Edição nº 610

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 10 de outubro de 2014 a 19 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 610

Construtoras ignoram ventilação natural em moradias populares

Pesquisa feita por arquiteta demonstra que microclima local não é levado em conta

A ventilação natural é uma estratégia que deveria ser priorizada nos projetos habitacionais de um país de clima quente como o Brasil, principalmente naqueles destinados à população de baixa renda. Entretanto, o conforto térmico nas moradias populares é um aspecto desprezado por empreiteiras e projetistas, segundo resultados da pesquisa de doutorado da arquiteta Juliana Magna da Silva Costa Morais. A tese intitulada “Ventilação natural em edifícios multifamiliares do programa Minha Casa Minha Vida”, orientada pela professora Lucila Chebel Labaki, foi defendida na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC).

Juliana Morais desejava desenvolver um estudo sobre ventilação natural, área de atuação de sua orientadora, quando o governo federal lançou o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) em 2009. “Em 2010, com várias obras já erguidas em Campinas, decidimos conferir este aspecto em um programa cujo apelo está na quantidade de construções, mas no qual a qualidade é duvidosa. A ventilação natural é problemática nestas edificações, que ocupam grandes áreas suburbanas, onde a construtora busca sempre construir a maior quantidade de blocos por gleba. Com isso, o projetista desconsidera fatores importantes, como a melhor posição do bloco em relação ao vento dominante.”

A autora da tese observa que esta decisão sobre o ângulo de implantação vai acompanhar toda a vida útil do edifício e que em condomínios verticais construídos para as classes mais altas o aproveitamento da ventilação natural é um fator sempre considerado. “Estudamos três tipologias diferentes localizadas no município e, além de apresentar os resultados, procuramos alertar os projetistas sobre pequenas decisões que podem influenciar no conforto térmico dos moradores. Sugerimos recomendações pontuais para incentivar projetos de habitações populares mais adequados sob este ponto de vista.”

Juliana Morais, que atualmente coordena o curso de arquitetura e urbanismo da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas (Facisa), de Campina Grande (PB), explica que as tipologias escolhidas são recorrentes em programas como o MCMV. “São o que chamamos de projetos ‘carimbo’, utilizados pelas grandes construtoras no Brasil inteiro, seja no Nordeste ou na Amazônia, sem levar em conta o microclima local. A tipologia 1 refere-se à famosa planta em forma de H, que remonta à década de 1960, quando foram lançados os conjuntos do BNH [Banco Nacional da Habitação]; um conjunto como este foi entregue à população de Campinas em 2011.”

A tipologia 2, conforme acrescenta a professora, é de uma planta praticamente quadrada, característica arquitetônica que busca ventilar e iluminar a cozinha e o banheiro através da área de serviço. “Resolvemos investigar se esse tipo de solução, que é adotada por muitos arquitetos no Nordeste, realmente funciona em termos de ventilação natural. Já a tipologia 3, que seguramente existe em todo o país, é a marca de uma grande empreiteira, que ao invés de quatro, reúne oito apartamentos por pavimento, o que dá ao prédio uma  geometria retangular bastante longilínea.” 

 

Simulando ventos

Para desenvolver sua pesquisa Juliana recorreu à simulação computacional, por meio de uma ferramenta internacionalmente reconhecida – CFD (Computer Fluid  Dynamics) – que simula o comportamento de fluidos. “A primeira etapa da simulação exigiu a construção de protótipos virtuais dos três tipos de edifícios, com um software conhecido por nós arquitetos, o Autocad. Consideramos todas as janelas e portas internas dos apartamentos abertas (a porta de entrada geralmente fica fechada), a fim de verificar a potencialidade máxima de ventilação.”

A autora da tese informa que a etapa seguinte foi a de alimentar o simulador com dados sobre as direções e as velocidades médias dos ventos em Campinas, coletados pelo IAC (Instituto Agronômico de Campinas) na estação meteorológica da fazenda Santa Elisa. “Os dados são referentes ao período de 2001 a 2010. Na simulação estudamos três diferentes ângulos de incidência do vento: a 0º (transversal), ou vento Norte, que ocorre na cidade durante três meses do ano; a 135º (diagonal), o vento Sudeste, predominante durante nove meses; e a 90º (longitudinal), o vento Leste. Assim, o projetista, de qualquer região do país, tem uma visão de três formas de ataque do vento ao edifício.”

Os três tipos de edifícios possuem cinco pavimentos e Juliana Morais investigou a ventilação em todos os ambientes dos apartamentos do primeiro, terceiro e quinto andares. “Na simulação fizemos um corte a 1,5 metro em relação ao piso do apartamento, o que equivale à zona mediana de respiração. Obtivemos resultados quantitativos (velocidades médias do vento em cada ambiente interno) e qualitativos (imagens de vetores do fluxo de ar externo e interno aos edifícios). A análise qualitativa permitiu enxergar como o vento, a partir das janelas abertas, percorre os ambientes até sair dos apartamentos.”

Segundo a professora, na análise quantitativa, relacionada à velocidade média nos ambientes internos, julgou-se que o ponto mediano adotado na análise qualitativa talvez não representasse um dado real, visto que o vento poderia passar ao lado, tangenciando este ponto. “Descobrimos um poderoso recurso no simulador, chamado Isoclip, que foi de extremo valor para a tese: a ferramenta permitiu obter a velocidade média do vento em todos os ambientes dos apartamentos: sala, dois quartos, cozinha e banheiro; e tudo isso por três alturas, por três tipologias e por três direções. Ficamos abarrotados de dados.”

Juliana Morais lembra, entretanto, que desde o início planejou transformar a tese de doutorado em uma leitura saborosa e prática, a fim de que todo projetista compreendesse facilmente seus resultados. “Era necessário compilar todos aqueles dados de maneira inteligente e visual. Para isso, contei com a ajuda imprescindível da arquiteta Cristina Cândido, que faz pós-doutorado na área de ventilação natural no exterior. Trocando ideias por e-mail, chegamos a uma escala cromática para as velocidades médias obtidas nos ambientes dos apartamentos.”

A arquiteta explica que, por essa escala de cores, ventos entrando pela janela de zero a 0,2 metro por segundo resultam em ventilação imperceptível, em mero movimento de ar; de 0,2m a 0,4m, ventilação perceptível, mas insuficiente para mover qualquer carga térmica; de 0,4m a 0,8m, ventilação natural adequada, capaz de mover carga de temperatura acumulada e promover maior conforto térmico; e acima de 0,8m por segundo, ventilação a ser controlada, por gerar incômodos como de espalhar papéis. “Atribuindo cores às quatro faixas, produzi quadros-resumos de ventilação natural para fácil compreensão pelo projetista, sem que ele precise ler a tese toda.”

 

Resultados e recomedações

De acordo com Juliana, a simulação apontou que a melhor direção do vento é a oblíqua (135º), ou seja, que o bloco de apartamentos deve ser posicionado na diagonal em relação ao vento dominante (Sudeste), o que vale para as três tipologias de edifícios. “As reentrâncias contribuem muito para a ventilação natural. E, das três tipologias, a planta em forma de H teve resultados ‘menos piores’ (para me abster de dizer que é a melhor) porque a abertura da sala fica localizada na grande reentrância, promovendo acentuada diferença de pressão na fachada do edifício para que a ventilação ocorra de maneira mais efetiva.”

A pesquisadora acrescenta que em relação à planta quadrada (tipologia 2), ficou comprovado que a solução de ventilar banheiro e cozinha por meio de abertura na área de serviço não é eficiente e, portanto, deve ser evitada pelos projetistas. Mas o pior resultado, segundo ela, foi da planta retangular (tipologia 3). “É o edifício que apresenta maior fachada monolítica, sem reentrâncias. Nos quatro apartamentos centrais, praticamente inexiste ventilação cruzada, apenas unilateral: o vento entra e sai pelas mesmas aberturas e, sem diferença de pressão, há apenas circulação de ar. As condições melhoram nos apartamentos das pontas do bloco, mas ainda assim a tipologia é sofrível.”

A tese de doutorado de Juliana Morais também traz recomendações simples para melhorar o conforto térmico dos moradores de baixa renda. “Já se esqueceram da antiga bandeira de porta (abertura no alto), que permitiria o cruzamento de vento quando a pessoa se fecha no quarto para dormir. A veneziana na porta de entrada também melhoraria a ventilação no interior do apartamento, sem perda de privacidade. Tanto esses pormenores, como a decisão sobre a posição do edifício no terreno, não implicaria em maior custo da obra, apenas em maior consciência do projetista e do construtor.”

 

Publicação

Tese: “Ventilação natural em edifícios multifamiliares do programa Minha Casa Minha Vida”
Autora: Juliana Magna da Silva Costa Morais
Orientadora: Lucila Chebel Labaki
Unidade: Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC)
 

Comentários

Comentário: 

Parabéns pela tese. Mais uma vez se constata que fazer melhor nem sempre significa maior custo! Pena que no Brasil a técnica não tenha valor!

marcosrothen@hotmail.com

Comentário: 

Prezados, parabenizo a autora desta excelente pesquisa, inclusive a veiculação. Agregou bastante para mim, já que recentemente estou pesquisando também o desempenho de edificações do programa "MCMV", em vários quesitos, sendo o desempenho térmico um destes.
A Norma de Desempenho NBR-15.575/13 traz grandes contribuições para a melhoria de desempenho destas edificações, havendo a devida adequação das mesmas.

marcialph@hotmail.com