Dissertação põe arte
contemporânea em xeque

29/01/2014 - 13:42

Bruno Moreschi, autor da enciclopédia-paródia Art Book

José dos Reis é um artista brasileiro, filho de catadores de lixo, que tritura notas de dólar num liquidificador. Malala Rejala é uma jovem iraniana que hoje vive em Berlim, e cujas imagens de corpos femininos seminus causam furor no mundo islâmico. Vincenzo Dornello é um cego italiano que produz fotografias abstratas. Estes são alguns dos artistas contemporâneos catalogados em Art Book – 50 Contemporary Artists, luxuoso volume colorido escrito em três línguas. E Art Book é uma obra de ficção, fruto da imaginação do artista Bruno Moreschi, o produto final de sua dissertação de mestrado no Instituto de Arte da Unicamp.

Reis, Malala e Dornello são personagens construídos por Bruno, que criou as obras atribuídas aos artistas de seu catálogo, assim como as biografias e as declarações que acompanham os verbetes de sua luxuosa enciclopédia de criadores inexistentes. O italiano, por exemplo, pontifica: “A necessidade de se expressar não é exclusividade de quem possui olhos”. E o catador de lixo brasileiro sentencia: “O que mais me fascina na arte é sua constante preocupação em mostrar que tudo é relativo. Isso nos tira da zona de segurança, faz-nos trilhar caminhos de forma mais consciente.” E de Malala vem um slogan: “Política e arte assemelham-se em uma única palavra: ação.”

Se essas declarações, bem como as figuras que as enunciam – a iraniana inconformada, o brasileiro que transcende a pobreza pela arte, o europeu deficiente que afronta a própria deficiência – soam como clichês, é proposital: “Analisei dez enciclopédias de arte, e fiz um estudo dos padrões de artistas que aparecem nessas obras”, disse Moreschi ao Portal Unicamp. “Criei os 50 artistas seguindo esses padrões: o japonês minimalista, a latino-americana que faz obras coloridas”.Capa do livro de Bruno Moreschi

Ainda de acordo com o padrão detectado nas enciclopédias reais, a maioria dos artistas do Art Book é branca, européia e do sexo masculino. “As mulheres selecionadas para aparecer nessas enciclopédias costumam ter fortes posicionamentos feministas. Os negros, um trabalho ligado à questão racial”, exemplifica.

Além de criar os artistas, Moreschi criou suas obras: ao todo, foram 311 trabalhos, entre fotografias, pinturas, performances, em diferentes estilos, atribuídos aos 50 personagens. “As obras são paródias”, disse o autor. “Até mesmo por conta do distanciamento necessário para criá-las”.

“Ele foi aprender a fazer a arte, as técnicas”, contou a orientadora da dissertação, professora Lygia Eluf. “No fim, a arte é um truque – mas por trás dela há o artista, que transforma o truque em mágica”. Moreschi conta que foi procurar um professor que o ensinasse a pintar reproduções de flores num estilo semelhante ao dos velhos livros de botânica, para criar a obra do austríaco Arthur Orthof. “O professor até ficou meio chocado, porque ele queria me ensinar a pintar, em geral, mas eu dizia que só queria aprender a pintar isso, especificamente”.

Foram produzidos, até o momento, 50 exemplares do Art Book, que serão doados a bibliotecas, mas ele espera obter recursos para produzir mais exemplares, de modo que o livro entre, de fato, em circulação. Moreschi diz que não teme que sua obra venha a contaminar a bibliografia legítima sobre arte contemporânea – de fato, ele espera que isso aconteça. “A ideia é contaminar, porque de certa forma trata-se de uma contaminação natural: uma mentira que segue exatamente o padrão do que está sendo feito”, disse.

“O que o Bruno está fazendo é discutir o sistema da arte contemporânea, como essa arte é legitimada. Ele está dizendo: ‘Pessoal, vocês estão fazendo tudo errado’”, completou Lygia.

“Depois da pegadinha, do susto, espero que fique um convite para a gente pensar o que é uma obra de arte, e como ela se legitima”, disse o autor.  O livro traz, em seu texto, várias pistas de que nem tudo lá é o que parece: o verbete sobre a artista iraniana, por exemplo, faz referência ao “primeiro-ministro” Mahmoud Ahmadinejad – sendo que o cargo exercido por esse político, até 2013, foi o de presidente.

A Galeria de Arte da Unicamp realiza, até a sexta-feira, 31, uma exposição de parte do trabalho realizado por Moreschi na elaboração do livro. A dissertação foi defendida nesta quarta-feira, 29, nas dependências da galeria. Imagens do livro e das obras dos artistas fictícios podem ser vistas no site do Instituto de Arte.

Comentários

Será que estamos diante de um Sokal da arte?

Email: 
nadson@hotmail.com

A arte se faz de idéias, e ele teve uma brilhante. .. espero q consiga uma ótima repercussão, não só no meio artístico mas num contexto geral, afinal Arte é isso e mto mais! Sucesso!!!!

Email: 
viviart0607@hotmail.com

A parte de aprender parte apenas de uma técnica é tocante. Lembra-me dos terroristas do 11 de setembro que não se preocupavam em aprender a decolar ou pousar, apenas a controlar o avião já no ar.
Brincadeiras à parte, é notório que a arte contemporânea é reduzida ao truque fantasiado com pirotecnia verbal.

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malthus.alem@bol.com.br

Quando o livro ou a exposição virá para SP capital?

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jk@hotmail.com

fiquei perplexa pensando o quão fascinante deve ser optar por essa estratégia: a legitimação do truque, da farsa, do relativo. para mim, tudo muito instigante.

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tatamirogrupodepoesia@gmail.com

Espero que esse trabalho ganhe uma publicação e possa ser adquirido por qualquer pessoa.
Não vejo a hora desses artistas ficcionais se tornarem verdadeiras referências em arte contemporânea.
Parabéns pelo trabalho. é redentor!

Email: 
luciana.ramin@gmail.com

:)

a frase do indiano ficcional lembra muito o grande Beuys, com certeza leu sobre ele nas enciclopédias....
a validação da arte atual retirando valor de práticas tradicionais, como ilusionismo em pintura para combinar com a sala ou ilustrar uma cena bíblica, tais praticadas por "leigos" que vendem suas obras em praças públicas [como a praça da república] é algo que me interessa e fico feliz que alguém pensou em algo assim....dese modo, posso conseguir fazer minha pós a partir deste ponto...
obrigado :)

Email: 
bsipavicius3@yahoo.com.br

Algumas pessoas por aqui tem clareza do que significa o termo “ARTE CONTEMPORÃNEA”, e sabe que isto não é nenhum ISMO como Classicismo, Impressionismo, expressionismo, Cubismo, futurismo, fauvismo, Dadaísmo, Minimalismo etc, mas muitos consomem a designação como se fosse um novo ISMO. Estes desavisados se enganam; o termo significa aquilo que está em sincronia com o nosso tempo, e na arte pode ser a pintura, escultura, fotografia vídeo etc. O SIMULACIONISMO, uma prága praticado em muitos cantos do planeta, e por aqui não é diferente, arremeda com muita facilidade coisas e objetos em nome da tal ART CONTEMPORÃNEA e confunde a plebe rude; Em meu entender Marcel Duchamp assim como Picasso ambos foram gênios e inexoravelmente mudaram o rumo da arte visual, mas daí para frente todo mundo pode se enganar com a aparente facilidade como os dois conduziram os rumos da estética artística... Os Gênios ainda existem, diluídos no mundo globalizado, e em matéria de arte contemporânea na pintura eu fico com Balthus, John Currin, Francis Bacon, Lucian Freud, Marlene Dumas, Gerhard Richter, Paula Rego..., na chamada ARTE CONCEITUAL (embora para mim toda arte é conceitual) gosto de Jenny Holzer, Joseph Kosuth, Hans Haacke.., na Video Arte gosto de Bil Viola, Gary Hill, Bruce Nauman, na arte ambiental aprecio o ecletismo de Jeff Koons, avital Geva ( que conheci pessoalmente num Kibuts de Isral), absalon...e não posso deixar de citar Thomas Grunfeld... Como pesquisador do assunto, conheço de perto o trabalho destes artistas em minhas peregrinações por Bienais, Documentas de Kassel e Museus. Kisses.

Email: 
coelhononato@yahoo.com.br

Shea Hembrey já fez isso ANOS atrás.
Vocês podem ver nesta palestra da TED:
https://new.ted.com/talks/shea_hembrey_how_i_became_100_artists

Email: 
yellowt@gmail.com

Duchamp fez exatamente isso. O urinol foi uma provocação. Passou a ser considerado arte. O mesmo se dá com esse "livro". Por que ser sutil ? Por que não assumir uma crítica frontal ao que se produz hoje? Se este livro, do início ao fim é uma paródia, como um leigo se relacionará com o mesmo ? Como identificar que se trata de um deboche ? Precisamos de muito mais do que reproduzir o que vem sendo feito nas artes, para mostrar as falhas deste campo. É preciso falar abertamente, mesmo correndo risco de errar. Este trabalho não marca uma posição como todos os que o mesmo critica. Corre o risco de cair no relativismo.

Email: 
leooliveiraluz@hotmail.com

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