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O antirretrato contemporâneo: a identidade impossível e alguns desdobramentos na fotografia latino-americana

Paula Cabral Tacca escreve sobre o “momento histórico e artístico importante que desconstrói na fotografia e em outros campos o caro princípio do retrato como mimese, referência ou representação identitária”

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Tanto quanto o retrato marca insistentemente toda a história da arte, o retrato sem rosto ou o antirretrato – esfacelamento, ocultação, destruição do rosto na imagem –, é marca fundamental de uma atualização desta história no período contemporâneo, perpassando territórios, espaços e especificidades artísticas.

No campo das definições, encontramos o conceito de antirretrato em algumas poucas fontes de pesquisa, até mais técnicas do que conceituais de fato. De qualquer forma, me parece que, seja como categoria do retrato, seja como um modelo expressivo específico, ainda um conceito discutido de maneira bastante breve.

Academicamente, um material que discorrerá sobre a questão de forma aparentemente ampla é o livro Anti-Portraiture: Challenging the Limits of the Portrait (no prelo) de Fiona Jonhstone e Kirstie Imber, do Department of Art History/School of Arts Birkbeck, de Londres, e que tem previsto seu lançamento para este ano. O pesquisador Ernst Van Alphen também se debruça sobre a questão em seus livros Francis Bacon and the loss of self (1992) e Art in mind: how contemporary images shape thought (2005), assim como em seu artigo The portrait’s dispersal: Concepts of representation and subjectivity in contemporary portraiture (2008).

No que se refere a grandes centros de arte, a exposição La Colección (28/03/2015 - 29/10/2017) [1], do Centre Pompidou, em Málaga, aparece como excelente referência sobre a questão ao apresentar através de grandes obras e artistas um panorama histórico sobre o movimento de conflito e transmutação de si e do outro, que leva à fragmentação/desestruturação do rosto e à transformação do significado do retrato e do autorretrato na arte.

No que tange à fotografia, no campo curatorial, alguns projetos começam a emergir, como por exemplo, o da jovem curadora e artista Aline Shkurovich, disponível na plataforma do ICI (Independents Curators International) e intitulado Anti-Retrato [2] (Figura 1); enquanto no concernente aos artistas, vários deles começam a designar o termo – antirretrato – para conceituar ou intitular suas produções fotográficas ou foto-imagéticas, como é o caso de Alex Fleming [3] e José Castrellón [4], entre outros.

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Colombia. Retrato Familiar | Foto: catalina Toro

Ao focarmos o tema do antirretrato na fotografia latino americana, teremos no Brasil sua maior representação na produção do artista paulistano Nino Cais. Interferindo nas reproduções fotográficas de revistas e livros de arte, jogando camadas de tinta nos rostos, raspando a impressão, criando apagamentos através de descolagem de camadas, através de colagens e fotomontagens, ocultando os rostos a partir da relação entre imagem bidimensional e elementos/objetos tridimensionais, que passam a fazer parte da obra, Cais desenvolve uma ampla gama de técnicas, processos e resultados que podem ser compreendidos desde um princípio de antirretrato.

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Sem Título | Foto: Nico Cais

Também em suas séries fotográficas autorais, como nos casos de Pitoresca viagem pitoresca(2011) e Viajantes (2012), o artista cria, num misto de autorretrato e performance, imagens fotográficas às quais define como esculturas.

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Pitoresca viagem pitoresca 2011 | Foto: Nico Cais

Quando eu camuflo o corpo, ele passa a ser quase uma massa escultórica menos ditada, com uma regra menos precisa do que de fato está acontecendo na cena. O rosto aponta para alguma situação, seja uma cena nostálgica, festiva, alegre, cínica ou bizarra. O rosto aponta para esses caminhos. Quando camuflo o rosto, crio uma situação de massas, de cores, de volumes e de texturas(...) [5]

Esse suporte corporal é então adornado com objetos específicos do entorno do artista, souvenires de viagens realizadas por amigos ou pessoas próximas, objetos de sua própria coleção, adquiridos em mercados de antiguidades, enfim, objetos que carregam de alguma maneira, uma certa carga afetiva.

Ainda no Brasil, Mario Cravo Neto, Celso Brandão e Rogério Reis também são fotógrafos que trabalham bastante dentro do princípio do antirretrato. O primeiro, inicialmente escultor, trabalha com a ocultação do rosto no retrato, a partir de elementos da natureza, que remetem ao mundo panteísta do candomblé e da cultura afro-baiana e à fusão dos mundos míticos e terrenos: Identidades ocultas sob máscaras de deuses, cascos de tartaruga, em fundo negro e sob a excelência da luz que as projetam e dão ao espectador a percepção de um tátil escultórico.

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Série Caixa Preta 2016 | Foto: Celso Brandão

Celso Brandão tem a preocupação documental-autoral de fotografar a cultura alagoana: seus carnavais, sua religiosidade e seu cotidiano. Procura por mascarados do carnaval de Alagoas e os registra em momentos de poder e superioridade; quando assumem uma identidade das máscaras que portam: animais e entidades poderosas e fortes do repertório cultural nordestino.

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Rogério Reis, desde uma visão e preocupação bastante contemporâneas, e que fazem parte do cotidiano atual dos fotógrafos de rua, propõe a reflexão sobre a questão da autorização do uso da imagem, e da propriedade da imagem no espaço público, a partir de sua série Nobody's Nobodies (2014), alocando digitalmente pequenos círculos coloridos nos rostos das figuras que fotografa em espaço público, especialmente nas praias do Rio de Janeiro.

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Nobody's | Nobodies 2014 | Foto: Rogério Reis

Para além do Brasil, outros artistas e fotógrafos latinos trabalham com essa questão de forma ampla e muitas vezes, bastante densa. É o caso de Ana Mendieta (1948-1985); a artista trabalha em suas produções com a busca e o reconhecimento de si enquanto mulher e parte da natureza. Na fotografia Imagem de Yagul, da série Silueta (1973-1977), Mendieta tem seu rosto e parte de seu corpo ocultos por flores selvagens do sítio arqueológico mexicano homônimo, dando continuidade à incessante busca pela fusão física entre ela e a terra, proposição de toda a série Silueta.

Foto: Reprodução
Imagem de Yagul 1973 | Ana Mendieta  

Desde a Argentina, e emergente no cenário nova-iorquino e internacional, Lucia Fainzilbers cria uma série pessoal de autorretratos/antirretratos para falar um pouco do que é se desencontrar e tentar se reencontrar num mundo que desestabiliza a todo tempo quem somos:

Somewear é uma série de autorretratos, que brigam com a ideia de identidade. Colocar meu corpo na frente da câmera tem sido uma maneira de me olhar de outra maneira, tentando responder a todas essas perguntas sobre quem realmente somos. A sociedade, a família e a geração em que vivemos tornam essa jornada ainda mais difícil. Nos camuflamos (...) para sobreviver. É a nossa maneira de estar dentro de um sistema. [6]

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Série Somewear 2014 | Foto: Lucia Fainzilbers

Estes artistas são alguns exemplos latino-americanos, dentre muitos outros sobre os quais poderíamos discorrer, que participam de um momento histórico e artístico importante que desconstrói na fotografia e em outros campos o caro princípio do retrato como mimese, referência ou representação identitária, e abrem espaço para novas concepções sobre a questão. De fato, a partir das palavras de Nino Cais ou Fainzilbers, ou das buscas incessantes de Celson Brandão por seus personagens carnavalescos, e das motivações e ações de Ana Mendieta, conseguimos legitimar essa situação que marca a história recente da arte a partir da ideia de liquidez, fluidez e instabilidade definidas principalmente por Zygmunt Bauman desde a percepção dos seres e das relações líquidas no mundo contemporâneo. Em seu texto sobre o tema da identidade (2005), o sociólogo demonstra que a impossibilidade de encontro de uma identidade própria e fechada a partir de um universo policultural na qual princípios e valores são atualizados e revistos a todo tempo, é missão cerrada pela própria realidade dos indivíduos, composta por fragmentos fragilmente conectados e facilmente desconectáveis. Citando Paul Ricoeur, Bauman afirma que a questão de la mêmete – a consistência e continuidade da identidade – é incoerente com um mundo que propõe o flutuar das identidades e que nos imerge incessantemente na situação de estar totalmente ou parcialmente deslocado por toda parte, e não estar plenamente em lugar algum.

Para ele, teoricamente, mas para os artistas de maneira prática, e como exercício do sensível, o fato de criar e dominar cada vez mais habilidades e estratégias que ajudem a lidar com essa condição paradoxal do ser, dessa ambiguidade e transmutação de identidades, faz com que menos agudas sejam as dores da existência e menos irritantes seus efeitos. Assim, viver essa identidade líquida e transmutável que o mundo contemporâneo exige, faz com que todos nós, e sabemos bem, os artistas ainda mais, resolvam questões sensíveis e identitárias sabendo que ora ou outra se sentirão  mais ou menos em casa, e se sentirão mais ou menos identificados e pertencentes à realidade do mundo que os cerca, mas sempre pagando o preço de aceitar que jamais existirão linear e plenamente, e que acima de tudo, num mundo líquido, de relações líquidas e de situações que nos convulsionam e metamorfoseiam a todo tempo, nada é mais certeiro do que a velha fala de Max Ernst parafraseando Breton: “a identidade será convulsiva, ou não será”. [7]

 

ências>

ALPHEN, Ernst Van . The portrait’s dispersal: Concepts of representation and subjectivity in contemporary portraiture in De lo humano: fotografia internacional 1950-200. Centro Andaluz de Arte Contemporâneo, Sevilla: 2008.

BAUMAN.  Zygmunt Bauman. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Jorge Zahar, Rio de Janeiro: 2005.

ERNST, Max. Escrituras. Ediciones Polígrafa, Barcelona:1982.

Paula Cabral Tacca é doutora em História da Arte (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da  Unicamp).

 



[1] https://centrepompidou-malaga.eu/exposicion/la-coleccion-2015-2017/ , acesso em 28/01/2019.

[2] http://curatorsintl.org/intensive/proposal/anti-retrato1, acesso em 28/01/2019.

[3] Entrevista para o jornal Folha de São Paulo, publicada em 04/05/2014., acesso em 28/01/2019.

[4] http://curiator.com/art/jose-castrellon, acesso em 28/01/2019.

[5] http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/47168, último acesso em 06/03/2016.

[6] https://www.luciafainzilber.com/somewear-1, acesso em 28/01/2019 – tradução livre

[7] Max Ernst. Escrituras, 1982, p. 213

 

 

Imagem de capa JU-online
Nobody's | Nobodies 2014 | Foto: Rogério Reis

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