Edição nº 630

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de junho de 2015 a 02 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 630

Biomédica desenvolve método
inovador de detecção da hanseníase

Trabalho feito em colaboração com a Fiocruz foi publicado na mais conceituada revista de química analítica

Plaqueta de sílica usada nos exames: adsorvendo em cerca de um minuto as substâncias presentes na pelePesquisa realizada no Laboratório Innovare Biomarcadores da Unicamp pela biomédica Estela de Oliveira Lima, orientada pelo professor Rodrigo Ramos Catharino, possibilitou o desenvolvimento de método inovador, simples, não invasivo e de baixo custo para o diagnóstico da hanseníase, conhecida desde os tempos bíblicos como lepra. O trabalho foi publicado na edição de março da Analytical Chemistry, a mais conceituada revista da área. O Innovare, que tem como foco de estudo a área de saúde, atua na localização de moléculas de importância para diagnósticos, processos, medicamentos, cosméticos e alimentos em geral.

A nova metodologia proposta é de extrema simplicidade: uma plaqueta de sílica de um cm2 é sobreposta à pele e levemente pressionada por um minuto, tempo suficiente para que o material adsorva as substâncias presentes na sua superfície. Ela é então depositada em um tubo com metanol, o álcool de estrutura mais simples dessa função química, que dissolve as substâncias adsorvidas da pele pela sílica. Com uma seringa, o líquido sobrenadante é transferido para um espectrômetro de massas de alta resolução, onde são caracterizadas as moléculas presentes.

Este procedimento permite, em cerca de cinco minutos, identificar marcadores lipídicos em pacientes da hanseníase diretamente a partir de “imprint” de pele, usando a espectrometria de massas como estratégia analítica. Atualmente, o teste considerado padrão ouro no diagnóstico da hanseníase é a histopatologia diagnóstica e a baciloscopia, diretamente dependentes de biópsia de pele, processo invasivo e de baixa sensibilidade para as formas mais brandas da doença. Em vista disso, o desenvolvimento de um método rápido, sensível e não invasivo assume grande importância no diagnóstico assertivo da hanseníase.

A ideia da pesquisa resultou de um grande insight, conta Rodrigo: “Sabíamos que, com as tiras de sílica, podíamos fazer análise da composição de cosméticos fotoprotetores nelas diretamente aplicados. Tivemos então a curiosidade de verificar a adsorção dos cosméticos, quando aplicados diretamente sobre a pele, pressionando levemente essas tiras sobre ela. Descobrimos, então, dissolvendo os produtos absorvidos em metanol e utilizando o espectrômetro de massa, que ocorria não só a adsorção dos componentes do cosmético como de outras substâncias presentes na epiderme. Veio o insight: por que não testar o procedimento para identificar doenças que se estabelecem na pele? Em um congresso, conversando com a pesquisadora Cristiana Santos de Macedo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de Manguinhos (RJ), acertamos a realização desse trabalho em colaboração”.

Na oportunidade discutiu-se a melhor maneira da coleta, a região da pele a ser priorizada para aplicação das tiras e o tipo de paciente. Cristiana encarregou-se da coleta do material e triagem dos pacientes de hanseníase em suas manifestações mais severas, ficando a cargo do Innovare testar o procedimento no diagnóstico da doença, localizando os biomarcadores responsáveis por ela e a melhor forma de análise. O docente enfatiza: “Estabelecemos uma emblemática colaboração entre duas instituições de renome, e prol da saúde pública, sem a preocupação com a propriedade do projeto”.

A DOENÇA

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa de evolução crônica, que se manifesta principalmente por lesões cutâneas, com a diminuição da sensibilidade térmica, dolorosa e tátil. Tais manifestações decorrem da presença do bacilo Mycobacterium leprae, agente causador da doença, que acomete principalmente células cutâneas e nervos periféricos.  Trata-se de uma doença sistêmica, que ataca o organismo como um todo, concentrando-se preferencialmente sobre a pele e regiões mais frias do corpo como dedos, orelhas e nariz. Os doentes que desenvolvem as suas formas mais graves são os que apresentam maior carga bacteriana. Coube ao médico norueguês G. A. Hansen identificar o bacilo causador da doença, em 1873.

Em suas manifestações iniciais a hanseníase leva ao surgimento de manchas brancas, que podem ou não apresentar perda de sensibilidade e evoluem para a formação de lesões. Nos casos mais graves, a própria reação inflamatória que combate o Mycobacterium leva à destruição dos tecidos e à atrofia das extremidades. Atualmente, o tratamento preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é curativo, embora não ocorra regeneração dos tecidos já destruídos. Como existem outras doenças de pele que também se manifestam como uma mancha esbranquiçada, o seu diagnóstico inicial pode ser complicado.

Ao leitor menos avisado, pode parecer estranho uma pesquisa que se preocupe em identificar um método de diagnóstico para a hanseníase, historicamente conhecida como lepra até meados do século 20 e cujos registros datam de cerca de três mil anos. Muitos a julgarão uma doença dos tempos bíblicos. Mas, até três décadas atrás, mais de 120 países ainda apresentavam altos índices de prevalência da doença, embora sua queda tenha sido acentuada, pois, já em 2012, a OMS constatou que menos de 20 deles, situados em geral ao longo da Linha do Equador, em que a doença se mostra mais prevalente, apresentavam ainda incidência maior que mil casos novos por ano.

Dentre esses países remanescentes, o Brasil é um dos que ainda não conseguiram atingir a meta da OMS que preconiza taxa de prevalência da doença não superior a um caso a cada dez mil habitantes. Segundo dados de 2014, do Ministério da Saúde, essa taxa é de 1,51 no país (colocando-o, em relação à de hanseníase, apenas atrás da Índia e de nações africanas). As estatísticas mostram que a doença permanece como problema de saúde pública nacional. Ela atinge principalmente as classes econômicas menos favorecidas, principalmente das regiões Norte e Nordeste. Constituem seus fatores de risco condições precárias de vida, desnutrição, alto índice de ocupação de moradias e outras infecções simultâneas. 

ALCANCE DA METODOLOGIA

A principal forma de diagnóstico da hanseníase hoje é a biópsia, processo invasivo e desconfortável para o paciente, em que o Mycobacterium leprae, assim como alterações histopatológicas, devem ser visualizados na derme, o que limita a sensibilidade nos casos em que a carga bacteriana ainda é baixa. O método proposto pelos pesquisadores tem potencial para permitir identificar a presença de moléculas da bactéria na superfície cutânea mesmo quando ainda não tenham se estabelecido lesões oriundas das manchas esbranquiçadas que as antecedem.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram selecionados dois grupos: um de indivíduos saudáveis e outro com portadores de hanseníase na sua forma mais avançada, com múltiplas lesões pelo corpo. Nestes pacientes, foram coletadas amostras com a plaqueta de sílica diretamente aplicada sobre lesões e, simultaneamente, as aplicações se deram sobre a pele que não apresentava ferimentos, para que pudessem ser comparados os resultados.

A análise dos espectros permitiu estabelecer a comparação entre as moléculas presentes no grupo sadio e doente e, ainda, entre a pele lesionada ou não dos pacientes. A partir das diferenças que se observam entre os dois grupos foi possível identificar moléculas já descritas na literatura e comumente presentes na pele de um indivíduo saudável. Nos casos dos doentes - independentemente da amostra colhida provir das partes cutâneas lesadas ou daquelas não atingidas pelas feridas - foram identificados o mesmo padrão de moléculas que indicam resposta inflamatória, morte celular e também duas moléculas especificas do Mycobacterium: uma específica do Mycobacterium leprae (o ácido phthiocerânico) e outra mais específica de gênero, presentes em qualquer Mycobacterium (o ácido α-smegma micólico).

Estes resultados mostram que o método permite identificar esses dois marcadores lipídicos presentes nos tecidos do indivíduo com hanseníase, mesmo na pele não lesionada, nos casos mais graves da doença. O próximo passo do estudo, que os pesquisadores já iniciaram, mantida a parceria entre as instituições, é a validação do método para todas as manifestações da hanseníase, particularmente para 30% dos casos em que o paciente pode não apresentar manifestações clínicas típicas como espessamento de nervos e lesões hipocrômicas com perda da sensibilidade.

O professor Rodrigo Ramos Catharino, orientador, e a biomédica Estela de Oliveira Lima, autora da tese: método simples, não invasivo e de baixo custoA propósito, Estela afirma: “Por ora podemos considerar que o método funciona para casos de grande carga bacteriana e que se mostra aparentemente de grande potencial de eficiência para outras situações, embora não tenha sido testado ainda quando a carga bacteriana é mais baixa”. Rodrigo complementa esclarecendo que, mesmo nos casos mais graves, essa metodologia não tinha ainda sido aplicada, pois a biópsia sempre se restringiu à parte lesionada com vistas ao diagnóstico, pois os ferimentos poderiam estar associados a outras doenças: “Em relação aos casos mais agudos da doença, mostramos que a hanseníase pode ser identificada na pele mesmo em regiões não lesionadas”.

Para os pesquisadores, a metodologia proposta apresenta-se promissora para o diagnóstico de hanseníase em todos os seus graus.  Destacam que o método de coleta de amostras por meio da placa de sílica é rápido, simples, não invasivo e eficaz para a adsorção de lipídeos da pele, etapa essencial para a análise com a utilização da ferramenta empregada. Além disso, o processamento e análise das amostras com o emprego de espectrômetro de massas de alta resolução mostraram-se de grande acurácia para a identificação de marcadores lipídicos diferenciais entre amostras dos indivíduos saudáveis e doentes, independentemente da presença de lesão cutânea. Frisam, entretanto, que para a comprovação da hipótese, mais experimentos são necessários, como validação e comparação com outras manifestações da hanseníase. Destacam ainda o seu baixo custo, que facilita sua utilização no sistema de saúde, que pode ser viabilizada com a utilização de espectrômetros de massas de menor resolução, que além de mais baratos não exigem operadores especialmente capacitados.

Rodrigo se entusiasma ao dizer que “a metodologia é revolucionária por ser simples. Mas, além disso, ela descortina uma linha de pesquisa voltada para a saúde pública, para pessoas carentes, e pode vir a ser usada para o diagnóstico de cânceres de pele e de outras doenças que a afetam. Embora nosso foco tenha sido a hanseníase, abrem-se perspectivas para o diagnóstico de outras doenças igualmente negligenciadas. Vislumbra-se um campo aberto e só estamos no início de um processo que pode vir a ajudar muita gente”.

A expectativa de Estela não é menor que a do orientador: “Se conseguirmos validar o método para identificar hanseníase no seu início, estaremos contribuindo para que se possa quebrar a cadeia de transmissão da doença no país, que se dá através das secreções de vias aéreas e pelo contato com as lesões, uma vez que quanto mais precoce o diagnóstico mais cedo se inicia o tratamento”.

 

Publicação

Tese: “Inovação no diagnóstico da hanseníase: potencial método não invasivo associado à espectrometria de massas de alta resolução”

Autora: Estela de Oliveira Lima

Orientador: Rodrigo Ramos Catharino

Colaboradores: Cristiana Santos de Macedo, Maria Cristina Vidal Pessolani, José Augusto da Costa Nery, Euzenir Nunes Sarno (Fiocruz), Cibele Zanardi Esteves e Diogo Noin de Oliveira (Unicamp)

Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)