Fórum
discute
banalização da
medicalização
na sociedade

16/10/2014 - 15:56

Maria Aparecida Affonso Moysés
A dificuldade de aprendizagem é uma característica natural do ser humano que está sendo transformada em patologia na infância e tem levado a um excessivo processo de medicalização, como no caso do metilfenidato, droga conhecida comercialmente como Ritalina. O Brasil é um dos países em que essa patologização da vida tem sido mais intensa e extensa, despontando nas estatísticas como um dos maiores consumidores de substâncias psicoativas legais. A medicalização e seus efeitos foi tema de debate no Fórum Construindo Vidas Despatologizadas, realizado na Unicamp nesta semana. 

A necessidade de definir um padrão de “normalidade”, limitador e que não contemple a diversidade decorrente de vivências e históricos de vida na infância, está fazendo com que os reais problemas afetivos e pedagógicos que atingem as crianças sejam ignorados e substituídos por diagnósticos de transtornos de ordens diversas. Essa foi uma das conclusões da mesa “Quem avalia? Quem se (des)comporta? A (in)visibilidade da criança”, realizada no segundo dia do fórum, que aconteceu no Centro de Convenções da Unicamp entre 14 e 17 de outubro, com o psiquiatra Rossano de Cabral Lima, do Instituto de Medicina Social da Uniersidade Estadual do Rio de Janeiro, e a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e idealizadora do encontro.

Rossano Lima
Para Rossano Lima, não há dúvidas de que existam psicopatologias em crianças, mas o diagnóstico do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), por exemplo, deveria ser feito com mais cuidado, tentando compreender o comportamento da criança por outras variáveis. Segundo o especialista em atendimento de crianças e adolescentes da UERJ, o diagnóstico de TDAH transformou-se em uma avaliação quase que exclusivamente feita no ambiente escolar, baseada em desempenho e eficácia dos estudantes. Ele lembra que, em cerca de 70% dos casos, as crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH são as mais novas de suas turmas, que, portanto, têm mais dificuldades de acompanhar o desenvolvimento dos colegas mais velhos.

Maria Aparecida Moysés critica a miopia de classificar as crianças como portadoras de transtornos sem que se questione o que estão vivendo, se tem problemas afetivos dentro da família ou se são vítimas de violências. “A medicina não está investigando os reais problemas mentais de crianças, porque os diagnósticos caem no gavetão do TDAH. Há uma necessidade de subverter essas avaliações”, afirmou. Um movimento positivo apontado pela professora da FCM foi a implantação de um protocolo com regras para a indicação de metilfenidato na cidade de Campinas em 2012. Essa nova regra reduziu a distribuição do metilfenidato na rede pública de 186.501 comprimidos, em 2011, para 48.500, em 2013. A prescrição, que até então era feita apenas com o diagnóstico de um médico, exige agora uma avaliação por uma equipe multidisciplinar, que inclui psicólogo e acompanhamento pedagógico.

Mesa de abertura do evento
Na abertura do evento, no dia 14 de outubro, a pedagoga e deputada federal Maria do Rosário discutiu como as questões da medicalização e da patologização estão intimamente ligadas à defesa dos direitos humanos. “Estamos mediados hoje pela oferta e pela falta de determinadas substâncias que se banalizam na vida das pessoas”, definiu a deputada, ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ela abordou também a questão da medicalização de menores infratores para conter comportamentos indesejados e a polêmica da chamada “cura gay”, defendida no Congresso Nacional por parlamentares ligados a setores religiosos.

A educação é uma das áreas mais afetadas pela medicalização da vida, e ao mesmo tempo, é a que mais a alimenta. A dificuldade de aprendizagem nem sempre está associada a uma patologia, mas ao ambiente em que a criança vive, podendo estar ligada a questões econômicas ou a desestruturação da família. A pedagoga Maria Teresa Esteban, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca um modelo de educação em que muitas crianças são invisibilizadas e “deixam de existir” por não corresponderem ao padrão. Dessa maneira, afirma Maria Teresa, a educação anula uma diferença que poderia ser rica para o grupo de alunos. Segundo ela, é necessário criar processos de conexão com a multiplicidade na sala de aula, para dessa forma permitir que todos aprendam.

Entre 2003 e 2012, o Brasil registrou um aumento de 775% no consumo de Ritalina, de acordo com um estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “Nós temos que transformar o que a criança faz em desenvolvimento, e não avaliá-la apenas a partir dos nossos padrões”, declarou Maria Aparecida Moysés.

Além do diagnóstico médico, é visível o papel ativo de pacientes que se transformam em consumidores de serviços para lidar com problemas cotidianos que nem sempre foram tratados de forma médica. As estruturas culturais e sociais demandam a patologia. O médico Pedro Tourinho, vereador de Campinas e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, aponta que certos meios de comunicação, detentores do “estatuto da verdade”, reproduzem um olhar medicalizante, como a figura do médico Drauzio Varella. Para Tourinho, os meios de comunicação têm uma grande responsabilidade na formação da construção cultural e dos hábitos da sociedade e reforçam a medicalização.

Nos dois primeiros dias do fórum foram analisadas as consequências dos diagnósticos em que o ser humano, sua individualidade e subjetividade são anulados a partir do conceito de “doença”. Luiz Fernando Tófoli, professor da FCM da Unicamp, criticou a questão relacionando-a a ideia da banalização do mal, criado pela filósofa alemã Hannah Arendt, a qual diz que o erro muitas vezes está em não se pensar sobre o que é feito.

Holocausto brasileiro
A jornalista Daniela Arbex, autora do livro Holocausto Brasileiro, lançado no Brasil em 2013 e em Portugal neste ano, relatou no fórum como a questão manicomial acabou produzindo um verdadeiro campo de concentração em Minas Gerais entre 1903 e 1980. A obra relata a morte de 60 mil pessoas no manicômio conhecido como Colônia, na cidade de Barbacena. Cerca de 70% dos pacientes não tinham diagnósticos de doença mental. Homens e mulheres eram colocados à força nos vagões do chamado “trem de doido” para serem internados. Alguns porque eram tímidos, homossexuais e prostitutas, outros, meninas, porque tinham sido violentadas por seu patrão ou perdido a virgindade antes do casamento.

Os pacientes eram violentados, dormiam sobre capim, muitas vezes se alimentavam de ratos e pombas e bebiam água do esgoto. A maioria morria de fome, de frio ou de eletrochoques, comuns no hospício. No período de maior lotação, em média 16 pessoas morriam por dia. Na pesquisa, Daniela Arbex descobriu que, entre 1969 e 1980, 1.853 corpos foram vendidos para faculdades de medicina. Quando a demanda diminuiu, os corpos eram decompostos por ácido, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser vendidas. As crianças que nasciam no hospício eram doadas para adoção sem o consentimento das mães. Para trazer a público a chocante história, a autora ouviu depoimentos de alguns dos cerca de 200 sobreviventes do manicômio.

O Fórum Construindo Vidas Despatologizadas é uma realização do Fórum Pensamento Estratégico (PENSES), em parceria com a Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. O PENSES é um espaço acadêmico, vinculado ao Gabinete do Reitor, responsável por promover discussões que contribuam para a formulação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da sociedade em todos seus aspectos.

Veja como foram os dois últimos dias do evento

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