Edição nº 635

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de agosto de 2015 a 06 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 635

Compostos mutagênicos no ar
colocam Limeira na lista das mais poluídas

Pesquisas da FT revelam que potencial carcinogênico
se compara ao de cidades como São Paulo e Los Angeles

Estudo realizado por pesquisadores do Laboratório de Ecotoxicologia e Microbiologia Ambiental (LEAL), da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp, revela que o ar da cidade de Limeira está entre os mais mutagênicos do mundo e, portanto, apresenta maior potencial carcinogênico quando comparado com outras cidades. As amostras de ar se revelaram mais poluídas (em relação à presença de substâncias mutagênicas) do que algumas amostras, por exemplo, da região central de São Paulo, considerada uma das mais poluídas da capital, e tão nocivas quanto em cidades como Los Angeles (EUA) e Cidade do México, comumente avaliadas entre as mais poluídas do mundo.

As professoras Gisela de Aragão Umbuzeiro, coordenadora do estudo, e Simone Pozza, na estação de coleta: índices preocupantesO estudo, publicado na semana passada na revista científica americana Environmental and Molecular Mutagenesis (https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/em.21970/abstract), foi coordenado pela professora Gisela de Aragão Umbuzeiro, coordenadora do LEAL, e contou com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para a professora, o que chama atenção é que uma cidade relativamente pequena como Limeira tenha o nível de mutagenicidade comparável às maiores cidades do mundo. “É um fato que chama atenção do resto do mundo na minha área de pesquisa”.

A investigação aponta que, apesar da quantidade total de partículas presentes no ar de Limeira durante os dias de coleta estar dentro dos padrões de qualidade estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde em 2005 (e, portanto, já desatualizados), a mistura dos compostos químicos aderidos a estas partículas - provenientes da combustão oriunda de carros e caminhões e das queimadas, como a de cana – pode ser altamente danosa à saúde. A combinação pode causar mutações genéticas e aumentar as chances da ocorrência de doenças como câncer, doenças do coração e doenças degenerativas, além de causar mutações nas células germinativas (que dão origem aos gametas) dos seres expostos.

A professora Simone Pozza, docente do curso de Engenharia Ambiental da FT e especialista em poluição do ar, explica que o fator que confere maior ou menor periculosidade às partículas são os tipos de compostos químicos que se juntam ao redor delas. “Portanto, não adianta somente analisar e considerar a quantidade de partículas no ar – temos que levar em conta suas características químicas e o que elas podem causar nos seres humanos e na biota. A quantidade de partículas pode até estar dentro da lei, mas o que importa discutir é o tipo de substâncias químicas que as envolvem. São compostos de alta periculosidade para a saúde e o meio ambiente”, esclarece.

Atualmente, tanto a OMS quanto a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) e as resoluções do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) não levam este fato em conta para estabelecer seus padrões de risco. As pesquisadoras chamam a atenção para o fato de que, atualmente, a disputa pelo modo como se define o risco envolve inúmeras pressões econômicas e interesses políticos conflitantes, os quais dificilmente têm como prioridade máxima a saúde da população. Entretanto, em 2013, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), órgão da Organização Mundial da Saúde, concluiu que a exposição à poluição do ar é carcinogênica para os seres humanos, podendo causar câncer de pulmão e bexiga. A investigação da IARC ainda está em processo de publicação, mas as docentes da Unicamp informam que a conclusão do grupo de trabalho foi de que há fortes evidências que a exposição ambiental à poluição do ar está associada ao aumento de dano genético, mutações em células somáticas e germinativas (que formam os óvulos e espermatozóides) e alterações na expressão gênica que estão associadas ao aumento do risco de câncer em humanos.(https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S147020451370487X)

De acordo com as professoras, os compostos gerados pelas reações químicas que ocorrem na atmosfera em Limeira, gerados pela combinação da luz do sol com as queimadas de vegetação (cana, florestas, etc) e a queima de combustível dos veículos, favorecem a formação dos chamados poluentes secundários, considerados ainda mais mutagênicos. “São reações fotoquímicas que ocorrem mais facilmente nos períodos mais secos e com maior intensidade luminosa – portanto, o perigo é maior quando o céu está azul, com sol e sem nuvens. Justamente quando achamos que o dia está mais bonito. Acreditamos que estas reações fizeram com que algumas amostras coletadas em Limeira ficassem mais mutagênicas que as do centro de São Paulo”, afirma Umbuzeiro.

ANÁLISE COMPARATIVA

Controle negativo (à esq.) e positivo: placas demostram o crescimento do número de bactérias mutantes após contato com compostos mutagênicos e Filtros de ar, antes e depois da coleta de ar: em 24 horas, equipamento acumula uma quantidade de sujeira suficiente para deixá-lo preto e até entupi-loEm somente 24 horas, o filtro de ar utilizado na pesquisa acumula uma quantidade de sujeira suficiente para deixá-lo preto e até entupi-lo. “Em Estocolmo, na Suécia, a mesma quantidade de sujeira leva uma semana para se acumular”, conta a professora. Durante um dia, passam pelo filtro 1.500m³ de ar e a estação de coleta da FT fica bem próxima a uma rotatória, local de tráfego intenso de carros e caminhões. Como uma pessoa respira menos de 20m³ de ar por dia, caso fosse feita uma comparação meramente ilustrativa, seriam necessários aproximadamente 2 meses e meio para o pulmão humano receber a mesma quantidade de sujeira acumulada no filtro brasileiro em 24 horas.

Atualmente a Unicamp está dando continuidade ao estudo, desta vez comparando o ar de Limeira com o de Estocolmo, considerado relativamente limpo em comparação com diferentes cidades do mundo, e de Kyoto, no Japão, que recebe influência do ar poluído da China. As coletas foram realizadas durante o inverno nos três países e já estão sendo processadas para análise pelo grupo de pesquisa de Estocolmo. Será um trabalho de cooperação entre universidades dos três países e a investigação envolverá um controle rígido das variáveis analíticas, para que a comparação seja a mais fidedigna possível. As amostras serão analisadas exatamente da mesma maneira e os pesquisadores terão dados de análises químicas que incluem as determinações de mais de trinta diferentes poluentes orgânicos de grande persistência ambiental, os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA) e diversos derivados desses compostos, como os nitroHPA e oxiHPA, gerados tanto durante os processos de combustão como pelas reações fotoquímicas. “Iremos ter uma fotografia completa da poluição dos três países e talvez identificar os compostos mais mutagênicos que poderiam explicar as respostas observadas no estudo já publicado. Esperamos inclusive identificar novos compostos mutagênicos que ainda não foram relatados na literatura”, antecipa Umbuzeiro.

CANA E DISPERSÃO

O artigo publicado também destaca o fato do Estado de São Paulo ser considerado a maior área de plantação contínua de cana de açúcar no mundo (dados do IBGE 2015), sendo que a colheita da cana normalmente ocorre de maio a novembro, período de tempo seco, com pouca chuva. Como apontam os pesquisadores, apesar do recente processo de mecanização, a colheita manual, que envolve a queima da biomassa, ainda é bastante praticada. Por razões de segurança, a queima da biomassa é permitida somente após o pôr-do-sol, quando os ventos são menos intensos – como consequência, há o aumento da concentração de dióxido de nitrogênio (NO2) no ar, considerado um dos principais gases poluentes da atmosfera.

Como a parte central da cidade de Limeira está localizada em um vale (o vale do Tatu), a dispersão dos contaminantes fica ainda mais dificultada, aumentando a periculosidade das impurezas suspensas no ar. Umbuzeiro também compara a atmosfera de Limeira com Cubatão e São Paulo. “Sabemos que em Cubatão o ar apresenta uma grande quantidade de partículas. É como se você estivesse respirando uma terra bem fina. Entretanto, quando coletamos ar no centro da cidade de São Paulo, verificamos que apesar do número de partículas ser menor, os compostos orgânicos aderidos a elas são muito mais perigosos, resultantes da combustão incompleta do diesel e da gasolina. É o que também acontece em Limeira”.

Nos experimentos realizados no laboratório da FT, Umbuzeiro e sua equipe mergulham uma parte do filtro que coletou as impurezas do ar em um solvente orgânico, para eliminar as partículas e ficar somente com as substâncias químicas que estavam aderidas a elas. Os compostos são colocados em uma cultura de bactérias e, quando há presença de um composto mutagênico, ele entra nas células da bactéria, assim como pode ocorrer no pulmão. Quando encontra o DNA da bactéria, este composto pode causar uma mutação genética. Os pesquisadores, então, medem a quantidade de colônias mutantes que crescem no meio de cultura, após dois dias de contato.

Este ensaio é clássico na área de toxicologia ambiental e é conhecido como teste de Ames ou ensaio Salmonella/microsoma. O procedimento foi descrito nos anos 70 e vem sendo o mais empregado no mundo para avaliar a mutagenicidade de amostras ambientais (ar, água, solo, efluentes líquidos e resíduos sólidos). A professora explica que o teste funciona como um detector químico que informa os tipos de substâncias mutagênicas presentes. Umbuzeiro trabalha com o teste de Ames desde 1986 e acredita que o ensaio já poderia ser empregado pelas agências brasileiras de meio ambiente e saúde para monitorar a qualidade ambiental.

Seu sonho é ver o ensaio incluído no monitoramento da qualidade do ar juntamente com os parâmetros tradicionais, como partículas, ozônio, monóxido de carbono, entre outros. Outras sugestões levantadas pelas pesquisadoras referem-se ao aprimoramento de políticas públicas que valorizem o transporte coletivo, o afastamento do trânsito de veículos pesados de áreas com alta concentração de pessoas e o combate contínuo à realização de queimadas.