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Democracia e participação nos conselhos gestores

LUIZ SUGIMOTO

Nascidos no bojo da luta dos movimentos sociais pelo estado de direito no Brasil, os conselhos gestores foram idealizados como espaços de co-gestão na elaboração de políticas públicas, com a participação do Estado e de setores organizados da sociedade civil. A Constituição de 1988 tornou obrigatória a criação de conselhos nas áreas da saúde, da educação, da criança e do adolescente e da assistência social, em todos os níveis de governo (municipal, estadual e federal). Estes espaços estão hoje disseminados aos milhares pelo país, e expandidos para outras áreas, como da habitação.

Na entrevista a seguir, a professora Luciana Ferreira Tatagiba, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, apontada como umas principais estudiosas do tema, explica por que os conselhos gestores, que deveriam servir como espaços de composição plural e paritária entre Estado e sociedade, não vêm atendendo às expectativas de contribuir na formulação e controle das políticas públicas setoriais.

A professora Luciana Ferreira Tatagiba, do IFCH: “Os estudos que temos realizado nos permitem afirmar que as mudanças alcançadas ainda estão muito longe das expectativas que animaram a criação dos conselhos”  (Foto: Antoninho Perri)Jornal da Unicamp – Quando e em qual contexto surgem os conselhos de políticas públicas no Brasil?

Luciana Tatagiba – O tema dos conselhos de políticas públicas está associado ao longo e tortuoso processo de construção da democracia brasileira. O que está em jogo nesses espaços é a invenção de uma nova institucionalidade participativa, voltada à reforma do Estado, por meio da democratização da gestão das políticas públicas. É interessante que o tema emerge, no caso brasileiro, no mesmo contexto de luta pelo retorno às liberdades democráticas, no final dos anos 70, já sinalizando exigências para a democracia em construção: ampliar os marcos da participação popular na tomada de decisões.

Esperava-se que por meio desta participação cidadã seria possível reverter o padrão clientelista e excludente que marcara o planejamento e execução das políticas públicas no Brasil. Esse é um capítulo importante da luta dos setores progressistas que resultou na afirmação da participação como princípio constitucional em várias áreas de políticas, como saúde, assistência social, criança e adolescente, educação, etc., nos níveis federal, estadual e municipal. Ou seja, o que demanda a Constituição é que, em um conjunto diversificado de políticas, inaugurem-se espaços de participação de composição plural (ou seja, incluindo o conjunto de interesses envolvidos) e paritária entre Estado e sociedade, com natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais.

JU – Em que ritmo se deu a criação destes conselhos pelo país?
Luciana Tatagiba – No decorrer dos anos 90, inúmeros conselhos foram criados nas mais diversas áreas. Não há dados muito precisos, mas o IBGE, em 1999, contabilizava a existência de 23.987 conselhos municipais vinculados a políticas sociais. Estudos apontam que entre 1991 e 1993 foram criados mais de dois mil conselhos municipais por dia, só na área da saúde. Os últimos levantamentos do Conselho Nacional de Saúde indicam a existência de conselhos de saúde em todos os municípios e estados brasileiros.

No caso da cidade de São Paulo, uma pesquisa que realizei em 2005 apontava 40 conselhos de políticas públicas, distribuída numa diversidade enorme de secretarias, sendo que a maioria foi criada nas duas gestões do PT, com Erundina e Marta Suplicy. Mas, como eu disse, este não é um processo restrito às grandes capitais. Pesquisa no Rio Grande do Norte, por exemplo, indicava, em 1998, a existência de 302 conselhos só na área social. Portanto, podemos hoje falar num exército de conselheiros espalhados pelos quatro cantos do país.

JU – Em que pese a exigência da criação dos conselhos, que implicou nesta disseminação, qual é o seu peso efetivo nas decisões de políticas públicas?
Luciana Tatagiba – Bem, nas últimas décadas houve essa aposta na institucionalidade política como campo estratégico de luta dos setores progressistas e democráticos, sem a qual não se teria construído essa nova arquitetura da participação. Hoje o que se busca é saber até que ponto foi possível avançar a partir dessa estratégia. Esse é um balanço que criticamente se faz dentro e fora da academia. As agendas de pesquisa nessa área estão hoje muito voltadas a compreender os resultados dessa participação, num olhar talvez menos celebratório do que aquele que orientava as análises nos anos 90.

Embora ainda haja muito a compreender e avançar em termos de pesquisa, os estudos que temos realizado nos permitem afirmar que as mudanças alcançadas ainda estão muito longe das expectativas que animaram a criação dos conselhos. Essa nova institucionalidade participativa tem ocupado um lugar ainda marginal nos processos decisórios que envolvem a definição das políticas em suas áreas específicas. Mesmo que os problemas apontados variem em natureza e extensão, não é incomum encontrarmos nas conclusões dos estudos uma mesma afirmação: os conselhos “não deliberam”.

Talvez seja preciso repensar as nossas expectativas para termos um quadro mais realista das potencialidades desses novos experimentos. Os conselhos têm o seu papel a desempenhar no controle da gestão pública e na democratização das relações sociais e políticas, mas também têm limites que lhe são inerentes, como por exemplo, a sua natureza setorial e fragmentada. A compreensão desses limites pode evitar que sobre os conselhos sejam lançadas exageradas expectativas, que vão levar inevitavelmente à frustração.

JU – A disseminação dos conselhos no Brasil se dá na década de 90, mesmo período da chegada do neoliberalismo, que defende a redução do poder do Estado e dos gastos sociais. Temos aí outro conflito?
Luciana Tatagiba – A implementação do neoliberalismo é um ingrediente importante, que torna esta experiência ainda mais dilemática. O interessante é que o neoliberalismo também vai defender a participação da sociedade civil, mas por outros motivos. Esse é um tema que tem estado muito presente nos nossos estudos – me refiro aqui aos debates e produções realizados no âmbito do Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática, que ajudei a criar e do qual participo desde 1996.

No interior do ideário neoliberal, a sociedade é chamada a participar para aumentar a eficiência das políticas, numa perspectiva mais gerencialista que transformadora, numa participação que se transforma em “ferramenta de gestão”. Isto fica evidente nos governos Fernando Henrique Cardoso, no qual se afirma este outro ethos da participação. Nesse diapasão, o tom contestador que compunha a retórica participacionista se dissolve no discurso técnico da moderna gerência, com um evidente deslocamento do tema do conflito em favor da temática da eficiência e eficácia das políticas.

Busquei trabalhar esse tema na minha tese de doutoramento, principalmente a partir do conceito de democracia gerencial. Hoje é interessante perceber como esses distintos fundamentos que conferem legitimidade à participação, mostram-se combinados – com grau diferente de intensidade – em diferentes modelos de gestão.

JU – E, partindo desse quadro mais geral que você traçou, quais têm sido os principais problemas ou desafios da participação nos conselhos?
Luciana Tatagiba – Poderia ficar o dia todo elencando problemas e desafios, como os interesses corporativos e particularistas de muitas organizações e movimentos sociais que compõem esses espaços, que muitas vezes se utilizam deles para se aproximar do Estado e obter recursos materiais ou simbólicos. Ou mesmo o vínculo de muitas das lideranças de movimentos com partidos políticos, o que acaba às vezes transformando os conselhos em palco da disputa partidária.

Vimos isso com muita clareza numa pesquisa realizada junto ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente de São Paulo. Um limite enorme a ser superado diz também respeito à dificuldade de obter informações dos órgãos governamentais. Para uma boa participação é preciso boa informação, e isso esbarra na forma de operar da burocracia brasileira. Acompanhando o dia-a-dia de alguns conselhos em São Paulo, nas gestões Serra/Kassab, vimos a enorme dificuldade que os conselheiros têm para exercer esse direito de cidadania, que é o aceso à informação. E sabemos que isso não se restringe a São Paulo...

Isso, sem contar, obviamente, com a recusa dos governos em compartilhar com a sociedade civil os processos de decisão sobre a forma de investir o dinheiro público. Os governos se esquivam como podem, e quando são bem sucedidos acabam transformando os conselhos em espaços de legitimação para suas decisões, no geral tomadas longe dos olhos públicos e perto dos seus parceiros tradicionais. Por isso, a própria existência destes conselhos e a obrigatoriedade dos governos sentarem-se à mesa para negociar a elaboração de políticas públicas com a sociedade civil já representam um enorme avanço. Mas, ainda sobre a questão dos desafios, uma questão central diz respeito, justamente, à relação entre democracia participativa e democracia representativa.

JU – O que você quer dizer com isso?
Luciana Tatagiba – No projeto democrático-participativo não se trata de substituir os mecanismos tradicionais de representação, sobre os quais se assentam os alicerces da democracia moderna. O que está em jogo é uma complementaridade entre ambos os modelos que possibilite superar alguns dos impasses do modelo democrático hegemônico. Essa me parece uma aposta fundamental e ao mesmo tempo difícil de ser realizada. Hoje o que vemos é uma combinação de natureza subordinada entre democracia participativa e democracia representativa, sob hegemonia desta última.

JU – Poderia dar algum exemplo concreto disso?
Luciana Tatagiba – Sim, em um estudo que realizamos sobre experiências de participação no governo da Marta Suplicy, em São Paulo, vimos como a realização do projeto participativo ficou condicionado – e foi profundamente limitado – pelas exigências próprias impostas pelo ritmo das disputas eleitorais. No caso do governo Marta, o saldo das experiências participativas parece nos indicar um governo que, ao mesmo tempo em que abriu novos espaços de participação (como, por exemplo, a criação do Orçamento Participativo e do Conselho Municipal de Habitação, antigas demandas dos movimentos populares) não investiu nesses espaços. O que vimos foi uma convivência muito “pacífica” entre as novas experiências de participação com uma prática de gestão conversadora no que se refere, por exemplo, à relação entre executivo e legislativo, cujo fundamento esteve ancorado numa relação de troca, forjado sobre os interesses eleitorais de curto prazo.

JU – Como fica a questão da legitimidade da representação da sociedade civil nesses espaços?
Luciana Tatagiba – Esse é um dos novos temas que tem emergido no avanço das agendas de pesquisa nessa área. Hoje há um grupo que vem discutindo qual a especificidade da representação da sociedade civil em espaços como os conselhos, o que significa, dentre outras coisas, perguntar sobre quais critérios de legitimidade se assentaria essa representação. Por algum tempo essas experiências foram tratadas como sendo exemplos de democracia direta. Mas, como sabemos, não se trata disso. Espaços como conselhos, orçamentos participativos, etc, colocam em curso diferentes modalidades de representação e fundamentos de legitimidade, os quais por si só têm se traduzido em interessantes agendas de investigação, com desdobramentos interessantes no campo das teorias da democracia.

No campo das pesquisas empíricas, hoje já temos um conjunto de informações no que refere ao perfil dos conselheiros. Nesse caso é interessante perceber que apesar dos diferentes contextos nos quais a prática conselhista ganha vida, os conselheiros da sociedade civil têm renda familiar e nível educacional acima da média da sua população de referência. Isso nos tem permitido falar numa certa elitização da participação nos conselhos, diferente do que vemos, por exemplo, no caso das experiências de orçamento participativo.

Uma outra questão importante, aqui, diz respeito à relação entre os conselheiros e suas organizações de origem. O que os estudos apontam é que na maioria dos casos os conselheiros, nas reuniões do conselho, acabam representando a si mesmos. Isso é ainda mais dramático no caso dos conselheiros governamentais, porque muitas vezes este representante não tem qualquer poder de decisão nas suas secretarias e, por isso, não pode encaminhar acordos e negociações no interior dos conselhos, ou quando os faz, tem dificuldade para honrá-los depois.

JU – Diante de todos esses desafios você acha que ainda é possível manter esta aposta na participação institucional, ou de luta por dentro do Estado?
Luciana Tatagiba – Sim, não tenho dúvidas disso. Mas, como disse, também acredito que devemos repensar nossas expectativas e fugir das soluções simplistas, que ora defendem uma aposta cega na participação institucional, ora negam qualquer forma de envolvimento com dinâmicas participativas institucionalizadas em favor da ação direta disruptiva. Um caminho mais frutífero seria pensar nas diferentes perdas e ganhos de cada uma dessas estratégias. Acho que também valeria a pena, agora com o acúmulo de estudos que temos nessa área, investir um pouco mais em duas questões: por que participar e que relação podemos estabelecer entre participação e democracia?

 

 

 
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