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Sem maquiagem
Tese investiga a realidade das mulheres
que atuam no Sistema de Vendas Diretas

Ao mesmo tempo em que apresenta a imagem de uma companhia moderna e comprometida com a preservação ambiental, a Natura, maior empresa de cosméticos do Brasil, centraliza o seu sucesso comercial no trabalho de aproximadamente 1 milhão de revendedoras, a maioria delas atuando de maneira informal. Além de não ter qualquer vínculo empregatício ou direito trabalhista, esse exército de pessoas, que equivale à população de Campinas (SP), ainda assume uma série de riscos, entre eles o financeiro, para desenvolver uma atividade que raramente é reconhecida pela sociedade como um trabalho. Estas e outras constatações fazem parte da tese de doutorado apresentada recentemente ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp pela socióloga Ludmila Costhek Abílio. Intitulado O Make up do trabalho: uma empresa e um milhão de revendedoras de cosméticos, o estudo foi orientado pela professora Angela Maria Araújo.

A pesquisa de Ludmila faz uma abordagem original ao analisar aspectos relacionados à informalização e precarização do trabalho dentro de um segmento denominado Sistema de Vendas Diretas. A autora da tese explica que escolheu a Natura para desenvolver a investigação por se se tratar de uma empresa brasileira multinacional líder de mercado e de reconhecido sucesso comercial. Atualmente, a marca está presente em sete países da América Latina e também na França. “A relação entre essas consultoras e a empresa constitui um fenômeno social importante. Estamos falando de mais de um milhão de pessoas cujo trabalho, embora sem vínculo formal, contribuí para o êxito da marca e a realização da distribuição dos produtos, inclusive em nível internacional”, explica a socióloga.

Conforme a pesquisadora, a relação dessas mulheres com a Natura é ambígua. Elas são tratadas, a um só tempo, como revendedoras e consumidoras. “Muitas dessas consultoras começam a vender os produtos para poder consumir. Ou seja, parte do que seria o lucro delas é revertido em itens para uso próprio”, afi rma Ludmila. Para a empresa, prossegue ela, o primordial é a relação de venda com as consultoras. O que acontece entre elas e seus clientes não afeta de fato a acumulação da empresa. A Natura determina uma pontuação mínima para os pedidos (que equivalem a aproximadamente R$250), e formaliza a relação com as consultoras via boleto bancário. Novos pedidos só podem ser feitos quando a consultora tiver quitado as faturas anteriores. Para tornar-se uma “representante” da marca, a interessada precisa fazer um cadastro, ser maior de 18 anos e comprovar que está com o nome limpo. “Cumpridas as exigências, ela tem direito de comprar os produtos com 30% de desconto, que equivale a sua comissão pelas vendas”, diz a autora da tese.

Como nem sempre essa revendedora consegue atingir a cota mínima para fechar o pedido, a alternativa quase sempre é vender os produtos para outras pessoas. O passo seguinte é aproveitar as promoções do tipo “compre um perfume e ganhe outro”. Quando se dá conta, ela começa a fazer um estoque em casa, até para ter itens de pronta entrega e não perder vendas. “Esse aspecto é interessante, pois confi gura uma transferência de risco da empresa para a trabalhadora. Durante a minha pesquisa, eu tive a oportunidade de conhecer a fábrica da Natura, que fi ca instalada em um município da Grande São Paulo. O sistema de produção adotado pela companhia é o chamado just in time. Ou seja, ela produz de acordo com a demanda, desobrigando-se, portanto, de manter estoques. Em outras palavras, a companhia não fica com possíveis encalhes, mas as consultoras, sim, arcando com o risco de investir em produtos que não necessariamente serão vendidos”, compara.

A transferência de riscos não para por aí, como destaca Ludmila. É que as vendas da Natura para a rede de consultoras é muito segura. Caso estas não cumpram o compromisso assumido, a empresa pode protestá-las. A pesquisadora apurou que o índice de inadimplência fica próximo de 1%. Ocorre, porém, que as revendedoras não gozam da mesma garantia. “O pedido feito pelas clientes é totalmente informal. Se no momento da entrega a compradora voltar atrás, a consultora ficará com um mico nas mãos. Outra situação comum é a revendedora entregar o item e não receber por ele. Nas entrevistas de campo que fiz, muitas mulheres me contaram que levam recorrentes calotes”, revela a autora da tese. Um aspecto curioso apurado pela pesquisadora refere-se ao diversificado perfil socioeconômico dessas mulheres.

Entrevistas

Ludmila entrevistou desde faxineiras até mulheres de altos executivos, passando por professoras, donas de casa e até uma delegada da Polícia Federal, que vende os cosméticos no prédio da própria corporação, ao longo do expediente. “Entre essas mulheres, algumas vendem para poder consumir, outras para complementar o orçamento doméstico e tem também aquelas que fazem dessa atividade a sua única profi ssão. Algumas vendem muito e alcançam bons ganhos, mas não são maioria. Em 2009, a empresa divulgou que 22% das mulheres faziam dessa a sua ocupação principal”, relata. O estudo desenvolvido em torno do Sistema de Vendas Diretas permitiu à socióloga fazer uma refl exão sobre dois fenômenos muito atuais: a perda da fronteira entre trabalho e consumo e a intensifi cação do trabalho.

No caso das consultoras da Natura, considera Ludmila, esses dois aspectos ficam muito evidentes. Na relação que mantêm com a empresa, reforça a pesquisadora, essas mulheres são consumidoras, porque compram os produtos para uso próprio ou revenda, mas também são trabalhadoras, porque reservam tempo, esforço e estrutura para comercializá-los para terceiros. Ademais, elas normalmente cumprem essa atividade em associação com outras, e as vendas podem envolver tarefas como fazer pedidos, separar itens ou entregar encomendas em horários que seriam originalmente reservados ao descanso ou lazer, como madrugadas e finais de semana. “Quase todo mundo conhece uma revendedora Natura, e provavelmente já viu pessoa oferecendo um catálogo para consulta no clube, no churrasco com os amigos ou até na reunião de Páscoa da família”, elenca.

A extensão do tempo de trabalho e as condições precárias de trabalho, segundo a autora da tese, têm se tornado cada vez mais comuns, não apenas em relação à companhia tomada para estudo. “Estamos cada dia mais proletarizados”, sentencia ela. Em relação especifi camente às consultoras da Natura, há outro fator que concorre para a precarização do trabalho. Toda a atividade é desenvolvida na informalidade. Em outras palavras, as mulheres não tem qualquer vínculo com a empresa, que está respaldada juridicamente na legislação do Sistema de Vendas Diretas. “Esse aspecto é bastante sério. Eu entrevistei uma mulher com cerca de 60 anos, que vende Natura há 30. Ela me contou que, antigamente, seus ganhos eram bons, mas minguaram com o passar do tempo. Muitas de suas clientes também se transformaram em revendedoras, o que reduziu o mercado. Agora ela chegou a um estágio em que não consegue mais se manter com a atividade e também não encontra outra colocação profi ssional”, relata Ludmila.

Apesar de dedicarem muito do seu tempo à venda dos cosméticos e de enfrentarem uma série de difi culdades, continua a socióloga, essas mulheres dificilmente são vistas como trabalhadoras pela sociedade. Com frequência, a atividade é considerada como algo lúdico ou, no máximo, como um bico. “Para mim, porém, está muito claro que essas mulheres são trabalhadoras, sim. Tanto é assim, que a atividade exercida por elas assume um caráter central no sucesso da Natura. Ao observar a linha de produção da fábrica, eu pude verificar que os produtos correm por uma esteira e são automaticamente embalados em caixas etiquetadas, que serão entregues, via Correios ou transportadoras, nas casas das consultoras, em todos os rincões do país. Segundo a empresa, são despachadas cerca de 40 mil encomendas por dia. São essas revendedoras que substituem as lojas físicas e os funcionários contratados que atuariam nos pontos de venda. Isso sem contar o marketing gratuito que esse exército de pessoas faz para a empresa, por meio da divulgação boca a boca, porta a porta”, pondera.

Ludmila diz que tentou entender como o fato de a Natura contar com a força de trabalho de 1 milhão de informais não abala a imagem da empresa. “Estamos falando da Natura, mas não há nada especificamente contra a empresa. Ela é apenas um exemplo do que ocorre na atualidade. A conclusão a que cheguei é que a exploração do trabalho não está mais em discussão. A questão foi naturalizada. A sociedade despolitizou o tema, e é possível entender historicamente isso. A ameaça do desemprego acabou por legitimar a exploração do trabalho. As injustiças em torno do trabalho já não merecem reflexão. O medo de ficar fora do jogo desmobilizou as categoriais profissionais. O que importa é estar trabalhando, segundo esse entendimento. Entretanto, se queremos fazer uma análise crítica em relação a esse estado de coisas, temos que colocar tudo isso em debate”, defende a pesquisadora, que contou com bolsas de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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■ Publicações

ABILIO, L. C. Indiscernibilidade do trabalho e acumulação capitalista: o estudo de caso de 700 mil revendedoras de cosméticos In: X Congresso Luso-Afro-Brasileiro, 2009, Braga. v.02. p.485 – 497. Disponível em
http://www.xconglab.ics.uminho.pt/ fi cheiro/Volume02.pdf
ABILIO, L.C. O make up do trabalho: Estudo do ‘caso’ de 800 mil revendedoras de cosméticos. 34ª encontro da ANPOCS. Disponível em http://anpocs.org.br/portal/index.php?option=com- wrapper&Itemid=90 (st 35)
ABILIO, L. C. Informalidade e acumulação capitalista: a centralidade do trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos In: ARAUJO, A.C & VERAS, R. Formas de trabalho no capitalismo atual: condição precária e possibilidades de reinvenção. São Paulo : Annablume (no prelo), 2011 Tese: “O make up do trabalho: uma empresa e um milhão de revendedoras de cosméticos”
Autora: Ludmila Costhek Abílio
Orientadora: Angela Maria Araújo.
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

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