Historiador da Unicamp organiza um
livro que expõe as veias negras do Brasil

17/10/2012 - 13:50

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O livro será lançado nesta quarta-feira na USC

O livro será lançado nesta quarta-feira na USC

Pedro Paulo Funari

Pedro Paulo Funari

Está sendo lançado nesta quarta-feira, às 19 horas, na Universidade Sagrado Coração (USC), em Bauru, o livro As Veias Negras do Brasil: Conexões Brasileiras com a África, organizado pelo historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari, responsável pelo Centro de Estudos Avançados (Ceav). Dividindo esta tarefa de organização da obra com as professoras da USC Lourdes Conde Feitosa e Terezinha Santarosa Zanlochi, Funari conta como foi concebido o livro que aproxima as ligações entre o Brasil e a África, dentro de uma ampla abordagem. O historiador fala da necessidade de se escrever uma nova História do Brasil, que não a da escravidão somente, pela visão dominante, propondo uma releitura do passado. Salientou a imensa riqueza da África, mas que não se restringe só aos aspectos culturais, e sim das contribuições dadas ao Brasil assim como o continente americano com os seus indígenas e com suas tradições, o continente europeu e também o asiático. Nas páginas do livro, que saiu pela Editora da USC, Funari conta como a discriminação racial ainda persiste e como falar do assunto pode ajudar as pessoas que estão em desvantagem social. Entre outros temas, o livro traz um pouco de tudo: a visão dos afrodescendentes nos livros didáticos, o feminismo, o ensino de História, a influência africana na língua portuguesa do Brasil, a sensibilidade e fidelidade no epistolário de Machado de Assis. A seguir, acompanhe a entrevista do professor Funari ao Portal Unicamp, que já publicou mais de 45 livros, em carreira solo e como organizador:

Portal Unicamp - O que aborda esse livro? E, quando o título fala de veias negras, ele traz o sentido de que existem outras veias?

Funari – Com certeza. O nosso objetivo com o volume foi mostrar uma parte da diversidade brasileira e enfatizar nossas ligações com o continente africano. Na verdade, temos já uma certa tradição no Brasil de tratar de escravidão e também de traços da cultura africana no país, principalmente a religião, danças como o samba e o carnaval e algumas festividades. Esse lado está retratado no volume. Mas, além disso, nós procuramos mostrar as particularidades das civilizações africanas e, por isso, temos artigos tratando especificamente da África e mostrando inclusive a sua ligação com o continente asiático, sobretudo com a costa oriental, Moçambique, da onde vieram muitos africanos para o Brasil que têm uma ligação com a Índia e até mesmo com a China. Então essa diversidade já estava no continente africano e se aprofundou no continente brasileiro. Embora o livro fale das veias negras, na própria capa apresentamos várias cores para mostrar essa diversidade de origens e a mescla cultural que se deu no Brasil.


Portal Unicamp - O que no livro significa criar uma nova história. Com isso, a história oficial do Brasil tem que ser entendida de outra forma?
Funari – É verdade, porque a história é sempre feita de releituras do passado. Temos uma tradição muito forte no mundo e no Brasil de fazer uma visão da história que é centrada nos dominantes. Então sempre se falou que a história é escrita pelos vencedores. É natural então que haja referências aos reis, aos poderosos e aos grandes militares, isso também na história da humanidade. Especificamente no caso do Brasil, a ênfase é dada muito aos grandes governantes: primeiro os governantes de Portugal, depois brasileiros. Isso, muitas vezes, deixa de lado a importância da população em geral, da cultura que não é apanágio, não é coisa específica dos governantes. É o contrário. Então houve uma mudança na historiografia (eu diria no século 20) no sentido de ampliar a história, para não só contar os grandes feitos, dos grandes heróis, mas também atingir as grandes camadas da população e a cultura mais popular. Logo, este livro está dentro de uma tendência que vem desde a restauração da democracia no Brasil, em 1985, quando diversos movimentos ocorreram de modo a incluir no currículo escolar de História reflexões sobre os africanos e sobre os indígenas, e também sobre outros grupos menos representados, como por exemplo até mesmo os imigrantes. Isso ocorre de tal maneira que há uma determinação provinda inclusive do Ministério da Educação, por meio dos parâmetros curriculares e de suas diretrizes, no sentido de introduzir reflexões acerca desses outros grupos humanos que também são muito relevantes. Nesse livro especificamente, o tema africano deriva de uma legislação que foi feita e que instruiu que todos os professores tivessem formação em História da África, e que isso chegasse a todos os livros didáticos. Sente-se muita falta ainda de bibliografia abordando os assuntos. Os professores que estão aí não foram formados com essas leituras e têm dificuldade de falar sobre a África e sobre os traços culturais africanos no Brasil, pela falta de cabedal, de informação. Então o livro igualmente se volta em particular para aqueles que estão preocupados com a educação.

Portal Unicamp - Como a desigualdade racial se mostra hoje nas relações sociais. Ela é a mesma do passado?
Funari – A desigualdade econômica e também de grupos de antigos descendentes de escravos, os afrodescendentes, é histórica, é profunda, e o Brasil ainda é um dos países mais desiguais em termos econômicos do mundo. Ainda que desde a democratização e nos últimos governos tenha havido um grande esforço para diminuir a desigualdade, ela é persistente. Este é um primeiro contexto geral. Segundo: especificamente em relação aos afrodescendentes, a sua exclusão por tantos séculos da sociedade brasileira e das possibilidades de terem os benefícios da sociedade, porque eram escravizados, isso tudo arrastou-se pelo período posterior à escravidão; e de tal maneira que, em termos de acesso à educação, aos meios de ascensão social, eles são mais limitados do que outros grupos. Mas isso não acontece só com os afrodescendentes, também com os indígenas, mas de qualquer maneira há esses grupos historicamente marginalizados que sofreram muito com isso. Então podemos dizer que, se formos olhar do final da Abolição da Escravidão, em 1888, até hoje, houve (não há dúvida) uma ascensão social em geral das pessoas afrodescendentes. Podemos dizer que atualmente temos muito maior número de pessoas e mesmo percentualmente muito mais afrodescendentes ocupando posições de destaque, como é o caso do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, um exemplo notável, e o presidente Barack Obama, dos Estados Unidos, numa situação semelhante, pois o país também teve escravidão. Então houve um avanço nessa direção, porém isso não é capaz de mudar que, se formos comparar ainda o acesso à Universidade, o acesso aos postos de comando e a uma série de benefícios sociais, os afrodescendentes continuam sub-representados. Contudo, há que se reconhecer que isso também ocorre com os indígenas, com as mulheres, com as crianças e com os idosos. Os cargos de comando no Brasil são muito mais masculinos e de pessoas de origem europeia. Assim, um esforço adicional deve ser feito para que isso seja mais equânime e corresponda mais à população em geral.

Portal Unicamp - Falar sobre o assunto, como foi feito no livro, ajuda as pessoas que se acham em situação de desvantagem social?
Funari – Ajuda muito. Para que se possa diminuir a desigualdade social e para que as pessoas tenham possibilidade de ter melhores condições de acesso à educação e aos benefícios sociais, é necessário que elas tenham informação, não somente os afrodescendentes ou os índios e os grupos que estão sub-representados. Eu diria que todos, mesmo não estão particularmente afetados por isso. Eles têm que ter essa informação para que possam contribuir para alterar essa situação. Quando abordamos no livro o fato de que a África teve uma grande civilização (a egípcia), produziu um imperador romano chamado Spitimo Severo, ou então mais recentemente o presidente dos Estados Unidos (que também é afrodescendente), significa que estamos ressaltando que é possível atingir posições de poder. Não estamos dizendo que o poder é isento de problemas. O império americano, os Estados Unidos, tem problemas que são imperialismos, etc. Mas, independentemente disso, do ponto de vista de ascensão social, de possibilidade de se expandir socialmente e culturalmente, isso é importante ressaltar. Discutimos isso no livro. Então creio que é fundamental a produção de material de reflexão para que as pessoas possam mudar a sociedade. Não se muda a sociedade sem antes ter informações e sem discussão bem-fundamentada sobre o tema, que no nosso caso tange a desigualdade social e racial.

Portal Unicamp - Qual é o recado que o livro passa?

Funari – O principal recado é a imensa riqueza social das culturas africanas no sentido amplo da palavra e sua importância específica para o Brasil. Por um lado consiste em mostrar que a África tem uma riqueza imensa e que essa riqueza imensa africana, no Brasil, chega não só a aspectos culturais que são reconhecidos, alguns nichos, mas que, para além disso, temos, a partir de uma formação bem-fundamentada como essa, a perspectiva de que o continente africano, que contribuiu para a civilização brasileira, tanto quanto o continente americano com os seus indígenas e com suas tradições, o continente europeu e também o asiático. É uma maneira de ver a nossa sociedade menos isolada, menos homogênea. Somos, afinal, muito heterogêneos, diversificados. É importante que saibamos disso.

Portal Unicamp - Quais outros assuntos que foram enfatizados no livro?
Funari - Vou ressaltar alguns. Um deles é como os afrodescendentes aparecem nos livros didáticos. É uma maneira de fazer uma análise crítica, porque temos ainda muita produção de livro didático e material didático mais antigo. Essa análise é um recurso que ajuda muito os professores a terem um olhar crítico. Outro capítulo ressalta o feminismo, mostrando como as mulheres negras são valiosas na movimentação dos seus direitos no Brasil, que é algo que também não é óbvio. Depois ressaltaria um aspecto inédito no livro que é tratar da influência asiática no continente africano, em particular dos hindus, das pessoas provindas da índia, e também em certa medida da China, de modo que nós tenhamos uma visão do continente africano, que também já é conectado com o Ocidente, com o Atlântico, mas também com o Oceano Índico. Essa contribuição é pouco conhecida no Brasil. Outro capítulo muito original é sobre a influência africana na língua portuguesa, sobretudo por meio de toponímias de nomes indígenas como Ibirapuera, Iguatemi, Paraíba. Todavia, a influência africana é também muito mais ampla. Esse capítulo aponta o vocabulário, com muitas palavras do uso cotidiano e algumas delas muito relacionadas ao afeto, ao corpo humano, que são de origem africana. Também falamos de algumas estruturas linguísticas que são particularidades do português do Brasil e que se ligam às línguas africanas que vieram para cá e que foram desaparecendo como línguas africanas e que, apesar disso, influenciaram a nossa língua. Temos ainda uma coisa que é pouco explorada no Brasil que é a questão da História da África recente, especificamente a luta pela descolonização do continente africano, em particular no caso da Guiné-Bissau, que é uma ex-colônia portuguesa de língua portuguesa, também muito próxima de nós. Tem outro capítulo sobre o Palmares, que é o grande ícone da questão afrobrasileira, que é o maior quilombo de todos os tempos e que é um capítulo original porque também está enfocando as mulheres. Outro capítulo ainda que saliento é o racismo científico. Ele mostra como se utilizou, no final do século 19 e as primeiras décadas do século 20, da ideia de que existiriam raças inferiores. Assim, os negros africanos passaram a ser tipologizados como inferiores, inclusive na Medicina, com consequências graves, uma vez que as pessoas passaram a justificar a discriminação por critérios “científicos”, por considerar que havia fundamento para aquela discriminação. Isso foi contestado mais recentemente, porém não muda a tradição, que ainda é muito forte, de que as raças biológicas têm características muito distintas e com consequências para a inteligência, o comportamento, as coisas que depois vieram por terra, porque não fazem sentido. As características de diferenciação são basicamente culturais. Não existe gene da inteligência ou gene da preguiça. Então esse capítulo é de suma importância a priori porque ainda é comum ouvir a interpretação cientificista das raças.

Comentários

Fiquei muito interessada no livro, principalmente pela forma contemporânea de discutir questões referentes ao preconceito racial. Nos livros didáticos, o olhar desse autor deve ser adotado.Parabéns aos envolvidos na produção e criação literária.

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