De Porto Príncipe ao porto seguro

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Lanousse, de camisa pólo verde, mostra equipamento de laboratório durante a entrevista
Lanousse faz doutorado no Instituto de Química (IQ)

12.01.2010. Era um final de tarde muito quente, como são quentes quase todas as tardes no Haiti. Lanousse tinha chegado da faculdade e preparava-se para descansar. Sentado na cama, tirava os sapatos. Nouze, neste dia, trocara a faculdade pela igreja. Dieumettre sacolejava no interior de um ônibus. Jean Fabien ainda estava na faculdade, mais precisamente conversando com um colega. Meia hora depois, a cidade de Porto Príncipe praticamente não existia mais, restavam escombros, muitos mortos e feridos. O sonho de se formar na capital do Haiti, naquele momento, dissipava-se. Em comum, no caso dos quatro jovens, além da perda de tudo – inclusive dos documentos –, apenas uma coisa interessava: a sobrevivência. E eles sabiam que, para tanto, estudar era o atalho. Ou, em última instância, o único caminho a trilhar.

Naquele ano de 2010, depois do terremoto que devastou o país deixando mais de 300 mil mortos, o Brasil entrou definitivamente no mapa das migrações haitianas. Mas foi a partir de 2011, com o Programa Emergencial em Educação Superior Pró-Haiti, coordenado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que mais alunos chegaram no Brasil e na Unicamp, a universidade que recebeu o maior grupo dentre as instituições do país.

Passados sete anos, os resultados já podem ser comemorados. Há 56 haitianos nos registros da Diretoria Acadêmica da Unicamp (Dac). Exceto três estudantes, a vinda de todos coincide com o período pós-terremoto. Destes, 21 já concluíram pelo menos uma graduação. Nove concluíram mestrados e dois terminaram seus doutorados. Ainda há 23 graduações e pós-graduações em andamento.

Jean Fabien e Lanousse já são mestres pela Unicamp, prestes a defender doutorado. Dieumettre concluiu duas graduações e termina a terceira. Nouze, que no primeiro ano fez disciplinas na engenharia elétrica, mudou de curso, quase se formou em enfermagem, e agora cursa pedagogia.

 

Jean, de gorro, traz as mãos para perto do rosto durante a entrevista
Jean Fabien estuda conflito armado em Cité Soleil - Haiti

quadro descreve números sobre estudantes haitianos na Unicamp

2011

A chegada do grupo de estudantes haitianos gerou uma grande mobilização na Unicamp. Administração, funcionários e corpo docente correram atrás de tornar a vida deles menos difícil com tantas mudanças. A pró-reitora de Graduação, Eliana Amaral, era assessora da Pro-reitoria de Graduação (PRG) na época e cuidou de diversas questões relacionadas aos novos estudantes. A administração foi responsável até mesmo pela procura de moradias acessíveis.

“O valor que receberiam não era suficiente para a sobrevivência deles, até porque era preciso pagar aluguéis. Procuramos por ofertas de moradia, providenciamos bolsa de alimentação e transporte, fizemos um acordo com o Centro de Saúde da Comunidade (Cecom) para atendimento do ponto de vista de saúde e conseguimos um pequeno aumento no valor da bolsa da Capes”, relembra.

Dieumettre e outro colega haitiano assistiam aulas da disciplina de letramento digital no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Eram alunos especiais, como todos os outros estudantes de seu país que vieram para a Unicamp. Para cursar um ano na graduação, receberam um curso de língua portuguesa antes do início das aulas. Mas ainda assim as dificuldades eram imensas.

A professora os incentivava a contar, em cada aula, um pouquinho da história deles e do Haiti. Suando frio, Dieumettre falava em português. “Aquilo foi um castigo e ao mesmo tempo foi a melhor coisa que aconteceu porque a gente foi aprendendo a se comunicar em português”, afirma.

Ele contou sobre o dia do terremoto. Falou sobre a faculdade que fazia em Porto Príncipe. Faltavam três semestres para se formar em letras modernas, pela Universidade do Estado do Haiti. Veio para a Unicamp com a intenção de cursar linguística.

No Instituto de Química (IQ), Lanousse Petiote também era aluno especial na graduação, mas seu objetivo era o mestrado porque já havia se formado no Haiti. Da mesma forma Jean Fabien já havia concluído o curso de ciências sociais e ciências jurídicas e pretendia fazer mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Nouze Volcimus fazia disciplinas na engenharia elétrica.

O ano de 2011 também foi marcado por um conflito de expectativas. O grupo de estudantes acreditava que tinha vindo ao Brasil para terminar a graduação ou a pós enquanto na realidade o prazo de estudos era de apenas um ano. “Eles desconheciam que estavam vindo por um período que era intermediário do curso. Alegavam que estavam vindo aqui para terminar a graduação. Além disso alguns estudantes argumentavam que eram alunos de pós-graduação, e não de graduação, como era previsto no programa da Capes”, lembra Eliana Amaral.

Foi preciso negociar mais uma vez. Com a Capes, com as faculdades que ofereceriam as vagas, com os cursos de pós-graduação. Dessa forma, os alunos permaneceram na Unicamp, matriculados regularmente. Os alunos que desejavam cursar a pós-graduação participaram dos processos seletivos.

 

O reitor da Unicamp Marcelo Knobel e a pró-reitora Eliana Amaral aparecem lado a lado na montagem da  foto
O reitor Marcelo Knobel e a pró-reitora de Graduação Eliana Amaral foram, em 2011, articuladores da rede de acolhimento aos novos estudantes 

A Unicamp

A vida universitária sempre traz desafios. Para os alunos haitianos não foi diferente e havia mais, pela dificuldade com a língua. A saída, muitas vezes, era usar o francês. “Eu diria que, do ponto de vista acadêmico, foi algo inédito. Havia um problema cultural. Muitas vezes tínhamos que falar francês com eles e o modo como funcionava a universidade do Haiti era diferente. Enfrentamos uma certa turbulência, a ponto de entender que a situação deles era muito delicada, que eram jovens querendo melhorar de vida. Muitos diziam que queriam voltar para o Haiti e ajudar a família”, conta o professor de filosofia Enéias Forlin, que atuou como coordenador de um dos grupos no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

Lanousse recorda que o Brasil não era tão conhecido ainda pelos haitianos a não ser pelo carnaval e pelo futebol. Aqui, o estudante de mestrado em química, agora doutorando, acompanhou o processo de internacionalização da Unicamp. “Consegui aproveitar o máximo possível de uma oportunidade que eu não teria lá, de fazer doutorado de graça numa universidade de muita qualidade”.

Fazendo parte de um grupo de pesquisas sobre sondas térmicas para serem utilizadas em termômetros luminescentes, Lanousse passeia pelo IQ brincando com as pessoas. É reconhecido e elogiado, especialmente pelo orientador Fernando Aparecido Sigoli.

Nas bibliotecas da Unicamp, Dieumettre se reconheceu. A entrevista, feita no período da manhã, atrapalhou um pouco seu horário de entrada. Mas era certeza, como ocorre cotidianamente, que ele só deixaria a biblioteca quando as portas estivessem quase fechadas. “Como eu sou um apaixonado por livros, passo o meu tempo todo na biblioteca”. Desde que chegou, o estudante se formou em letras, estudos literários e agora voltou ao curso de letras para outra habilitação.

Jean Fabien faz doutorado em sociologia orientado pelo professor Renato Ortiz. Pesquisa a violência no conflito armado na comunidade de Cité Soleil, ao norte de Porto Príncipe, a partir de parâmetros religiosos e políticos. Quando houve o terremoto, ele, que já tinha duas graduações no Haiti, fazia especialização em história.

Para Fabien, o ambiente acadêmico é fortalecedor. “Aqui tem muito debate, muita contradição, encontro um comportamento de respeito, podem acontecer coisas ruins, mas minha percepção é essa”.

Coisas ruins

A primeira experiência de Nouze Volcimus na graduação da Unicamp não foi positiva. A estudante afirma que, por mais que estudasse, era sempre reprovada e que também sofria com comentários maldosos. Nouze pode ter sido vítima de algo do qual a Unicamp não está isenta. “A Universidade acaba refletindo o que é presente na sociedade como um todo e que faz parte dessa construção de estado nação que nós temos; as desigualdades são evidentes e mais acirradas na população não-branca”, afirma a demógrafa Rosana Baeninger, autora de diversos estudos na área de mobilidade humana e responsável pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello, dedicada a amparar a população em situação de refúgio por meio de ações que envolvem educação, pesquisa e extensão acadêmica.

Baeninger observa que a Cátedra, junto ao Comitê Gestor do Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, da Cultura da Paz e dos Direitos Humanos, tem a missão de enfrentar o desafio que é a necessidade de convivência com o imigrante de diferentes nacionalidades “no sentido de que se caminhe cada vez mais para a proteção dos direitos da pessoa”.

Hoje, Nouze está feliz e realizada, fazendo a graduação em pedagogia.

“Nós temos os canais e as possibilidades de denunciar essas questões e encontrar um caminho adequado. O racismo existe. Não podemos fazer de conta que não”, afirma o reitor da Unicamp Marcelo Knobel. Em 2011 Knobel era pró-reitor de Graduação. A aposta da administração central é na diversidade. “A gente acredita muito que a própria presença desses alunos ajuda a melhorar o ambiente e o reconhecimento da diversidade como fator fundamental para uma boa universidade”.

Para Knobel o programa que acolheu os haitianos está mostrando que os estudantes, num momento de extrema fragilidade e necessidade, puderam aproveitar bem as oportunidades que a universidade ofereceu. “E tenho certeza que a universidade também se beneficiou muito com a presença deles aqui. A Universidade sempre ganha com a diversidade, com novas maneiras de pensar. É o papel da universidade colaborar com a formação de recursos humanos do mundo inteiro. A Unicamp ganhou na internacionalização, em perspectivas futuras de colaborações com o próprio Haiti e ganhou como uma entidade na qual a solidariedade também faz parte de sua missão”.

 

Nouze, de camiseta branca, posa para foto em meio a uma praça
Nouze mudou de curso e faz graduação em pedagogia

 

Professor Omar gesticula durante a entrevista. Ele é calvo e tem barba branca, está de camiseta clara e sobe os braços na altura do peito
Omar Thomaz foi um dos autores do diagnóstico sobre os impactos do terremoto no ensino superior do Haiti, em 2010

Pró-Haiti

Em 2010, o antropólogo e professor Omar Ribeiro Thomaz oferecia uma disciplina de verão no IFCH com um trabalho de campo que seria realizado no Haiti. Em janeiro de 2010, ele estava em Porto Príncipe com um grupo de sete estudantes. No momento do terremoto, o professor estava saindo de uma livraria com parte do grupo. Os outros alunos haviam marcado uma reunião com um docente da Université d'État d'Haïti. O professor foi assassinado naquela manhã e houve uma manifestação que atrapalhou a entrada do grupo na universidade. Foi, provavelmente, isso que os salvou.

Thomaz e o pesquisador Sebastião Nascimento são autores do livro Da crise às ruínas - Impacto do terremoto sobre o ensino superior no Haiti, trabalho que embasou o Pró-Haiti. “Percebemos que todas as instituições tinham sido afetadas de maneira brutal pela tragédia, mas as instituições de ensino superior, proporcionalmente, tinham sido particularmente afetadas”, destaca.

De acordo com o trabalho, 42% dos estudantes de nível superior morreram no terremoto. Professores e funcionários das universidades também foram vítimas. Prédios, laboratórios, computadores, tudo foi destruído. Ainda hoje muitas aulas, das faculdades que retornaram, são dadas em cabanas. Foi a primeira vez na história do país que a Université d'État d'Haïti, fundada em 1820, interrompeu suas atividades.

Thomaz conta que a Unicamp ajudou a formar alunos que hoje voltaram para o Haiti como professores universitários. No entanto, a avaliação que o antropólogo faz do programa que seria uma promessa de futuro para muitos estudantes haitianos é que, do ponto de vista do Brasil, o Pró-Haiti fracassou. “Em termos numéricos podíamos ter feito mais porque 2 mil alunos se candidataram no Haiti, 500 foram selecionados e por fim vieram oitenta e poucos. O programa foi inserido em uma política pautada por um alto grau de improvisação do governo brasileiro, por idas e vindas e problemas internos”.

Do ponto de vista da Unicamp, entretanto, foi um sucesso, calcula Thomaz. “Muitas universidades brasileiras sequer abriram a possibilidade de receber esses alunos. Além da Unicamp, abriram vagas as universidades federais de São Carlos, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

O professor se lembra da chegada dos novos alunos na Unicamp que foi da maneira como mereciam aqueles que já tiveram sua cota de sofrimento na vida. “Eles chegaram em agosto de 2011, em pleno inverno, e no Haiti não tem inverno. Foram organizados kits com roupas de frio por estudantes das repúblicas. A orquestra fez uma recepção, o cônsul do Haiti foi chamado. A Unicamp foi modelar naquilo que podíamos fazer naquele momento”. Thomaz afirma que a passagem dos haitianos pela Unicamp comprovou a vocação de universidade como uma instituição historicamente internacional, universal.

 

Fachada principal da Escola Normal Superior (ENS) depois do terremoto
Entrada principal da ENS destruída
Imagem mostra parte dos livros e documentos resgatados dos escombros da biblioteca que ruiu
Ruínas da ala oeste do edifício das salas de aula da FMP
Caderneta de poupança de uma das vítimas entre os escombros
Ruínas da FLA dois dias após o primeiro terremoto
Imagem de capa
Audiodescrição: fotomontagem com quatro imagens, sendo que ao fundo, em imagem aérea, região com várias edificações de concreto destruídas ou parcialmente destruídas, com vários escombros. Sobrepostas essa imagem, três outras fotos, alinhadas ao centro, uma ao lado da outra, todas em close-up, sendo uma mulher à esquerda; um homem com uma toca de lá ao centro, e outro homem à direita vestindo camisa polo azul. Imagem 1 de 1.

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