Artigo de Renato Dagnino: repensar a Unicamp

26/08/2016 - 11:02

Ajudando a repensar a Unicamp

Renato Dagnino 

 

Tenho ouvido muito a frase “temos que repensar a Unicamp”.

Este texto procura ajudar esse repensar tratando do contexto em que ele precisa ser situado.

Ele enfoca algumas razões estruturais e sistêmicas da difícil situação em que se encontra nosso sistema de fomento às atividades públicas de ensino e pesquisa.

Seu objetivo é evidenciar aspectos relativos à interface entre a policy e a politics que condicionam essa situação ainda pouco analisados pelos atores sociais direta e indiretamente envolvidos com a elaboração das políticas de ensino e de ciência, tecnologia e inovação (daqui para frente, “política cognitiva”).

Entre aquelas razões, destaca-se a diminuição do poder de convencimento da lógica imposta hegemonicamente pela elite da comunidade de pesquisadores e professores do ensino superior no âmbito do processo decisório que origina a “política cognitiva”; especialmente aquela defendida pela das “ciências duras” (em contraposição às Humanidades).

Baseada na noção de que o fomento às atividades de pesquisa e ensino nas universidades e demais instituições públicas de pesquisa científica e tecnológica é uma condição absolutamente necessária para o crescimento e o desenvolvimento, essa lógica foi até há pouco consensualmente aceita por outras elites. Hoje, seu questionamento explicito por políticos e outros tomadores de decisão tem levado à restrição dos recursos alocados àquelas atividades.

Essa situação é, por isso, distinta das que ocorreram em no passado quando os recursos alocados àquelas atividades foram quantitativamente limitados. Verifica-se, denotada no discurso desses dirigentes políticos, uma mudança qualitativa na forma como avaliam seu potencial de contribuição para a consecução das políticas públicas que cabe a eles elaborar.

Tende assim a reforçar-se, na sociedade, retroalimentando essa nova racionalidade estatal, a noção de que o País prescinde daquelas atividades de pesquisa e formação de pessoal.

Numa das pontas de nosso espectro socioeconômico, a classe proprietária parece cada vez mais duvidar que o seu resultado precípuo - o pessoal especialmente qualificado para realizar a P&D empresarial – possa, à semelhança do que ocorre nos países desenvolvidos, levar a um aumento do seu lucro. Há suficiente evidência empírica para mostrar que aquela lógica é disfuncional para a estratégia inovativa das empresas “brasileiras”.

Economicamente racional e sensatamente adequada à periferia do capitalismo, essa estratégia está, mais do que no nacional-desenvolvimentismo, escorada na aquisição de máquinas, equipamentos e insumos mais modernos necessários para produzir aqui - no “sul” - o que já existe no “norte”.

Na atual conjuntura recessiva, aumenta a pressão da classe empresarial sobre os dirigentes políticos para que não diminua o subsídio concedido aos seus negócios. Disso resulta o senso comum de que os professores e pesquisadores, mais do que dispensáveis, são injustificadamente privilegiados. O que faz que até mesmo o caráter público daquelas instituições venha sendo ameaçado pelos que, seguindo o credo neoliberal pretendem transformá-las em “organizações sociais”.

Na outra ponta daquele espectro, encontra-se a classe subalterna. A demanda cognitiva associada às suas necessidades materiais nunca foi incluída pela elite da comunidade de professores e pesquisadores na sua agenda; por que o seria, se a tecnociência é por ela entendida como neutra, “sem partido”, verdadeira e universal? Os do “andar de baixo”, que nunca foram convidados (e nem se sentiram qualificados) a participar do processo decisório da “política cognitiva”, tendem a ser facilmente manipulada. Reforça-se, assim, aquele senso comum e a proposta neoliberal de “moralizar” aquelas instituições submetendo-as aos critérios da eficiência empresarial.

No meio daquele espectro, a classe média se encontra dividida. Seu segmento cooptado pelo ideário do Estado mínimo defende a redução do gasto em áreas como a de saúde e educação. Um segundo segmento, que apoia sua manutenção, em especial o recurso destinado às instituições públicas de C&T e de ensino superior, é aquele no qual se insere a maioria daquela comunidade. Dentro dele há os que por não perceberem que ele aqui não alavanca o desempenho das empresas, que acreditam ser - via transbordamento - o motor do desenvolvimento, não questiona a lógica defendida pela sua elite e anseia a volta a um passado política e economicamente inviável.

Finalmente, há os que já criticavam nossa “política cognitiva” por ser irrelevante para nosso capitalismo periférico e disfuncional ao cenário de maior justiça e igualdade que desejam, e denunciavam o viés antidemocrático que encobre o discurso da sua elite. Eles são essenciais para provocar o “repensar a Unicamp...”. 

Este texto cumprirá seu objetivo se puder contribuir para orientar o potencial das instituições públicas de ensino e pesquisa para satisfazer as demandas cognitivas da parcela mais pobre de nossa sociedade. A qual, embora seja a geradora dos recursos públicos que o tornaram possível, muito pouco dele tem usufruído.  

Renato Dagnino é professor do Instituto de Geociências da Unicamp