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Antropologia, ciência e tecnologia

Foto: Antoninho Perri A antropologia, nos últimos anos, tem sido convocada para pensar uma diversidade enorme de temas para além daqueles tópicos que lhe são mais tradicionais: sociedades não ocidentais, povos isolados, ou grupos subordinados. Um desses temas, que ultimamente tem gerado um grande interesse na disciplina, é o estudo de temas relacionados à ciência e a tecnologia. Poucos tópicos, no entanto, poderiam ser pensados como mais distantes do foco tradicional da etnografia e da antropologia: a ciência é tida como a forma mais ocidental de pensar o mundo, sendo na nossa sociedade contemporânea a detentora do monopólio da verdade sobre a natureza, em detrimento de conhecimentos tidos como “tradicionais” ou “folclóricos”.

A tecnologia, por sua vez, é percebida como a legitimadora desse monopólio: a inovação constante, que gera formas de domar os processos naturais em favor do homem, é pensada por muitos como a prova de que a ciência é capaz de compreender e prever a realidade como nenhuma outra forma de conhecimento. Além disso, a tecnologia é pensada como a forma de resolução de grande parte dos problemas humanos, desde a fome até a doença, chegando agora até na possibilidade de reconstrução total do humano pela via da genética e na superação da morte.

“Na melhor tradição antropológica, as mais recentes etnografias de
práticas científicas buscam repensar e tornar mais complexa a nossa
compreensão acerca de como o conhecimento gerado em laboratório
circula socialmente e ajuda a produzir a própria sociedade”

Seriam então a ciência e a tecnologia temas pouco passíveis de compreensão pela antropologia, por meio do método etnográfico? Deveríamos então, enquanto antropólogos, nos ater ao nosso campo já consagrado de estudos? Gostaria aqui de argumentar que, pelo contrário, a antropologia tem o potencial de enriquecer drasticamente as nossas compreensões dos dilemas trazidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Com o aumento da relevância e alcance das novas tecnologias, é cada vez mais necessário incorporar essa temática nas análises realizadas pelas ciências sociais. Nesse contexto a antropologia poderá, a partir de seus métodos, trazer para a discussão uma perspectiva que contribui tanto para enriquecer nosso conhecimento acadêmico, quanto para auxiliar nas discussões em torno de políticas e regulação dessas novas tecnologias.

A antropologia da ciência e da tecnologia é bastante associada ainda aos chamados “estudos de laboratório”. O nome de Bruno Latour, o mais conhecido etnógrafo de laboratório, permanece uma referência obrigatória para todos aqueles interessados em estudar ciência e tecnologia nas ciências sociais, e geralmente é tido como a “porta de entrada” para esse tipo de estudos. Polêmicos, apesar de cada vez mais populares, os estudos etnográficos da “ciência na prática” têm renovado o campo conhecido hoje como Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), trazendo cada vez mais pesquisadores interessados nas complexas relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Tais estudos geralmente focam laboratórios de ciências básicas, aquelas conhecidas como “ciências duras”, mostrando como o conhecimento científico sobre a natureza, mais do que mera revelação de um real passível de observação direta, é construído a partir de um processo que envolve uma variedade de elementos “extra-científicos”, ou geralmente tidos como relacionados à sociedade ou à cultura. Desde as opções feitas pelos pesquisadores no decorrer de suas práticas de laboratório, até os equipamentos que utilizam e as formas pelas quais interpretam os resultados (números, imagens) obtidos pelos experimentos, todo tipo de nuança da prática laboratorial tem sido cada vez mais explorada por estudiosos ligados aos ESCT. Tal conhecimento tem acrescentado ao debate das ciências sociais uma gama de novas perspectivas sobre a ciência, e seu impacto sobre nossa percepção dessas práticas de conhecimento ainda está sendo digerido dentro e fora do mundo acadêmico.

Mas o potencial do estudo antropológico ou etnográfico sobre a ciência não se resume à perspectiva dos estudos de laboratório, ou a uma “microssociologia” da ciência, como a vêem alguns. Mais do que focar as micro-práticas envolvidas na construção do conhecimento e na elaboração de novas tecnologias, a antropologia traz para o debate o potencial para compreender as complexas relações entre os laboratórios e a cultura mais ampla na qual se inserem. c, além de perceber como nossas concepções culturais interferem na forma pela qual construímos experimentos e interpretamos seus resultados. Essa ponte entre o macro e o micro é uma das principais fontes de conhecimento inovador que a antropologia traz para o debate público e acadêmico sobre a ciência e a tecnologia.

Dessa maneira, o conhecimento etnográfico sobre a ciência e tecnologia tem muito a oferecer para a elaboração de políticas públicas sobre inovação, por exemplo. Alguns dos temas que podem ser explorados são as atitudes e percepções de grupos sociais a respeito de novas tecnologias. Ou mesmo como as atitudes e concepções dos cientistas são indissociáveis das formas pelas quais analisam e formulam problemas de interesse (em contraste com aqueles tidos como pouco interessantes), e a partir das quais desenham e implementam novas soluções tecnológicas. Dentro dessa perspectiva, a etnografia da ciência e da tecnologia não busca dizer qual conhecimento é correto ou incorreto, nem impor um relativismo vazio, do tipo “nada existe, tudo é construído”. Pelo contrário, a boa etnografia da ciência ajuda a perceber como determinados conhecimentos adquirem uma significância particular, em detrimento de outros, e por quê.

Associado a isso, a etnografia pode também revelar muito sobre as atitudes de grupos afetados por políticas públicas ligadas à ciência, tecnologia e inovação, desde grupos excluídos, agricultores, catadores de lixo e até empresários. Mais do que simplesmente efetuar um levantamento de opiniões, a etnografia ajuda a esboçar as formas pelas quais tais atitudes participam do processo de constituição das tecnologias e dos saberes, e como elas estão implicadas também nos efeitos materiais de tais práticas, definindo como novas técnicas de fato funcionam na realidade.

No tocante a uma compreensão etnográfica a respeito da construção do conhecimento científico, tais pesquisas podem colaborar em muito também para um debate informado sobre tecnologias emergentes, que desafiam nossas atitudes e percepções a respeito do mundo. Um exemplo recente são as pesquisas ligadas à biotecnologia, incluindo desde alimentos transgênicos até o uso de células tronco embrionárias. Além de desafiarem nossas compreensões a respeito da nossa relação com o mundo natural, tais pesquisas prometem mudar nossa relação com a natureza e com a nossa própria biologia. A antropologia da ciência atual tem se debruçado sobre esses temas, produzindo conhecimento que nos ajuda a compreender como tais dilemas afetam a construção do conhecimento nessa área, além de explorar como tais tecnologias estão reconfigurando as relações sociais.

De forma mais geral, outra contribuição da pesquisa antropológica é a de permitir o entendimento da ciência e da tecnologia enquanto práticas sociais. Nesse sentido, nem a produção de saberes científicos nem a aplicação destes em tecnologias são externas às realidades sócio-culturais nas quais se inserem. Por conta disso, a antropologia nos auxilia a tomar partido no que diz respeito às direções que queremos dar para o desenvolvimento científico e tecnológico.

Que tipo de tecnologia queremos? Devemos buscar tecnologias que diminuam a destruição do planeta, por exemplo, ou que reduzam as desigualdades sociais? De que forma podemos alcançar tais objetivos, sem deixar de lado a necessidade de produzir inovações que melhorem a vida das pessoas e ajudem a tirar o Brasil de seu atraso relativo ao resto do mundo industrializado? De que maneira os políticos que formulam políticas podem ficar mais informados sobre como pensam os cidadãos a respeito de novas tecnologias? Como são de fato e na prática implementados os recursos e as políticas voltadas à inovação? Por que determinadas políticas, apesar de teoricamente contemplarem os objetivos desejados pela sociedade, na prática não funcionam da maneira esperada? Enfim, esses exemplos são alguns dentre a multiplicidade de questões para as quais a antropologia pode auxiliar a buscar respostas.

 

Foto: DivulgaçãoMarko Monteiro é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG)
da Unicamp

 

 

 

 

 

 

 
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