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A Comuna dos Trabalhadores
A primeira experiência de um governo operário, uma ‘revolução-aurora’

Um governo socialista?

Podemos afirmar, portanto, que a composição social dos combatentes de base e dos dirigentes da Comuna de Paris foi marcadamente operária. Não eram apenas operários. Os profissionais liberais, pequenos proprietários, lojistas e artesãos, que eram muito numerosos na população de Paris, tiveram, como indicamos de passagem, participação importante nos órgãos de governo da Comuna. Aliás, Marx fala em “governo essencialmente operário” e não em governo operário sem mais. Continuando. Pelos dados apresentados, também é legítimo dizer que os operários estavam forjando uma concepção de mundo anticapitalista na conjuntura da crise do 2º Império e se valendo da extraordinária experiência revolucionária dos trabalhadores de Paris. Essas duas constatações são fundamentais, tendo em vista a atual operação de “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna. Mas elas não encerram a questão. Pois resta saber o que foi a política implementada pela Comuna. Ela foi simplesmente uma política republicana burguesa? Uma política de reformas sociais? Uma política socialista?

Os communards lutaram pela “república social”, tomaram diversas medidas de proteção ao trabalho e à população pobre, mas só uma que prenunciava uma economia de tipo socialista: decretaram que toda fábrica abandonada pelo proprietário - fenômeno comum em tempo de revolução – ficaria sob controle dos seus operários. Mas isso é pouco para afirmar que o governo da Comuna foi socialista. O grande historiador Ernest Labrousse insistiu, num debate entre os historiadores franceses por ocasião do centenário da Comuna, num ponto importante: nenhum documento da Comuna apresenta o socialismo como objetivo de governo. Marx, cuja tese sobre a natureza operária da Comuna é o motivo de toda essa discussão historiográfica, escrevendo cerca de dez anos após a Comuna, observou, em carta a um correspondente, que a maioria dos dirigentes não era socialista. Alguns autores afirmam que Marx estaria, nessa observação, revendo a análise que fizera no já citado Guerra Civil na França, obra que teria sido escrita num momento de entusiasmo e com objetivos políticos. Nós pensamos que não se trata disso. Marx afirmou em Guerra Civil na França que a Comuna foi a primeira experiência de um governo operário, mas não disse que ela foi um governo socialista. Isso ela não foi – e dificilmente poderia sê-lo.

Não se pode perder de vista um fato elementar: o objetivo imediato da Comuna foi depor um governo considerado de traição nacional. Por temor ao proletariado de Paris, esse governo aceitara uma paz forçada com a Prússia, paz que restringia a soberania da França e mutilava o seu território. A Comuna tinha pela frente, então, uma tarefa nacional e democrática, que é tarefa típica das revoluções burguesas. Ademais, outras tarefas burguesas contidas como promessa na Revolução de 1789 não tinham sido cumpridas. Exemplos mais importantes são a separação da Igreja e do Estado e a implantação do ensino público, gratuito, obrigatório e laico. O desenvolvimento do princípio da cidadania, criatura típica da revolução burguesa, depende da implementação de medidas como essas. A Comuna tratou de realizar essas duas tarefas. Em resumo, a Comuna tinha de levar adiante as transformações burguesas inacabadas para, como disse Engels, “aplainar o terreno” para a transformação socialista da velha sociedade. Para essa tarefa foi possível contar com grande parte da pequena burguesia de Paris, dos artistas, dos profissionais liberais e de alguns setores radicalizados do republicanismo burguês. É por isso que, quando Marx apresenta sua caracterização da Comuna, ele usa a expressão um “governo essencialmente operário”, indicando a existência de uma frente popular dominantemente operária no governo da Comuna.

Mas há uma componente socialista presente na política da Comuna que é menosprezada pelos historiadores, inclusive pelos historiadores socialistas. Isso não decorre da ignorância dos fatos históricos, mas da concepção economicista de socialismo que ainda vigora entre os analistas. Refiro-me ao tipo de democracia que a Comuna estabeleceu: mandato imperativo, revogável pelos eleitores, eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi o “governo mais barato” da história) etc. Essa democracia de tipo novo, que combina democracia representativa com democracia direta, representa o início de um processo de extinção do aparelho de Estado, enquanto aparelho especial colocado acima da sociedade. Ou seja, essa política representa uma socialização do poder político. Pois bem, esse elemento é parte integrante e imprescindível do socialismo, do mesmo modo que a socialização dos meios de produção. A política da Comuna para a organização do poder era uma política socialista, embora seus dirigentes não o tivessem declarado e muitos deles, talvez, não tivessem consciência desse fato.

Vejamos como Marx resume sua tese sobre a Comuna de Paris no livro Guerra Civil na França.
“A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para levar adiante, dentro de si própria, a emancipação econômica do trabalho. (....) A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar o cimento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe.”

No texto acima observa-se que se trata de uma forma política que traz “dentro de si própria” a “emancipação econômica do trabalho”. Ou seja, a socialização do poder induz a socialização dos meios de produção. Com o movimento operário exercendo democraticamente o poder (mandato imperativo, dissolução do exército permanente etc.) pode-se afirmar que se cria um desajuste – ou desequilíbrio, ou contradição – entre o poder socializado, de um lado, e a economia capitalista baseada na propriedade privada, de outro. Retomando os termos de Marx, a “dominação política dos trabalhadores” é “incompatível” com sua “escravidão social”. Daí ser possível fundamentar teoricamente a análise prospectiva que se segue no raciocínio de Marx: a Comuna (realidade política) “teria de servir” (tempo futuro) de “alavanca” para a eliminação da exploração de classe (realidade econômica).

É por isso, e apenas por isso, que é correto repetir, 130 anos depois, a idéia de Marx, segundo a qual a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, “em si mesma” o socialismo. Foi só isso que Marx afirmou. E, visto os debates que essa afirmação ensejou, podemos dizer que só isso já foi afirmar muito.


 

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