitos e possibilidades de ascensão social.

O MITO

A historiadora Emília Viotti, tentando compreender a criação do mito da democracial racial, sem deixar de criticá-lo, afirma o seguinte: "É óbvio que os brancos beneficiaram-se com o mito. Mas também é verdade que os negros beneficiaram-se igualmente, embora de uma maneira mais limitada e contraditória. A negação do preconceito; a crença no processo de branqueamento; a identificação do mulato como uma categoria especial; a aceitação de indivíduos negros entre as camadas da elite branca tornou mais difícil para o negro desenvolver um senso de identidade como grupo. Por outro lado, criaram oportunidades para alguns negros ou mulatos ascenderem na escala social. Embora socialmente móveis, os negros tinham, entretanto, de pagar um preço pela sua mobilidade. Tinham que fingir que eram brancos. Eram negros especiais. Negros de alma branca, expressão comum empregada por brasileiros de classe superior branca sempre que se referiam aos seus amigos negros. Se alguns deles estavam ansiosamente conscientes das sutis formas de preconceitos e discriminação, fizeram questão de não mencioná-las. Algumas vezes nem mesmo entre si próprios. Esses indivíduos compartilharam com os brancos o mito da democracia racial. Para a sociedade em geral, eles serviram como um claro testemunho da realidade do mito, como uma evidência tanto da ausência do preconceito como das possibilidades de mobilidade social desfrutadas pelos negros do Brasil".

O PARAÍSO

A chamada questão racial no Brasil tem dilemas que ainda não estão resolvidos, desde a escravidão, que atravessaram a história colonial brasileira. Ela entra pela Independência e só é abolida em 1888, um ano antes da proclamação da República. O Brasil, habitado por vários grupos indígenas, colonizado pelos portugueses e se fazendo com o trabalho do escravo africano, tem uma ordem social que desde o século 16 é tensa e conflituosa. E essa realidade é expressa neste período histórico pelas fugas de escravos, quilombos e os embates abolicionistas. Mas essa tensão e complexidade parecem não existir no que se constituiu no mito de origem, a chamada mistura das três raças, isto é, a história que é contada e recontada de que o brasileiro é resultante da mistura dos europeus, índios e negros. Esta história constantemente autalizada contém a idéia de que o Brasil é resultante da mistura racial, ou seja, a idéia e a noção de miscigenação. Ligado a isso há o que se convencionou chamar também de a "fábula das três raças" -e há quem ainda a defenda-, de que as relações sociais no Brasil são constituídas por várias linhas raciais e étnicas. Essas relações se dão numa convivência pacífica e bem resolvida, ou seja, a contemplação de democracia ou paraíso racial.

A CLASSIFICAÇÃO

As idéias de democracia e paraíso racial se une a dificuldade de compreensão da classificação racial no Brasil, ou seja, a existência de uma terminologia com mais de cem termos já levantados pelo IBGE para descrever ou classificar a pessoa pela sua cor. Isto geraria um debate em torno da multiplicidade de classificações, ao contrário de outros países, como os Estados Unidos, onde há uma classificação mais rígida, bipolar. Isto faz os pesquisadores perguntarem se haveria no Brasil o preconceito de marca ou preconceito de origem, preconceito racial ou preconceito social.

A MULATA E A SANTA

A paulatina configuração de alguns símbolos da nacionalidade brasileira, como por exemplo a feijoada, a mulata (como símbolo da sexualidade da mulher brasileira) e a santa padroeira, estariam associadas à negritude, à miscigenação e à sexualização da mulher brasileira. Conforme Roberto da Matta, o mito ou a fábula das três raças se constitui na mais poderosa força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar uma sociedade hierárquica e individualizar como se ela tivesse uma especificidade na cultura brasileira. Para Roberto da Matta, o sistema social brasileiro, fortemente hierarquizado, estaria legitimado em um plano cultural profundo nesta fábula das três raças.

BRANQUEAMENTO

A noção de raça que primeiro norteou a discussão sobre mestiçagem era bem marcada pela conotação biológica, compartilhando o cientificismo que no século 19 compunha as discussões tanto européias como norte-americanas. O ponto básico dessa discussão, naquela época, era dizer que a miscigenação era um traço característico da sociedade brasileira. E mais: para alguns, este hibridismo levava à degenerescência da raça, resultando num produto equilibrado e de frágil resistência física e moral, não adequado ao clima do Brasil e nem às condições de luta social das raças superiores. Se alguns compartilhavam estes pontos de vista, outros não. Para Sílvio Romero, era preciso partir da constatação de que o Brasil é um povo mestiço. E o mestiço não seria apenas a vitória do branco na adaptação, que era a tese do branqueamento, na luta pela sobrevivência da espécie como resultante da formação de uma raça. Segundo Romero, este será um dia um verdadeiro país mulato.

A ORDEM BIOLÓGICA

É importante colocar-se contra quaisquer concepções e ações políticas que afirmem a superioridade de um grupo sobre o outro com base em argumentos de ordem biológica. Assim, é preciso combater-se o racismo, ou seja, uma hierarquia das raças substancializada em diversos contextos políticos, onde os mais conhecidos são o nazismo e o apartheid sul-africano.

PÉ NA COZINHA

A questão racial no Brasil parece um boneco de ventríloquo, principalmente se levarmos em conta a questão ideológica. É difícil convencer um estrangeiro sobre o problema racial quando o Brasil é vendido e visto como um país negro e sem racismo. Até Fernando Henrique Cardoso falou que tem um pé na cozinha, referindo-se à sua trisavó, que era negra, e a sua bisavó, que era mulata. Mas hoje esta realidade está mudando, através das reivindicações de grupos negros na busca de política públicas de igualdade.

ANCESTRALIDADE

A relação entre raça e racismo está ficando cada vez mais complicada. Muitos militantes negros petistas, por exemplo, ao votarem na eleição anterior para prefeito em São Paulo optaram pela candidatura Pitta à do PT. Ou seja, tornou-se uma discussão que perpassa o ideário político e se envolve na conceituação de raça. É a visão pertinente à origem, à África, à etnia e à sua identificação como negro.

NOVA ROUPAGEM

Nos anos 80 e 90, o debate sobre a causa negra ressurge com uma nova roupagem, como parte dos movimentos sociais que se fortaleceram desde os anos 70 em torno da identidade negra, da cidadania, seja pela politização em torno de uma consciência negra ou de uma cultura negra como meio de marcar uma cidadania diferenciada. Cidadãos com direitos, mas enquanto negros, afirmados muitas vezes culturalmente, seja através do candomblé, do reggae, da capoeira ou de outras manifestações culturais. Ou pela procura de dados que mostrassem efetivamente a condição do negro na sociedade brasileira. Alguns dados inclusive mostram que houve uma alteração na posição dos negros na estratificação social, ou seja, se discutindo uma crescente classe média negra.

IDENTIDADE

Os movimentos pela cidadania e a discussão dos grupos políticos organizados em torno da afirmação de uma identidade negra têm também constituído uma intervenção nos meios culturais para a positividade da negritude. Uma denúncia do preconceito e da discriminação. Foram promovidos protestos contra a violência policial, contra o péssimo atendimento em agências públicas, contra a discriminação nos meios de trabalho e espaços públicos; aconteceram inúmeras organizações em defesa dos interesses dos direitos dos negros, inclusive para garantir a lei que afirma ser o racismo um crime inafiançável, conforme a nova Constituição aprovada em 1988, ano do centenário da Abolição.

RAÇA

Nos Estados Unidos há quem, em defesa dos negros, use a noção de raça. Já no Brasil, desde setembro de 96, está mensalmente nas bancas uma revista intitulada Raça Brasil. Esta revista, no seu primeiro número, trazia um editorial na qual afirmava que a publicação nasceu para dar ao leitor o orgulho de ser negro, propondo falar dos problemas dos leitores e apresentar soluções, ajudando a se cuidar melhor, discutir a identidade, resgatar a herança cultural negra, negar o preconceito e, principalmente, afirmar as qualidades. A revista reverteu valores como os do negro preguiçoso e pobre, trazendo matérias nas quais uma composição de valores mostra o contrário: mostra negros bem-sucedidos. Reverter esse quadro de valores é uma luta importante.

ESTRATÉGIAS

Para mostrar a complexidade do tema, no dia 25 de abril de 1991, a Folha de São Paulo, no seu suplemento Cotidiano, trazia uma notícia com o seguinte título: "Campanha quer convencer negros a assumir a cor preta no Censo." E o mesmo jornal, no dia 18 de junho de 1991, no seu suplemento Mundo, anunciava que o parlamento sul-africano eliminava a classificação de pessoas por raça. Lidas juntas, essas notícias pareciam indicar uma curiosa inversão. Mas nem o Brasil estaria inaugurando o seu apartheid e nem a África do Sul realizava uma idealizada democracia racial. Contudo, se remetem a distintos contextos políticos essas notícias também expressam as estratégicas mobilizações ou desmobilizações em torno de raça. Ou seja, em torno da significação de raças há embates científicos e políticos, históricos e contemporâneos.

ETNIA

Na Antropologia e nas Ciências Sociais há quem proponha substituir raça por etnia ou considerar que o conceito de raça só faz sentido de ser usado no âmbito do que é chamado de racialismo, isto é, de uma ideologia, de uma teoria, onde raça é um operador de classificação, descartando os argumentos de ordem biológica ou naturalizadores. Por exemplo, na tradição cultural norte-americana, raça é uma propriedade natural, escrita nos corpos das pessoas mesmo que essa concepção não tenha nenhum fundamento antropológico desde o aparecimento do homo sapiens. Essa concepção cultural foi ancorada em leis que só começaram a ser modificadas na década de 60, com uma série de lutas pelos direitos dos negros nos Estados Unidos.

MATERIAL DA CASA

É preciso uma atenção às distintas traduções que estão se fazendo de raça, sejam estas conceituais e/ou políticas. Afinal, raça já se referiu a agrupamentos linguísticos e agregados somáticos. Já permitiu cálculos sobre medidas cranianas. Mas se o termo raça não fala hoje mais de medidas de crânios, ele é hoje bastante discutido não só no Brasil, mas inclusive no Brasil. Aliás, sobre o Brasil, Arthur Ramos, em 1937, dizia que o assunto do negro não é moda, é assunto permanente, porque ele é material da casa.


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